Rede observatório. Recursos Humanos em Saúde

Estação de Trabalho OBSERVATÓRIO HISTÓRIA E SAÚDE

Entrevistas

Alberto Pellegrini Filho

Entrevista Completa

OBSERVATÓRIO HISTÓRIA E SAÚDE
Rede de Observatório em Recursos Humanos em Saúde do Brasil - ObservaRH
Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz

Entrevista 1

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PROJETO:
HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

Data:
7 de junho de 2005

Depoente:
Alberto Pellegrini (AP)

Entrevistadores:
Carlos Henrique Assunção Paiva (CH)
Gilberto Hochman (GH)

N° da Entrevista: S/N
Código: 1 / 3

Transcrito por:
Andrea Ribeiro – Setembro 2005


FITA 1/LADO A


GH – Estamos na Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz. Entrevista com Alberto Pellegrini Filho. Estão presentes o Carlos Henrique e o Gilberto Hochman.

CH – Doutor Pellegrini, a gente vai começar exatamente falando sobre a sua entrada na faculdade de Medicina. O senhor fez faculdade de Medicina em São Paulo, de 63 a 68. Esse período é importante, pois há uma agenda muito peculiar de temas de planejamento em saúde, tais como os Planos Decenais, os encontros de ministros e a idéia de reforma do currículo médico. A minha pergunta é a seguinte, em que medida, ou de que forma essa grande agenda de discussões impactou naquele jovem estudante de Medicina?

AP – Talvez , não tanto via o curso médico propriamente dito. Eu estudei na USP [Universidade de São Paulo], que é uma faculdade mais ou menos tradicional. E o impacto com essas questões da política de saúde e da política em geral, passava mais minha participação no movimento estudantil, que foi bastante intensa, em um momento importante da política brasileira. Pelo menos, entre 63, quando eu entrei, até 68, no ano do Ato Institucional nº5, entre 63 e 68, havia uma mobilização muito grande. Claro que, a partir de 68, com o aumento da repressão, e, depois com o surgimento dos grupos armados, etc, a coisa teve um outro caráter. Mas, de 63 a 68, havia muita discussão interessante sobre a questão da educação médica, o acordo MEC/USAID [Ministério da Educação e Cultura/ United States Agency for International Development] e todos esses temas que mobilizavam o movimento estudantil. Eu tive a oportunidade de participar disso. Então, sem dúvida, isso impactou nas minhas opções posteriores.

CH – Tinha alguma demanda? Por exemplo, como estudante de Medicina e membro do movimento estudantil na faculdade de Medicina, você observou demanda, desse movimento sobre o funcionamento da faculdade ou sobre currículo? Ou eram questões que não estavam na pauta, pois eram questões que diziam respeito a uma pauta mais política?

AP – Exatamente. Eu que acho que haviam temas mais ligados à questão da educação médica e da saúde. Mas, o movimento, naquele momento, era muito pautado pela questão política mais geral. Era uma época em que se falava da aliança operário-estudantil-camponesa.

GH – Pauta política mesmo.

AP – Passava pelo aspecto mais geral da política.

GH – Uma outra pergunta, também, que vale a pena registrar. Por que a escolha pelo curso de Medicina? Você é de família de médicos?

AP – Não. Na época, as escolhas eram mais restritas do que hoje. Você tinha um leque de opções mais limitado. Eu acho que, na época, quem tinha uma tendência maior para a questão das letras e humanidades, escolhia Direito; quem era mais ciências exatas, escolhia Engenharia; e para as ciências mais biológicas, escolhia Medicina. Você não tinha um leque de opções muito grande. Eu tinha uma vertente voltada para as ciências biológicas. Acho que entrei em Medicina por causa disso e de algo com teor humanista, de querer ajudar. Mas, isso não passou por laços familiares.

CH – Mais alguma questão preliminar? Antes de a gente chegar à OPAS [Organização Pan-Americana da Saúde] ?

AP – Antes de chegar a OPAS, tem várias coisas aí interessantes.

GH – A gente vai trilhando isso. Eu fiquei também pensando... É claro que a sua trajetória posterior vai se conectar com questões relacionadas às políticas de saúde e de planejamento. Tais questões vão se conectar, por exemplo, à Medicina, à sociedade e à política. Em algum momento, no movimento estudantil ou na faculdade houve algum professor inspirador? Hoje, olhando para trás, houve algum personagem inspirador em alguma de suas opções?

AP – Como todos os professores, os professores da USP não eram muito inspiradores. Mas, no fim do curso, entrou o professor Guilherme Rodrigues da Silva, no Departamento de Medicina Preventiva. Isso foi interessante, porque no próprio concurso do Guilherme Rodrigues da Silva houve uma participação muito grande do movimento estudantil da própria escola. Porque havia, me lembro, um outro candidato, que era o candidato de preferência do establishment da escola, enfim. O concurso do Guilherme foi um concurso bastante mobilizador do movimento estudantil. As sessões eram públicas, no teatro da escola, um monte dentro. A Cecília Donnângelo quando entrou na faculdade, foi para o Departamento de Medicina Legal, que era um dos departamentos mais tradicionais.

GH – Eu não sabia disso não. Imagino.

AP – Chibata e tudo isso. Ela entrou no Departamento de Medicina Legal, claro que foi uma exceção naquele departamento. Mas, me chamava muito a atenção. Eu tinha uma relação muito boa com ela. Depois, ela passou para medicina preventiva.

GH – Você chegou a fazer curso com a Donnângelo e o Guilherme?

AP – Cheguei com o Guilherme. Coincidiu com minha dúvida em fazer a medicina preventiva no quinto ano. Essa dúvida já me perseguia desde primeiro ano. A Medicina Preventiva e a Medicina Legal também eram no 5º ano, período que nós tivemos contato com Guilherme e a Cecília. Esses foram nossos inspiradores.

GH – A gente está vendo aqui na sua residência médica em neuropsiquiatria. Como é que se dá essa opção?

AP – Eu tinha uma vertente, digamos assim, mais médico. Não gosto de falar muito de mim, eu fui o primeiro aluno da minha turma.

CH – A gente está falando de você mesmo. Já vi que você tem prêmios.

AP – Então eu fui sempre o melhor aluno da turma. Na época, se dava prêmios ao melhor aluno na área básica, na área clínica e em geral. E eu ganhei todos eles. Eu era um estudante muito dedicado. Isso era muito importante porque dava uma certa legitimidade. Em geral, o pessoal que fazia parte do movimento estudantil era mau aluno e não era bem visto em uma escola como a USP. Você fazendo parte do movimento estudantil e sendo bom aluno, era mais respeitado. E acho que isso foi importante. Eu tinha uma vertente assim de gostar da Medicina, da parte técnica e, principalmente da neurologia. Na época, eu fiz neurologia e a residência na USP. Mas, quando terminou a residência, abriu a possibilidade de ir para uma outra escola. E eu optei pela Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], porque ela, naquele momento, era uma escola que estava tentando fazer algo diferente, uma escola com novas experiências de educação médica, etc.

GH – Mas, alguma coisa mais precisa sobre o que era novo?

AP – Eu vou contar.

CH – Isso foi logo após você se formar?

AP – Eu fiz residência em 71 e fui para a Unicamp. Quando eu chego na Unicamp, claro, ainda continuo a minha neuro, foi em tempo integral e com dedicação exclusiva. Trabalhava na área clínica de neurologia e também na área básica. Eu comecei a trabalhar com Oswaldo Vital Brazil. Ficamos trabalhando durante cinco anos, juntos fizemos uma série de pesquisas na área básica. Minha tese de doutorado é na área de neurofarmacologia. Uma coisa bem básica. Mas, ao mesmo tempo, me vinculei a um grupo que estava discutindo a Nova Escola Médica, que era o grupo do [Sergio] Arouca e Ana Maria Tambellini e todo esse pessoal que veio depois para a Fiocruz. Nessa época, o diretor da Escola de Medicina era o José Aristodemo Pinotti. O Pinotti estava interessado em revitalizar a Escola Médica. A faculdade de Medicina tinha sido fundada em 63, era uma faculdade que, de alguma maneira, copiou posturas tradicionais. A Unicamp, nesse momento, estava efervescente. Na área de Ciências Sociais você tinha uma série de pessoas querendo fazer coisas. Esse grupo do Departamento de Medicina Preventiva estava muito vinculado a OPS [Organização Pan-americana da Saúde], em Washington, onde havia uma figura importante chamada Juan Cesar García. O Juan Cesar García tinha acabado de lançar um livro chamado Educação Médica, que foi importante. O grupo tinha muito contato com o Juan Cesar García, tanto indo à Washington como o García vindo ao Brasil. Houve todo um movimento das medicinas preventivas, a exemplo do movimento de medicina preventiva de São Paulo. Era a idéia de uma Nova Escola de Medicina, de um novo ensino médico, baseado muito nas idéias do García. Esse era um movimento crítico, através do Arouca. Medicina preventiva tradicional representada, talvez, por Ribeirão Preto tinha aquela idéia de medicina preventiva feita no próprio consultório médico, a tal da atitude preventivista do médico que centrava sua prática no consultório. A proposta da nossa medicina era de criar áreas de experimentação de um novo modelo de assistência médica. A partir disso começaram a aparecer projetos pilotos, vinculados à faculdade de Medicina e no caso da Unicamp teve destaque o projeto de Paulínia, que representou um projeto onde se podia exercitar uma nova prática de saúde e de prática de ensino etc. E eu estava, apesar de ser ligado mais a área básica e clínica, vinculado diretamente a esse grupo, por causa dessa experiência de novos projetos.

GH - Esse vínculo era o quê? Era de trabalho? Você participou dos projetos efetivamente?

AP – Era um vínculo ideológico e pessoal. Claro que o que se promovia eram discussões à noite através de um grupo que pensava a nova faculdade de Medicina etc. Inclusive, produzia alguns textos etc. Depois se criou uma coisa chamada “Laboratório de Educação para Medicina Comunitária”, no qual era o Arouca o mais responsável, mas, eu também fiquei praticamente responsável por esse laboratório. Ficava boa parte do meu tempo entre a clínica, a pesquisa básica e esse Laboratório de Educação para Medicina Comunitária. Era um edifício de três andares só dedicado a isso. Depois, virou a sede do Departamento de Medicina Preventiva. Os estudantes se reuniam para discutir temas de educação médica e a sua prática em Paulínia, porque o departamento de Medicina Preventiva da Unicamp já dava aulas em Paulínia. E eu tinha um grupo de estudantes onde a gente freqüentava os bairros de Campinas. Fazíamos uma atenção médica bem comunitária dentro dos bairros. Isso me rendeu uma série de problemas. Era um pouco isso, a idéia da educação médica. Para mim, pessoalmente, foi essa ponte da educação médica que me levou às questões mais vinculadas à organização de serviços e de política de saúde. Em relação à ponte da educação médica, eu acho que muita gente foi assim, através da educação médica você chega a questionar um serviço de saúde.

GH – Esse Laboratório de Educação para Medicina Comunitária era a inspiração para o Juan César García? Tinha alguma originalidade brasileira nisso?

AP – Tem, claro que tem.

GH – Queria te ouvir um pouco.

AP – Através desse movimento da medicina comunitária no Brasil criaram-se as SESACS [Semana de Estudos sobre Saúde Comunitária]. Havia esse movimento das medicinas preventivas, que começou em São Paulo, com vários departamentos de medicina preventiva, principalmente em Ribeirão Preto, na Unicamp, mas depois se expandiu aqui para o Rio [de Janeiro]. O Instituto de Medicina Social [IMS/UERJ] teve um papel importante, principalmente, com Hésio [Cordeiro] e esse povo todo. Por isso havia um movimento brasileiro. A SESACS [Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária] envolvia também o movimento estudantil. Nessa época, o movimento estudantil se articulava muito em torno dessa proposta da saúde comunitária. A medicina comunitária foi uma válvula de discussão de temas de política de saúde. Depois, teve os programas de extensão de cobertura, muitos foram calcados nessas experiências da saúde comunitária, vinculadas à universidade etc. Mas, descola-se e aparece o programa do norte de Minas, de Montes Claros, da Secretaria de Saúde de Minas Gerais. E esse grupo do norte de Minas, depois, vai para Brasília, PIASS [Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento], o programa de organização de ações de saúde e saneamento, que é um programa nacional importante também. O próprio PREV-SAÚDE [Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde] depois é um filhote dessa trajetória. Você tem todo um mecanismo de medicina comunitária, de extensão de cobertura, como uma forma de chegar à visão mais global do sistema de saúde, que vai dar no SUS [Sistema Único de Saúde]. Acho que esse movimento sanitário nacional.

CH – O Gilberto falou há pouco do Juan César García, o senhor se lembraria quais seriam as literaturas ou os autores que eram mais debatidos no âmbito desse laboratório?

GH – O que é que você estava lendo? Qual era a sua biblioteca básica nesse momento? Tirando a limpo.

AP – [Michel] Foucault, [Michael] Polack... Naquela época, a gente não tinha, por uma série de questões da própria sessão e do acesso que não era tão fácil. Você não tinha a internet. Então, o Juan Cesar García fazia um esquema de bibliografia selecionada, que ele enviava aos seus amigos. Ele tinha uma rede. Ele mandava textos e, naquela época, a gente lia avidamente, a xerox de artigos de Foucault, de Polack e de outros autores. Alguns, a gente conseguia, depois, comprar o livro, [Pierre] Bourdieu... Ele mandava os artigos ou, às vezes, a xerox, até com comentários dele, para um grupo de amigos, em toda a América Latina, para nós, em São Paulo e para o pessoal do Arouca. Todos nós recebíamos diretamente e fazíamos bancos de discussão. Foi muito uma formação quase de uma fase meio heróica. É claro que você tinha o Instituto de Medicina Social, que começava a colocar essas coisas formalmente, no próprio curso de Medicina Social. Mas, tinha muito dessa informalidade.

GH – Bom, se eu entendo, você foi abandonando?

AP – Não, você sabe que chegou ao impasse, porque, em 75, houve uma nova onda de repressão, principalmente para o pessoal do Partido Comunista.

GH – E PC do B [Partido Comunista do Brasil] também?

AP – Isso. Em Campinas o nosso grupo, de alguma maneira, tinha algum tipo de vínculo. É um grupo que passa, particularmente, por uma repressão importante. Eu diria que as pessoas do grupo tiveram que se defender dessa repressão. Então, eu vinha na trajetória da neurofarmacologia etc; e o professor Vital Brazil, que estava para se aposentar, até queria que eu fosse o sucessor dele. Tinha acabado de defender a tese de doutoramento. E ele já tinha me conseguido um estágio na Alemanha na linha da farmacologia. Eu tinha essa outra vertente da educação médica do pessoal da preventiva. E quando se agrava a questão da repressão, eu, praticamente, tive dificuldades em permanecer em Campinas, e esse grupo saiu à busca de alternativas para as pessoas e para o próprio grupo. O Arouca saiu à caça de alternativas. Que eu saiba, ele chegou a ver a possibilidade de ir para Brasília, no momento que o PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde] estava sendo criado.

GH – A gente já ouviu um dos entrevistados comentar sobre isso, foi o próprio Carlyle [Guerra de Macedo]?

AP – É, ele passa por Brasília. O Carlyle estava chegando para esse grupo também. O Carlyle vinha do Chile. Ele tinha sido Secretário de Saúde do Piauí, depois foi para o Chile e estava voltando para assumir o PPREPS. Na verdade, o Carlyle não venho como coordenador do PPREPS de início, acabou sendo escolhido. O [José] Teruel, de Washington, era o contato para a criação do PPREPS. O Arouca chegou a ser sondado para ir a Brasília, mas por uma razão, entre aspas, era o fato de ser Brasília, o Arouca não via muita possibilidade nisso. Então, começou a fazer contatos com o grupo aqui do Rio de Janeiro, Sérgio Góes e tal, que tinha vindo para estudar no IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada].

AP – Esse Sérgio Góes e Carlinhos, com esse grupo, conseguem articular o PESES [Programas de Estudos Econômicos e Sociais] e PEPPE [Programa de Estudos Populacionais e de Pesquisas Epidemiológicas].

GH – Como você está inserido nesse processo?

AP – Eu estava em Campinas enquanto o Arouca e a Ana Maria e esse povo estavam vendo possibilidades da gente, de alguma maneira, se reinstalar, todo aquele grupo, em um novo projeto de pesquisa e de ensino. A nossa idéia era ter um instituto de pesquisa. E o PESES aparece como a grande oportunidade.

GH – Você pediu demissão da Unicamp?

AP – Pedi demissão da Unicamp e vim para cá ganhando metade do salário que eu ganhava na Unicamp praticamente. Pois eu tinha acabado de fazer o doutorado na Unicamp. O doutorado era muito estimulado, pois você dobrava o salário. E eu tinha acabado de fazer. Mas naquela época, isso não contava.

GH – Nesse momento, você estava casado, tinha filhos durante as mudanças?

AP – É, eu casei em 68.

GH – Eu sempre falo dessas mudanças devido às dificuldades que as pessoas passam no âmbito profissional.

AP – Mas, eu não tinha. Era fácil fazer essas mudanças.

GH – Você vem para a Fundação?

AP – Venho para fundação, para o PESES/PEPPE. Ele era muito interessante porque se forma um grupo com vários projetos. Tinha uns projetos com antropólogas, do qual a Tatiana Lins e Silva era responsável. Tinha o projeto das sociólogas com a Ana Maria [Canesqui?] e Isabel [Brasil], que está aqui, e o Nilson do Rosário. Tinha o projeto dos economistas, do qual participavam o Sérgio Góes e o José Carlos Braga. Tinha o projeto da Medicina Preventiva. Tinha o projeto da Medicina Preventiva, que era o Arouca, o Jayme e Sônia Fleury. E tinha também o projeto da medicina comunitária, o qual eu era responsável.

GH – Mais alguém com você, nesse momento?

AP – Estava o Eric Rosas e o [Francisco] Javier [Rivera] da escola [Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz], o atual diretor da escola desse grupo também.

GH – O projeto era de investigação em medicina de comunidade? Eu estou vendo aqui no seu currículo.

AP – A nossa idéia, de alguma maneira, tem uma seqüência do que a gente vinha fazendo lá em Campinas, que era esse movimento da medicina comunitária. E a gente via como uma proposta de reorganização do sistema de saúde, de reorganização da educação médica, mas, também, como uma proposta política de participação social na área de saúde. Através do projeto de medicina comunitária aparecia a idéia de participação comunitária em saúde. Tinha uma vertente mais conservadora, da própria OPS, que estava promovendo, naquela época, a participação comunitária em saúde. Era, de alguma maneira, um meio de organizar a população para cumprir algumas atividades de saúde etc. Era uma coisa quase que instrumental, mas a gente tinha uma visão da mobilização retomando aquela coisa de 63.

GH – Como conscientização também?

AP – Como conscientização, exatamente. O projeto em medicina comunitária era um estudo das iniciativas que havia no Brasil, naquele momento, sobre Medicina Comunitária. A gente acompanhou vários projetos. Tinha o projeto da zona leste de São Paulo, que estava sob responsabilidade de uma figura chamada Eduardo Jorge. O Emerson Elias Merhy também era responsável pela zona leste de São Paulo, onde se criou um grupo de medicina comunitária. Na havia o projeto de Montes Claros da Secretaria de Saúde de Minas Gerais, os projetos de Niterói e no Rio de Janeiro, que contou com participação de Antonio Ivo de Carvalho. Têm outros que eu não me lembro agora. Eram projetos que a gente seguia, estudava e acompanhava, vendo as vertentes, tanto de reorganização do sistema, como de participação social. O PESES era um momento de encontro desses vários grupos. A gente fazia reuniões quase que mensais. Vinha esse pessoal do Antônio Ivo e do Eduardo Jorge.

GH – Uma pergunta, nesse momento do PESES se articulava com a dinâmica da ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz]?

AP – Mais ou menos. Era quase que um enclave dentro da escola. Embora a Fiocruz, como um todo, estivesse passando por um processo de retomada de seu prestígio e contratando pessoas, depois do “massacre de Manguinhos”. Não é a toa que alberga um grupo tão esquisito como esse. Era um grupo que foi contratado sem que ninguém tivesse pedido ficha de SNI [Serviço Nacional de Informações] para ninguém.

GH – Quem era o diretor da escola, naquele momento? Você se lembra? Estou tentando me lembrar, 77...

AP – É antes do Frederico [Simões Barbosa]?

GH – Sim.

AP – Agora, esqueci. Mas, tem a figura do Fernando Braga.

GH – Porque isso, de qualquer maneira, acabou impactando, porque parte dessas pessoas acabaram ficando na escola.

AP – Claro, um dos requisitos dos financiadores desse projeto, tanto pelo IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] quanto pela FINEP [Financiadora de Estudos e Projetos] etc, era que o grupo fosse absorvido, no acordo por um grupo com muito dinheiro, coisas do Estado brasileiro, na época. O IPEA, principalmente, era como uma válvula de escape para poder contratar esse tipo de gente. O compromisso da Fiocruz era absorver esse pessoal quando acabasse o projeto. De fato, o projeto acabou e a Fiocruz fez um concurso para absorção do pessoal. Todos nós fizemos o concurso, inclusive eu. Passei no concurso e tal, felizmente. Mas, na hora de assinar o contrato, eles pediram a ficha, por isso eu não pude entrar.

GH – Mas, houve veto ao seu nome? Ou a de outras pessoas também?

AP – Acho que o Reinaldo Guimarães fez esse concurso também e não conseguiu entrar por esse motivo. Em relação a outras pessoas desse grupo, eu não sei. Muitas pessoas entraram através desse mecanismo, o Jayme [Fleury] foi uma delas.

GH – E a Sônia [Fleury]?

AP – Sim, [Francisco] Javier [Rivera]. Esse povo todo entrou através desse mecanismo do concurso. Mas, eu não pude. Eu não lembro exatamente de outras pessoas. Acho que a Tatiana não pôde entrar. Quem mais que não pôde entrar? O Eric.

GH – O que você fez, diante disso?

AP – Foi um período interessante, porque eu tive que ir pulando. Fiquei seis meses em Montes Claros, pois era quase que natural ir a Montes Claros em um contrato precário. Depois, fui para Brasília trabalhar no PIASS [Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento].

GH – Mas, já no ministério.

AP – Sim, mas o PIASS, surgido em 1978, era também como o PESES, um projeto do IPEA, financiado por seu aval. Ainda era da própria estrutura do ministério, pedia ficha, por isso que perdemos.

CH – O senhor já nos falou de sua transição de uma formação profissional com um enfoque mais biológico para uma perspectiva mais de saúde coletiva. Foi um processo gradual, é evidente. O curioso é que, pelo menos examinando seu currículo, somente em 78 o senhor publica um trabalho chamado Medicina Comunitária, isto é, exatamente dez anos depois de se formar. Eu lhe pergunto: como é que se deu a sua aproximação com esse tema de saúde coletiva? Por que é que demorou tanto tempo para publicar algo a respeito? Quer dizer, você tem em 76 ou 77, trabalhos de Medicina mais em uma perspectiva biológica e só dez anos depois, vai sair um trabalho que reflete já essa guinada.

AP – A gente não tinha uma cultura de publicação nessa época. Pois a gente tinha uma cultura de outra vertente. O Vital Brazil tem muita publicação sobre o que a gente fazia. Eu tenho as minhas publicações até 76 ou 77, mais na área de neurofarmacologia. Achou que tem alguns artigos sobre medicina comunitária, em conjunto com o grupo, e um trabalho que eu fiz com o Vital e o Eleutério [Rodrigues Neto] sobre medicina comunitária, esse trabalho foi publicado na revista da OPS. Mas, nem aparece ainda. Era na realidade, um trabalho com vários autores, basicamente eram eu, Vital e Eleutério. Chamava-se “Medicina Comunitária”... Eu não me lembro exatamente.

FIM DA FITA 1/LADO A


FITA 1/ LADO B

 

AP – Pinotti e Arouca publicam na revista da OPS um artigo sobre faculdades inovadoras, e meu nome está entre o grupo de vários autores. Mas, como te digo, não havia uma cultura de documentar, tudo era feito só através de publicação. Com o PESES é que começa a aparecer essa idéia. Porque, eu disse, nessa fase heróica não havia como você ver hoje na área de saúde coletiva uma preocupação por você ter a legitimidade acadêmica e social. Eu acho que é o grande desafio dessa área foi o equilíbrio entre essas coisas. Hoje, você vê muito claro, nos grupos, na escola, essa preocupação por uma legitimidade acadêmica, os padrões acadêmicos e uma legitimidade social. Naquela época, a gente não dava muita bola para a legitimidade acadêmica dentro dessa área. Era muita preocupação com o social, muita publicação mimeografada, a gente escrevia muito. Mas, nada de publicar. O que era muito ruim. Acho que com o PESES começa a gente começa a publicar. Todos os trabalhos que foram feitos no PESES foram todos publicados.

GH – Seu trabalho no PIASS, por volta de 78, Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento, tem vários andamentos. É interessante como que a reforma sanitária pode ser lida por vários caminhos. Qual era o seu trabalho no PIASS como consultor na secretaria?

AP – Tem a trajetória mais formal dos vínculos empregatícios e uma trajetória que começa paralela, que é a trajetória da criação do CEBES [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde], de participação em todo um movimento que começa a ressurgir nessa época com a abertura gradual. Você começa a ter espaços de participação. No Rio, no PESES, a gente tinha forte participação em tudo quanto era movimento, Sindicato dos Médicos, os verdes, os índios, o que fosse. O PIASS, como te digo, buscava recolher a experiência de Montes Claros. O coordenador do Programa era uma pessoa que tinha sido coordenador de Montes Claros, o Francisco de Assis Machado, o Chicão. Ele junta um grupo de pessoas do IPEA, a exemplo do Sérgio Piola, que ainda aparece muito fazendo estudos de economia em saúde no IPEA. Sérgio Piola era membro dessa equipe. O que a gente fez foi ampliar para todo o Brasil, a proposta de Montes Claros. Há um choque com a proposta da Fundação SESP [Serviço Especial de Saúde Pública]. A Fundação SESP tinha toda uma trajetória importantíssima, desde a [Fundação] Rockefeller, de [Ernani] Braga etc. Havia um modelo de prestação de serviço de extensão da cobertura, que era muito caro. Para pôr essa extensão de cobertura, precisava criar centros de saúde grandes, com muitos especialistas e normas bastante rígidas etc. A proposta do PIASS era uma proposta completamente diferente, pois se tratava de uma proposta descentralizadora, onde as secretarias estaduais e municipais eram os principais autores e atores. Isso era a criação de unidades de saúde de vários níveis, inclusive, algumas da periferia bastante simples; a massificação do treinamento de atendentes de saúde, de agentes comunitários, e pessoal da própria comunidade. Previa-se uma forte participação da comunidade e propostas de saneamento simplificado etc. Foi uma proposta alternativa quase à da Fundação SESP, para permitir uma expansão grande dos serviços.

GH – Você chega a acompanhar depois isso? Ou você só participa?

AP – Eu participo desse momento de instalação. A gente viajava pelo nordeste inteiro e participava de reuniões. Isso é interessante porque é um projeto do Ministério da Saúde e do Ministério da Previdência. A Previdência financiaria as unidades funcionando e o Ministério da Saúde se incumbiria da implantação das unidades. De maneira descentralizada, cada estado tinha um modelo e uma proposta. A gente viajava e discutia com alguns secretários de saúde, que, na época, também eram bastante interessados e mobilizados. Então, foi nesse momento da implantação do sistema, que muitas dessas unidades, nas quais se esperava que o Ministério da Previdência assumisse o funcionamento, não foi cumprido o compromisso. Algumas secretarias de saúde cumpriram e outras não. A avaliação do PIASS propriamente dita, do que aconteceu com essas unidades, inclusive a tese do Eric, em que fui orientador, fala um pouco da avaliação desse momento, em 78. Não há um trabalho, depois da tese dele, não conheço uma literatura posterior, que faça uma boa avaliação do que aconteceu.

GH – Esse momento, já de 78, 79, 80, tem um período de abertura política, de algumas vitórias antes da oposição em 74, 78. Durante esse momento, você estava viajando pelo nordeste brasileiro, fazendo contatos com secretários de saúde. Nesse período, existe um movimento de retomada da política dos partidos? A existência de um processo lento de redemocratização impacta sobre a setorização da proposta?

AP – Existe, sem dúvida.

GH – Qual era o clima, diante de suas viagens pelo Brasil em prol da tentativa de convencimento da descentralização, de mudança?

AP – Você vê que o Estado brasileiro sempre teve fraturas que permitiam aos grupos mais progressistas participar em vários níveis. Nas secretarias de saúde do nordeste, você tinha, por exemplo, a secretaria de Alagoas, era um grupo de esquerda. Quer dizer, não o secretário propriamente dito. O secretário era irmão do Vladimir Palmeira. Mas, não era como o irmão, era um cara aberto, que permitia o grupo de sanitaristas da época apresentar propostas bastante arrojadas. Inclusive, a participação comunitária e a mobilização da comunidade eram vistas com muita suspeição em algumas secretarias. Por isso, a gente tinha trabalhos de difíceis níveis conforme os grupos. Mas, sem dúvida, se você ler os documentos do PIASS verá que eles têm uma linguagem bem mais aberta. O próprio Ministério da Saúde, na época, e o secretário geral do Ministério da Saúde, o José Carlos Seixas, deixou muito espaço. O PIASS, na gestão do Seixas, e o IPEA sempre foram mais abertos. A Previdência que não era tanto, já era mais fechada. Mas, isso o que você está dizendo, acho que a gente sentia. Acho que a proposta do PIASS e a sua expansão só se dão porque já há espaço para as propostas desse tipo. Embora, permanecessem certas restrições. Por exemplo, eu podia trabalhar no PIASS porque eu não precisava de ficha. Quando termina o PIASS, o grupo se dispersa. E não há possibilidade de incorporação do grupo no Ministério da Saúde justamente por isso. Alguns, como o Piola, estavam vinculados ao IPEA. Mas, o pessoal que era da Secretaria de Saúde de Minas Gerais, por exemplo, o Ricardo Scotti e outras pessoas tiveram que voltar para Minas Gerais. Na época, eu fiz o concurso na preventiva de Minas Gerais e também pensava ir à Minas Gerais, na preventiva. Passo nesse concurso da preventiva, mas aparece em Brasília uma coisa interessante, a Secretaria de Serviços Médicos da Previdência Social, com uma proposta interessante de uma pessoa chamada Manoel [?] que, por via do grupo do PPREPS, César Vieira, Carlyle [Guerra de Macedo] etc, ele teve conhecimento da minha existência, e me leva para lá. Quando eu fiquei sabendo, depois que ele já tinha me levado para o secretário geral do ministério, precisou ter que bancar o meu nome à frente do SNI. Eu soube porque, na época, era viável. O SNI vetou meu nome na Previdência, mas o secretário geral se responsabilizou e eu pude ficar. Mas isso, não foi por muito tempo. Foi por um período curto. Não terminou o ano de 79, e começou a proposta do PREV-SAÚDE. O Ministério da Saúde encomenda para a OPS, o acordo da OPS, na gestão do Carlyle, a organização desse projeto, do PREV-SAÚDE. Então, o Mozart de Abreu Lima, que era o secretário geral do Ministério da Saúde, me convida para trabalhar com ele. Eu estava ainda na Previdência. Mas, ele teve que submeter a minha ficha ao SNI do Ministério da Saúde, isso não só permitiu que eu fosse contratado para o Ministério da Saúde, mas que também entrasse em contato com o SNI do Ministério da Previdência. Eu realmente fiquei na rua. Fui demitido pelo Ministério da Saúde, e fiquei sem espaço para trabalhar. Nesse momento, o acordo do PPREPS envolvia a OPS, o Ministério da Saúde e o MEC, mas depois passou a incluir a Previdência Social, ao assinar o acordo. A transformação no acordo MEC, OPS e Ministério da Previdência, e o Ministério da Previdência teve que indicar uma pessoa para esse acordo, então, eu fui indicado pelo Manoel. Então, eu vou na OPS como única forma de continuar trabalhando no PREV-SAÚDE.

GH – Até para a gente começar a explorar um pouco isso, você já tinha contato anteriores com o pessoal desse grupo? Ou até mesmo com o próprio Carlyle?

AP – Estando em Brasília, claro que a gente tinha o contato com esse pessoal todo.

CH – Sua primeira vez, é em 79?

AP – Em 78, no PIASS, a gente já tinha contato com o pessoal da OPS, todos os grupos progressistas se encontravam no CEBES. Tinha gente da UNB [Universidade de Brasília] etc. E eu tinha já, desde 78, uma participação bastante grande com a Comissão de Saúde da Câmara. Como eu te digo, na época, na Comissão de Saúde tinha o Ubaldo Dantas, o Euclides Scalco e outras figuras. Eu, particularmente, tinha um contato muito grande com eles, até mesmo de escrever discursos. A câmara começou a fazer os tais seminários nacionais sobre política nacional de saúde, foram três, eu acho. Teve um sobre saúde do trabalhador, um sobre Previdência Social e o terceiro não me lembro, mas eram grandes seminários nacionais sobre política nacional de saúde, onde vinha gente do Brasil inteiro. Era quase um embrião das conferências nacionais. Claro, não tão estruturada, mas vinha gente do Brasil inteiro, e se organizavam grandes discussões promovidas pelo legislativo, que era bastante ativo nessa época. A gente trabalhava também com a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e com a Campanha da Fraternidade da CNBB, de 78 a 79, acho que foi sobre saúde. Nós escrevemos um documento.

GH – Via CEBES?

AP – Via CEBES.

GH – Você tem um histórico de vínculos com o movimento da Igreja Católica ou não?

AP – Não tinha. Eu estava no CEBES. Tinha o CNBB fazendo essa campanha importante participar.

GH – Não era um vínculo orgânico.

AP – Ainda mais porque conheci o documento que eles tinham preparado antes, que era um horror, do ponto de vista técnico, muito precário. Então, a gente se ofereceu para reescrever o documento. Então era o momento, quando você perguntou aquela coisa de 78, fervilhava. Tinha todas essas possibilidades de trabalhar com o CNBB, com a Comissão de Saúde e com o CEBES. A gente participava de tudo isso, era um grupo que circulava. E agora, o acordo cumpre um papel importante e etc. Toda essa mobilização, ao nível da sociedade civil etc; e da burocracia do Estado, você não tinha esses espaços de interação entre o MEC, a Previdência e a Saúde etc; o acordo aparece, rompendo essa fragmentação. Um espaço de consenso, então, não é a toa que o PREV-SAÚDE, que tinha que ser um projeto integrado, entre a Previdência, a Saúde etc, vai buscar o acordo com OPS. Então, quando a Previdência me indica para trabalhar, eu continuo trabalhando com o Mozart de Abreu; vinculado ao espaço do acordo, que era o único espaço que permitia à gente trabalhar. Ele permitia essa interação com gente dos diversos ministérios. Eu fui para o acordo, não tanto na vertente de recursos humanos. Embora, tivesse um pouco essa trajetória de recursos humanos, através da educação, foi mais na vertente da organização de serviços. Porque o acordo passa a incorporar essa vertente importante. Quer dizer, continua a vertente de recursos humanos, com a Izabel [dos Santos], o [José] Paranaguá [de Santana], o Roberto Nogueira, ainda se cria a nova vertente de serviço com Carlyle e Raul Madeira. E aparece o PREV-SAÚDE como o grande projeto daquele momento.

GH – Deixa eu te perguntar uma coisa importante para a gente, você passa a ser contratado da OPAS? Pelo acordo que tem a transferência de recursos para a OPAS?

AP – O Ministério da Previdência transfere recursos para a OPAS para pagar um consultor.

GH – Tem uma história dos consultores nacionais e internacionais. Eu estou me lembrando... É mais à frente.

AP – Nesse momento, a gente ia como funcionário da OPS. A diferença salarial, na época, é impressionante, mas não era tão grande. Eu, como funcionário da OPS ou como funcionário do governo, tinha o status de funcionário internacional e uma série de regalias. Mas, era um contrato precário. Era com fonte financeira enquanto o ministério te pagasse. Na hora que acabasse, acabou.

CH – O senhor já comentou sobre uma espécie de divisão de trabalho que tinha dentro do acordo. Como que se dava o acompanhamento dos projetos apresentados ao PPREPS, para a cooperação técnica? Qual era a qualidade desses projetos, ao menos durante os primeiros anos em que o senhor trabalhou no PPREPS?

GH – Qual era sua rotina de trabalho? Enquanto grupo executivo de um acordo que tinha várias vertentes, você até estava colocando, o que é muito interessante, o que muitos outros depoentes não colocam. Como era o funcionamento do PREV-Saúde?

AP – Em primeiro lugar, era um pessoal com muita afinidade pessoal e ideológica. A gente era um grupo muito unido, que se reunia dentro e fora do trabalho, que ainda continuava aquelas discussões, e que permanecia no CEBES. Alguns, inclusive, participavam da militância política. Era um grupo que tinha muitas oportunidades. Ainda mais que Brasília facilitava isso, não tinha outra coisa para fazer. A gente como grupo, dentro do trabalho, tinha as reuniões mais formais, onde se discutia os projetos. A Izabel [dos Santos], o Roberto [Nogueira] e o [José] Paranaguá já começavam com a questão do Larga Escala e o treinamento de pessoal auxiliar. O pessoal do MEC começou a se incorporar ao grupo também, mais vinculado a essa linha. Claro, que a gente tinha notícias e acompanhava esses projetos. Mas, eu não me envolvia diretamente nos projetos da Izabel, do Roberto e dos amigos. Eu fiquei quase um ano e meio, no PREV-SAÚDE, participando em vários níveis. Tudo, naquela época, a gente misturava muito o que era formal e o que era a coisa da militância política. Participávamos de um grupo de trabalho na redação do PREV-SAÚDE. A gente trazia pessoas para nos ajudar na parte financeira, na parte técnica etc. O grupo era coordenado pelo Carlyle. E eu, mais diretamente, escrevendo esse documento. E, como te disse, o PREV-SAÚDE era um projeto bem completo, buscava resgatar tudo o que a gente tinha acumulado naquela época, o reconhecimento. Tinha desde o detalhe arquitetônico das unidades básicas, o que é que elas iam fazer e que tipo de especialista teria, a relação com os vários níveis do sistema, e tinha a parte financeira. Então, era um projeto bastante completo, que recuperava a experiência do PIASS, a experiência dos serviços básicos de saúde e da atenção primária. Tinha muito a ver também com o que estava acontecendo na OPS, com o movimento da atenção primária em 78. E, ao mesmo tempo, a gente participava de toda a dimensão política disso. Tinha a Comissão de Saúde da Câmara, se pronunciando em relação ao PREV-SAÚDE, tanto apoiando, como criticando. A gente escrevia as opiniões da Comissão de Saúde a favor ou contra; tinha os ministros de saúde se defendendo das críticas da Comissão de Saúde. A gente também participava da redação da defesa do ministro e circulou o Brasil inteiro, vendendo o PREV-SAÚDE.

CH – Esse é o período de gestão do [Héctor] Acuña. Como é que era relação de vocês com a OPAS-Washington?

AP – Não havia muita pressão. O Carlyle tinha total autonomia, pois ele era mais importante do que o representante.

GH – Aqui?

AP – Sim. Tinha um status assim, desde ter um carro próprio, oficial. Era mais importante do que o representante. O Carlyle tinha financiamento, era o consultor formal da OPS, e muito recurso. Era quase que um enclave dentro da OPS. A gente tinha relações com o resto do pessoal da OPS, mas, o interessante do acordo era que a gente participava da vida de saúde, muito mais do que os consultores da OPS. Os consultores da OPS tinham uma inserção muito especializada. Você tinha o consultor de malária, que ficava ao lado do responsável de malária no Ministério da Saúde e da mortalidade infantil. Não tinha muito a visão no geral. Por exemplo, a gente participou do acordo e da organização da Conferência Nacional de Saúde de 86. O pessoal do acordo participou, diretamente com o Sérgio, de todo o movimento de organização da conferência. O resto da OPS não tinha informação de que haveria uma conferência nacional de saúde em 86. Era quase que dois mundos.

GH – Você diria que essa é uma característica brasileira? Desse tipo? Ou, você tem alguma outra experiência, na América Latina, das relações em que a OPS fosse tão intricadas com os governos e ministérios nacionais?

AP – Não conheço. Tem a experiência dos consultores nacionais. Depois, quando o Carlyle assume, a questão do consultor nacional na qual a OPS, também tem que fazer uma flexibilização dos seus contratos. Antes, era consultor internacional, com todas as regalias e custos de um consultor internacional. Depois, a OPS precisa flexibilizar. Então, passa a criar novas formas de contrato. Esse consultor nacional, que se experimenta aqui no Brasil, passa a ser um modelo para os outros países. Então, passa a se contratar nacionais para trabalharem dentro da OPS, em regime precário, mas que fazem essa ponte, a possibilidade de mobilizar talentos locais localmente. São mobilizados talentos para trabalhar em outros países, ou em Washington, e também talentos locais para trabalharem localmente, que era, na verdade, um esquema nosso. Nós éramos consultores da OPS, trabalhando no Brasil. Depois, essa figura desapareceu.

GH – O que foi o PREV-SAÚDE? Quer dizer, a proposta. Qual é sua visão? Porque a gente tem umas siglas as quais pessoas vão repetindo no tempo, mas que acabam perdendo o sentido.

AP – Eu acho, como eu te dizia, que ela não cai do céu. Ela é toda uma culminância de um processo de discussão de todos esses projetos que nós já comentamos, e que o movimento sanitário participava desde os anos 60, da mobilização das medicinas preventivas, das propostas de uma nova forma de prática médica e tudo mais. Você vai acumulando um conhecimento e uma discussão. Você pode ver todo esse material que eu trouxe, de vários intelectuais da época, que o reconheceram. O Hésio [Cordeiro] e outros reconhecem o PREV-SAÚDE como algo que em um determinado momento consegue juntar tudo o que o pensamento sanitário brasileiro tinha acumulado naquele momento. Como eu te disse, isso vai desde uma descrição detalhada do modelo até o começo do reconhecimento de um setor informal, que passava a fazer parte do próprio sistema. E depois, de um setor formal de serviço básico, de atenção no primeiro nível, que era basicamente estatal. Realmente, o setor privado seria suplementar. E, depois, o nível secundário e terciário com uma forte participação estatal, mas já admitindo a relação com o setor privado. Então, a gente começa, no PREV-SAÚDE, a discutir o que o movimento sanitário na época não discutia, que é a relação público-privado e a relação com o setor privado. É interessante porque temos uma coisa paralela, quando termina o PREV-SAÚDE, chega da Inglaterra o César Vieira. O César Vieira, nesse período, estava na Inglaterra fazendo um curso na OMS [Organização Mundial da Saúde]. O Carlyle propõe que eu e o César Vieira façamos uma pesquisa sobre as modalidades privadas de prestação de serviços. Na época, parecia a medicina de grupo, de serviços próprios das empresas e tudo isso. A gente começa a ter contato com esses grupos, a entrevistar o pessoal da Federação Brasileira de Hospitais das medicinas de grupo, a Unimed etc, para entender a lógica de funcionamento dessas modalidades. Isso é interessante porque, para nós, eu e o César, começa a criar uma certa ruptura com o movimento sanitário que ainda, quase que rejeitava a existência do setor privado. Como que não queria nem ouvir falar. Falava-se muito, no movimento sanitário, do setor público, estatal. O interessante é que começa toda uma discussão sobre as relações público-privado.

GH – Isso se expressa na proposta do PREV-SAÚDE?

AP – Não, isso foi posterior. O PREV-SAÚDE é muito público e estatizante. Mas, já dá uma abertura para a participação do setor privado que, depois, quando o PREV-SAÚDE é enterrado, a gente começa a retomar, inclusive, criando um programa de pesquisa sobre sistemas de saúde. Eu não trouxe, mas tinha um documento escrito por mim e por César, é uma série de linhas de pesquisas propostas para a participação do setor privado etc. É um grupo que começa a propor coisas na área de organização da atenção etc, importantes para desembocar no SUS. O SUS, depois, de alguma maneira, eu acho que incorpora muita coisa que estava no PREV-SAÚDE e incorpora a visão das relações público-privado e a questão da atenção complementar. Mas, voltando ao PREV-SAÚDE, ao que você tinha perguntado. O PREV-SAÚDE também foi um espaço de discussão, como eu já disse anteriormente, com distintos atores do sistema de saúde. Na época você tinha a Previdência Social como ator importante, que participava do PREV-SAÚDE. Você tinha também o [Roberto] Nogueira e o Jair Soares, como ministro você tinha o Waldyr Arcoverde e com sua tradição de planejamento na Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul e o Mozart [de Abreu e Lima]. Tinha o pessoal do MEC, com a questão dos estudantes universitários, o secretário da SESU [Secretaria de Educação Superior], um tal de Gladstone [Rodrigues da Cunha Filho]. Então, a discussão do PREV-SAÚDE mobilizava toda essa discussão dos estudantes universitários e o papel da Previdência Social. Acho que se gera debate, discussão, documentos, e vai se gestando a proposta do próprio SUS. A Conferência Nacional de 86.

GH – Por que o senhor falou “até o PREV-SAÚDE ser enterrado”. Parece que são três anos bastante intensos, pelo que você falou, de debates. Vocês estavam escrevendo artigos para todos os lados?

AP – Enterrado em termos. Enterrado como projeto. A idéia era muito ambiciosa, era fazer um projeto com um custo bastante grande e todos os recursos em cima desse projeto. A idéia é de que esses recursos seriam basicamente internos. Eu e o Carlyle fazíamos uma projeção, junto com economistas, em relação ao crescimento da arrecadação da previdência. Na época, havia muita euforia quanto à economia, que ainda continuava crescendo. Não era depois da crise dos 80. Ainda estávamos nos 70, 79. Tinha uma certa euforia, um resquício dos crescimentos grandes dos anos 70. E havia uma perspectiva de que ia continuar crescendo a arrecadação da previdência, e que ela ia ser cada vez maior. Todos esses recursos iriam para o projeto. A previdência, na época, rechaçava.


FIM DA FITA 1/LADO B

Entrevista 2

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PROJETO:
HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

Data:
7 de junho de 2005

Depoente:
Alberto Pellegrini (AP)

Entrevistadores:
Carlos Henrique Assunção Paiva (CH)
Gilberto Hochman (GH)

N° da Entrevista: S/N
Código: 2/ 3

Transcrito por:
Andrea Ribeiro – Setembro 2005


FITA 2/LADO A

 
AP – Os recursos, por outro lado, limparam todos os órgãos do PREV-SAÚDE. Então, quando eu digo que enterrou, foi enterrado como um projeto com esse custo, para fazer a construção de todas unidades básicas e contratar todo esse pessoal etc. Mas como idéia e como proposta, ficou muito vivo. Foi um momento da gestão de idéias e de propostas de uma política nacional de saúde, de organização de um sistema de saúde, que deu frutos, sem dúvida.

GH – Você estava falando de posições diferenciadas, na verdade, quem estava a favor ou contra? Quais eram as principais articulações para dentro dessa proposta? Você falou que, ao mesmo tempo, a Comissão da Câmara tinha vozes de crítica ao ministro; o ministro também respondia? Qual era o debate em torno do PREV-SAÚDE? Quais eram as questões que eram motivos de polêmicas ou de disputas por encaminhamentos?

AP – Isso é complicado. Você sabe que eu precisaria recuperar ou rever todas essas discrepâncias. Eu me lembro que a crítica da Previdência Social era muito forte porque a Previdência tinha que bancar. A idéia de pôr todos esses recursos em um único projeto, sem a certeza de que esses recursos realmente existissem etc. A crítica da Previdência Social era muito em cima da questão financeira e da manutenção do serviço. Agora, a crítica da Comissão de Saúde, a intelectualidade, o Hésio [Cordeiro], por exemplo, saiu apoiando muito o PREV-SAÚDE. O Ele foi um dos porta-vozes de defesa do PREV-SAÚDE. O Carlos Gentile [de Melo], de alguma maneira, também. Se você vê aquela entrevista no Conselho Regional de Medicina, tem a posição do Gentile. Havia alguma crítica de setores mais progressistas da idéia de medicalização exagerada, de um excessivo. Tinha o pessoal que fazia crítica da atenção primária, aos setores mais tradicionais que viam nisso uma perda da importância da atenção secundária e terciária. Normalmente o PREV-SAÚDE não falava muito de nível secundário e terciário. Era uma visão muito de serviço básico e de ampliar a porta de entrada etc. Havia a resistência de setores clínicos, que diziam que era uma proposta capenga, muito centrada no serviço básico.

CH – Medicina para pobre?

AP – Medicina para pobre. Tinha os setores mais progressistas que faziam esse tipo de crítica, da Medicina para pobre que era considerada uma coisa de segunda categoria, medicalizava. Você tinha críticas, desde a mais à esquerda e à mais direita. Mas, no geral, acho que havia um certo consenso de opinião dos intelectuais e sanitaristas etc, de apoio à proposta.

CH – Minha pergunta está ainda dentro dessa questão, o senhor falou do Carlos Gentile e do Hésio, eles saíram do projeto. Nesses três anos, durante suas reuniões, como é que vocês avaliavam o projeto?

GH – Termina como? Termina por desinteresse das partes?

AP – Não, quem enterra é a Previdência. Chega um momento em que a Previdência diz “não”. Ela tinha dado muita corda durante muito tempo, de não tomar uma decisão. Até que chega um momento em que diz que “não”. E, depois, realmente, de toda aquela euforia, em que se acreditava na economia etc. Aquilo acaba caindo. Nos anos 80, começa a complicar, a ver que era irrealista aquela projeção que se fazia do recurso para a saúde, da Previdência. E, depois, começa a subir com o Hesio. Acho que atinge o pico e que o INAMPS gasta 30% do orçamento da previdência em saúde, só com o Hesio. Então, a pá de cao foi a questão financeira. Não foi tanto a resistência, ao modelo ou a política.

GH – Esse, me parece, que é um período único. Exatamente quando a política, em um sentido de possibilidade de transformação do sistema de saúde, está junto com a política pública, estatal.

AP – Sim, você estava se recuperando da paulada de 68. A paulada não é só em 68. Depois, vem toda aquela questão da luta armada como única válvula de escape. A partir de 74, começa o próprio Geisel, a abertura etc, começa a se abrir dentro do Estado, o IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] etc, as válvulas de escape que permitem uma participação política e propostas avançadas. O PESES [Programa de Estudos Sócio-econômicos em Saúde] era muito claro. O nosso projeto inicial era muito isso, ver a participação política desde dentro dos movimentos sociais em saúde. O Eduardo Jorge faz toda a sua militância política e cria sua base de deputado na zona leste de São Paulo, através de um projeto de saúde, desse tipo.

CH – O senhor estava comentando sobre como que havia um certo fermento ideológico que unia esses grupos. Essa ideologia também provocava dissenso. Ela é congregadora e também desagregadora em outro nível. Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre esses dissensos ideológicos, no campo da saúde, nesse momento.

AP – Eu acho que o PREV-SAÚDE, ainda é uma proposta bastante estatal, pública. Quando termina o PREV-SAÚDE a gente começa, dentro do grupo, a questionar isso, a achar que o próprio PREV-SAÚDE era muito limitado, que realmente a gente tinha que se dar conta de tudo que estava acontecendo no Brasil. Naquela época, você já tinha uns 30 milhões de pessoas sendo atendidas por sistemas de medicina de grupos, serviço próprio de empresa, Unimed etc. A gente não estava sabendo o que estava acontecendo. “Então, vamos estudar isso”. A gente forma um grupo de pesquisa. Esse grupo de pesquisa é engraçado porque precisava ter uma certa legitimidade acadêmica, para gente poder ir nesses lugares e dizer que era pesquisador. Então, o Carlyle [Guerra de Macedo] pede para a Fiocruz, acho que, na época, o Guilardo [Martins] era presidente. Pede para a Fiocruz uma credencial para o César Vieira e para mim, para podermos entrevistar essas pessoas. A Fiocruz dá para o César Vieira, mas não dá para mim, então, fui como ajudante do César. Mas, sem poder dizer que era pesquisador. A gente escreveu algumas coisas sobre isso. Entrevistamos um montão de gente. Alguns setores do movimento sanitário começaram a ver que a gente estava traindo o movimento. Porque, naquela época, havia muito essa coisa como público-privado como se público fosse estatal, como se isso não pudesse. Era uma fratura entre o pessoal que era mais fundamentalista, do setor público. Mas, isso depois, foi se diluindo e por volta de 86.

GH – Em relação a passagem do PREV-SAÚDE, já como consultor OPAS [Organização Pan-americana da Saúde], a identidade também de ser OPAS-OMS, e não mais brasileiro no sentido da inserção, você sentiu alguma diferença ou separação?

AP – Não.

GH – Nunca sentiu essa diferença?

AP – É como te digo, a gente realmente não era OPS. A gente ocupava um andar.

GH – Nem eram visto como tal?

AP – Não tínhamos quase contato com o outro andar. Exceto, através do cumprimento as pessoas, mas a gente não se sentia OPS. A gente se sentia brasileiro, vinculado ao projeto brasileiro.

GH – Eu queria voltar à relação do acordo [OPAS-Brasil para a formação de recursos humanos em saúde] e a questão dos recursos humanos.

AP – Aparece uma outra vertente, que é a minha trajetória. Você começa como acordo de recursos humanos e com a questão do ensino médico. O [José] Paranaguá está mais metido na questão do ensino médico. E o próprio Frederico Simões Barbosa e os programas de integração de assistência social e tudo isso. A Izabel [dos Santos] mais com a questão do auxiliar [de saúde]. Depois, entra a vertente de serviços de saúde forte, com a previdência. Depois, entra a terceira vertente, na qual eu entro, que é a da área da pesquisa. Em Washington, o Juan César García, que trabalhava no setor de recursos humanos, com educação médica, sabe, vai se aproximando da área de pesquisa e sendo responsável informalmente pela unidade de pesquisa da OPS, que inicialmente está vinculada a recursos humanos. A área de pesquisa na OPS, não é uma área de execução de pesquisa propriamente dita, mas é uma área de política científica, de ciência e tecnologia. Coisa que é uma novidade dentro de um organismo sanitário etc. A OPS sempre trabalhou com pesquisa, executando pesquisa com Oswaldo Cruz da vida. A área de política científica, de definição de políticas, trabalhos com CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]; isso, na OPS, não existia. O Juan Cesar García, mais uma vez, inaugura isso, dentro da OPS, criar a política científica. O Carlyle, eu me lembro, em um dado momento, fala: “pô, lá em Washington estão pressionando a gente, para ter também um grupo de pesquisa”. Eu, de alguma maneira, venho dessa vertente, porque, no meu passado, trabalhei na área básica. De alguma maneira, nunca deixei de estar informado, de me interessar por essa área, e passei a me responsabilizar por isso, dentro do grupo. Comecei a viajar muito para Washington. Fiquei quatro meses em Washington, trabalhando com Juan César García, voltando, comecei a fazer estudos. Tem um estudo que eu trouxe sobre tendências da pesquisa em saúde no Brasil que, pela primeira vez, a gente fez uma cienciometria no Brasil, uma coisa que não se fazia, pegar Index médicos e contar, área por área. Não tinha nada disso. Pegava os index médicos e contava aquilo. Um trabalho de chinês. Tinha essas coisas. Quando o Carlyle vai para Washington, o Juan César García vai ser formalizado como responsável pela área de pesquisa. Ele falece nesse momento. O Carlyle convida o Hesio Cordeiro para coordenar essa área, e o Hesio Cordeiro é indicado para o INAMPS [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social]. Abre um concurso e eu ganho o concurso. Saio daí e vou para Washington, fico 20 anos lá. O grupo criou mais uma vertente, que é a vertente da área da pesquisa, onde eu entrei.

GH – Essa ninguém tinha falado.

AP – O PREV-SAÚDE foi entre 80 e 82. Em 82, o Carlyle é eleito e eu saio da OPS em 86. No começo de março de 86, eu vou para Washington. Porque eu entro para o grupo do PREV-SAÚDE no fim de 79 e início de 80. Fico nessa área de pesquisa de 81 até 86.

CH – Ciência e tecnologia em Saúde?

AP – Ciência e tecnologia em Saúde. E, cada vez mais, a área de saúde coletiva, vai se incorporando como mais uma vertente da área de política científica.

GH – Puxando um pouquinho para trás, eu tenho também algumas perguntas sobre sua trajetória na questão do Acordo [OPAS-Brasil e formação de RH para a saúde], que me interessa. O PREV-SAÚDE é uma nova vertente no acordo de recursos humanos. Como essas vertentes se articulavam enquanto grupo? Qual era a sua conversa com temas de recursos humanos, ainda que a gente saiba que não foi exatamente o tema central no seu trajeto no acordo? Qual era o diagnóstico que você tinha ou que vocês tinham sobre a situação? Todos esses projetos eram para mudar alguma coisa, baseado em um diagnóstico. Como é que esses diagnósticos se encontravam? E como é que essas ações poderiam se encontrar? Ou se desencontrar por algum momento?

AP – Claro que havia, no PREV-SAÚDE, toda uma parte de recursos humanos, que era basicamente de recursos humanos de nível médio e auxiliar elementar. A gente tinha a participação do grupo da Izabel e do Paranaguá.

GH – Esse era o diagnóstico de vocês sobre a fragilidade da formação? Isso era consenso? Por exemplo, a preocupação do PREV-SAÚDE com o nível médio no problema da atenção básica.

AP – O projeto da Izabel tem duas vertentes. Tem uma vertente que é a questão da capacitação e treinamento em larga escala, que era você ter atendente de saúde e auxiliar de saúde realmente capacitada. A Izabel [dos Santos] sempre insistiu na questão técnica e em uma metodologia que permitia massificar. A Fundação SESP [Fundação Serviço Especial de Saúde Pública] fazia isso, mas uma coisa é fazer meia dúzia, outra coisa é fazer centenas de pessoas. A outra coisa era a questão da legitimação desse profissional, que era o grande trabalho da Izabel, junto com o Ministério da Educação, de reconhecer as profissões de maneira que um aluno, que fazia um curso em uma secretaria de saúde, tivesse um mercado de trabalho nacional com uma profissão reconhecida. Essa foi a grande batalha da Izabel. Ela ganhou nas duas frentes. Conseguiu desenvolver uma metodologia de treinamento, capacitação de larga escala. E também no reconhecimento desses níveis profissionais que, antes, eram marginais e até perseguidos. Uma forma de prática médica ilegal. Essas coisas a gente acompanhava. O PREV-SAÚDE buscava incorporar o serviço básico do PREV-SAÚDE muito em cima desse tipo de profissional. Eles participavam muito da discussão. Tinha um projeto específico. Eu não discutia diretamente a questão do treinamento do auxiliar e dos manuais que a Izabel desenvolvia junto com os pedagogos. A gente tinha informação, mas não participava.

GH – O aporte de recursos eram às iniciativas e aos projetos que eram completamente separados. No PREV-SAÚDE você não tinha aportes para treinamento?

AP – No PREV-SAÚDE estava previsto, sim. Se você ver no projeto que eu deixei com você, tem toda uma discriminação dos gastos, desde construção dos gastos até treinamento de pessoal e a contratação de pessoal. Tudo isso estava previsto no orçamento.

GH – Outra questão, você estava me falando das relações entre o CEBES [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde] e a ABRASCO [Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva].

AP – Esse grupo é importante na própria criação da ABRASCO. A criação da ABRASCO se deu lá.

GH – Eu estou fazendo uma relação com a vertente de pesquisa, com o campo da saúde coletiva.

AP – Você vai incorporando.

GH – Ele é profundamente politizado, por um lado, sempre em propostas, demandas. Ao mesmo tempo, ele tem que ter o seu pedaço acadêmico? Em qualquer congresso da ABRASCO, você vê que essa tensão está presente. A trajetória da ciência e tecnologia em saúde, como duas coisas que convivem, é uma coisa, e outra coisa é isso se realizar na prática. Acho que por um lado, a gente tem apenas uma reversão desse processo, como hoje, mais legitimidade acadêmica, menos política.

AP – Acho que o pêndulo está pendendo.

GH – Pela tendência, talvez, do processo de profissionalização da ciência no Brasil.

AP – A última fala do [Sergio] Arouca, em um congresso em Salvador, ele falou da necessidade de retomar um pouco o outro lado também. Porque o pêndulo fica oscilando, era demasiado político-ideológico. Ele reflete aquele momento onde você não tinha outro lugar para fazer política. Eu acho que se exagerou um pouco com a questão da legitimidade acadêmica.

GH – Você está indo para Washington em 86, no ano da 8ª Conferência [Nacional de Saúde]?

AP – Eu participei dos momentos de 85 da comissão de organização da conferência. Tive contatos com Arouca, Eric [Rosas] e todo esse pessoal que participou da organização. Mas, na hora da conferência, Washington me obrigou a assumir em março porque o concurso foi em janeiro. Tive que ir às vésperas da conferência. E voltei só no ano passado [2004].

GH – Você tinha quantos anos?

AP - 18 anos.

GH – A modificação da organização de serviços implica na idéia também de planejamento? Você tem algumas inspirações nesse processo? Do ponto de vista de leitura, de pessoas? Você vai até se tornar um especialista em planejamento de serviços, ciência, tecnologia em saúde e pesquisa. Seu processo foi empírico?

AP – Teve muito de empírico. Acho que isso é na fase heróica da formação de quadros. Não tinha tanta formalização, recursos etc. Claro, nessa época vai se começando a formar. Você já tinha o Instituto de Medicina Social [IMS/UERJ] fazendo a pós-graduação em saúde, mas com poucas alternativas. Era muito esquema de discussão intensa de bibliografia em várias áreas, em grupo. A minha formação na área de política científica deu-se através de cursos curtos, mas era muito na base autodidata e de discussão com os que inspiravam. O próprio [Juan César] García inaugura a área. Ele tem toda uma projeção de formação pelo menos na área de política científica.

GH – Para Washington, em 86, com uma posição de pesquisa e desenvolvimento tecnológico em saúde, qual era a sua atividade e a perspectiva sobre o que fazer do ponto de vista do lugar da OPS?

AP – Nesses anos pós PREV-SAÚDE, eu trabalhei muito de perto com o FINEP [Financiadora de Estudos e Projetos], com o Programa de Saúde Coletiva da FINEP. A gente escreveu o programa, depois teve o CNPq. Trabalhei sempre junto deles, escrevendo o documento. Trabalhei na Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde desde a sua formação. Também fiz alguns estudos sobre tendências da produção científica. Estava sempre em contato com o César [Vieira], de ir três vezes por ano à Washington, para trabalhar nos projetos dele. Eu conhecia muito bem o que era possível fazer na OPS. Eu tentava levar as coisas que a gente estava fazendo aqui, sempre pegando a trajetória da política científica. E sempre acreditando que a saúde coletiva deveria incorporar a política científica como parte da política de saúde. Essa coisa que hoje se fala, que é a política de investigação em saúde. Quando eu vou para Washington há uma área relativamente nova, o Juan César [Garcia] tinha começado isso em 81, por aí. Era uma área meio marginal dentro da OPS de Washington. Você tinha uma larga tradição de pesquisa etc, mas não de política científica, de trabalho com os conselhos de ciência e tecnologia. Então, eu começo a trabalhar por aí. Tento levar para Washington aquilo que eu fazia aqui, trabalhando junto com os conselhos de ciência e tecnologia na definição de política científica, na metodologia e na definição de prioridades. Uma visão da pesquisa de saúde mais dentro da área de saúde coletiva, na promoção do desenvolvimento da área de saúde coletiva e de grupos de pesquisa. Na época, a gente tinha recurso, muito dinheiro, quase US$ 2 milhões por ano, para financiar os projetos e financiávamos projetos.

GH – Era direto, ou via conselhos nacionais?

AP – Direto. Depois, começou a aumentar a coisa, os estudos multicêntricos. Você pegava um tema como violência em saúde e estudava na região com grupos trabalhando em torno do mesmo protocolo, em apoio às teses de doutorado, em trabalho com os posgrados. E, mais recentemente, de 97 para cá, junto com a BIREME [Biblioteca Regional de Medicina], todo o trabalho na área das bibliotecas virtuais, que a gente sempre vê como um depósito de documentação etc, mas também, como um espaço de interação. Não usar a BVS para discussão de prioridades e toda essa criação da idéia de inteligência coletiva, mas como um espaço de reflexão, de criação de redes, como a Red ScienTI, que é um projeto nosso, que usa basicamente a plataforma Lattes, de currículos, projetos e grupos para intercâmbio de informações, de indicadores e de dados sobre a situação da pesquisa na região como um todo. Mas, como você vê, tudo isso é uma vertente de política científica, que eu acho que é coerente com toda essa história.

GH – A idéia das relações entre pesquisa e saúde coletiva, pensando a partir das iniciativas do Juan César, quando você chega, tem um diagnóstico negativo, problemas? Qual era a pauta de problemas que você chega a enfrentar? Claro, que isso vai mudando ao longo de 20 anos. E, depois da internet, o patamar da criatividade mudou. Sendo assim, quais as questões que estavam sendo colocadas?

AP – Chegando em Washington tem uma questão muito séria, pois você começa a se dar conta de que toda essa fase heróica da formação autodidata é insuficiente para você produzir conhecimento. Por exemplo, nós, os médicos com toda essa formação biológica, durante todo esse processo, nos travestimos de economistas, sociólogos, antropólogos etc. Então, figuras como o próprio Arouca, e nos travestimos de fazer coisas que, de alguma maneira, poderia ser suficiente. No momento em que você fala em produzir conhecimento de verdade, você precisa partir para uma outra forma. E eu acho que estavam dadas as condições... Tinha lugares onde fazia política e tinha a academia. Precisa ver o equilíbrio dessas coisas. Mas, chegando em Washington, o grande problema na área, tanto no Brasil como na América, acho que morreu como um todo, a questão da competência técnica dos grupos de pesquisa. Então, a nossa grande preocupação, embora tivesse dinheiro para financiar projetos, era a qualidade dos deles. Isso é até hoje. Principalmente naquela época, começamos a rejeitar projetos.

FIM DA FITA 2/LADO A

FITA 2/LADO B

AP – Eu tinha contato com os grupos de pesquisa no Brasil e através desses, eu tinha também contato com Washington e também com os grupos de pesquisa na América Latina. Quando fui a Washington, já conhecia muitos grupos de pesquisa na América Latina, porque a gente freqüentava Washington, através do Juan Cesar, visitávamos os grupos da América Latina. Quando você chega lá e tem esses recursos, o pessoal começa a te mandar projetos, esperando ser financiado. E a gente começa a rejeitar. Esse programa, antes de eu chegar aprovava 70% das propostas. No primeiro ano em que eu cheguei, aprovou 20% das propostas recebidas. A primeira coisa que nós fizemos, foi um comitê revisando os projetos integrados por gente que realmente entendia de pesquisa clínica, pesquisa básica e de pesquisa social. Causou uma resistência muito grande, inclusive, em algumas pessoas que tinham um certo status. Existia essa cultura de você ter o projeto rejeitado na área básica, mas na área nossa não, isso não havia. Era quase uma ofensa pessoal. E eu acho que isso tem um sentido pedagógico. A qualidade dos projetos começou a ir melhorando, e o pessoal se deu conta disso. O pessoal faz projetos bons para uma agência americana, mas faz projeto a OPS. Os projetos tinham um papel pedagógico. Depois também, o esforço de melhorar o trabalho junto aos cursos de pós-graduação. Hoje, você tem grupos de boa qualidade.

GH – A gente entrevistou também o José Roberto [Ferreira] que está, nesse momento, com recursos humanos e falando da formação das escolas de saúde pública etc. Vocês, de alguma maneira, estavam também na passagem do acordo etc. Como que se dava a relação entre essa perspectiva de ciência e tecnologia em saúde com fomento e melhoria da qualidade na profissão, nos projetos, você está falando da pós-graduação na perspectiva da formação das escolas de saúde pública? Em Washington, como é que essas coisas se davam?

AP – Não era de forma orgânica, mas eu tinha muito contato com o pessoal de recursos humanos, até porque isso era uma coisa interessante na OPAS, pois o [Hector] Acuña tinha uma pessoa bastante conservadora. Ela reprimia, inclusive, certas pessoas que tinham outras idéias. A OPAS era uma organização bastante conservadora. Você tinha uma certa ilha, na OPAS, que eram os programas de recursos humanos, onde estava Juan César García, Miguel Marquez e uma série de pessoas que eram muito afinadas com esses grupos que a gente mencionou no Brasil. Não era a toa que a gente tinha um vínculo muito grande com outros grupos que eles se identificaram na América Latina e formaram essa rede de sobrevivência. Sobrevivência, às vezes, em um sentido literal. Tinha gente que era perseguida, por ditaduras, que sobreviveu graças a esse vínculo com Juan César, podia ir para um outro país, ser recebido e contratado por um outro grupo, no exílio. Eram vários casos assim, a gente conseguiu estabelecer essa rede, onde o Juan César tinha um papel muito importante. Você perguntou sobre o setor de recursos humanos da OPS, se ele sempre cumpriu esse papel de setor mais progressista, e perguntou também sobre a Izabel dos Santos e uma série de pessoas. Quando eu cheguei em Washington já tinha se separado da área de pesquisa. A área de pesquisa nasceu no grupo de recursos humanos, com Juan César. Mas, com o Carlyle [Guerra de Macedo], ele cria um programa à parte. Então, eu vou a um outro programa, que não tem nada a ver com recursos humanos organicamente, que era a minha base de conhecimento. Eu tinha uma relação muito boa com o Zé Roberto [Ferreira] e todo seu grupo. Mas, organicamente, você me pergunta, eram projetos comuns? Claro que algumas coisas a gente fez em conjunto. Por exemplo, isso já foi mais tarde, você lembra aquela série de discussões sobre a crise da saúde pública e sobre as publicações que saíram em torno disso? Foram várias reuniões em vários locais da América Latina e discussões sobre esse tema. A gente trabalhou junto nos programas de pesquisa e de recursos humanos.

GH – Na relação com as escolas de saúde pública?

AP – Sim. Quanto às escolas de saúde pública, eu participava das reuniões das escolas de saúde pública, da ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz], quando eu vinha nas reuniões me pediam para falar alguma coisa etc. A gente tinha relações diretas com grupos de pesquisa e com pesquisadores, inclusive nos seminários de metodologia de pesquisa.

CH – É interessante ver que a saúde coletiva é uma proposta nacional, não?

GH – Com esse nome, pelo menos?

CH – Sim, com esse nome.

AP – Sim. Mas, acho que na América Latina, como um todo, teve um movimento de transformação da saúde pública. No Brasil tem tantas explicações para o surgimento desse nome.

GH – Você se lembra por que a ABRASCO, Associação Brasileira de Saúde Coletiva?

AP – A ABRASCO, de alguma maneira.

GH – Ao mesmo tempo, o Instituto é de Medicina Social, tem mais ou menos, o mesmo movimento, o CETEM [Centro de Tecnologia do Ensino Médico?] e as medicinas coletivas, que elas continuaram com esse nome.

AP – O Juan César propunha muito o nome de “medicina social”, inclusive com as tradições que vinham da Europa, e ele usava muito a “medicina social”. A UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], na criação de seu curso teve a participação do Juan César. Ele também contribuiu para a criação do curso de Xochimilco, no México. O nosso movimento sanitário, que vem da medicina preventiva e social, começa a fazer críticas à idéia de medicina. Porque a gente já começa a querer romper com a idéia de medicina social, que não é uma especialidade da medicina. A saúde pública, na época, era a saúde pública da Escola de Saúde Pública de São Paulo, que é mais tradicional. A escola de saúde pública daqui, não é tão tradicional como a de São Paulo, mas, nesse momento, a gente não queria se chamar ‘saúde pública’. Então, acho que tinha muito a ver com isso, de querer uma identidade própria. Era um movimento que pegava coisas da saúde, da medicina social junto com saúde pública para criar algo novo, que foi a saúde coletiva. Acho que foi a busca de uma identificação. Mas, na América Latina, isso não teve.

CH – O senhor não acha que, em alguma medida, a saúde pública tinha um tom muito estatizante? A gente até já falou um pouquinho sobre isso na nossa entrevista.

AP – Tem um lado estatizante, mas tem um lado também muito pré-transição epidemiológica. Acho que na área de saúde pública era mais tradicional, era muito a questão da doença infecciosa, do enfoque epidemiológico e da pré-transição. Era a questão do agente hospedeiro e a questão da história natural das doenças. Ela usava certos referenciais bem próprios. Eu acho que a saúde coletiva nasce pós-transição epidemiológica, se é que a gente pode usar esse termo de transição epidemiológica. Sei que aqui no Brasil isso é muito complicado, mas só para usar alguma coisa, dizer que quando você, em questão da importância dos outros condicionantes, mais além da própria multicausalidade e da questão da combinação de estilo de vida com condição de vida. Toda essa preocupação de novos temas. A própria OPS começa a fazer a gestão nos anos 60, pois ela vinha de uma coisa pré-transição, era uma instituição basicamente de enfermidade infecciosa, que começa a incorporar, a própria área de recursos humanos e de ciência e tecnologia, e a parte de sistemas de serviços, que também é novo na OPS. A nossa saúde coletiva nasce englobando todas essas áreas, de Recursos humanos e de organização de serviços. Em relação à política científica, ela vai incorporando as Ciências Sociais, de Humanidades e etc. A saúde coletiva já nasceu sob essa égide de uma visão de saúde muito mais vinculada à política e às condições de vida. Ela sempre politizou a questão de saúde, no entanto a saúde pública sempre foi uma questão mais técnica.

CH – Eu gostaria de falar sobre os periódicos da OPS. A gente não chegou a falar nada sobre eles, nem sobre o Boletim [da Oficina Panamericana] ou a revista Educacion Médica y Salud. O senhor, inclusive, publicou pelo menos um trabalho na Educação Médica. Como é que o senhor encara esse veículo de divulgação?

GH – Você tinha alguma relação com o Boletim, e depois com a revista pan-americana como instrumento desse processo de ciência e tecnologia?

AP – A área de pesquisa, teoricamente, deveria ter. De fato, a gente tinha formalmente um comitê editorial. Eu fazia parte dele. Não propriamente, o comitê editorial da revista, que é o que revisa os artigos. Era uma espécie de comitê que revisava a política de publicações da OPS. A Educação Médica em Saúde nunca foi bem vista por esse establishment da OPS, na área de publicação. A revista Educação Médica em Saúde era publicada pelo programa de recursos humanos e o Boletim da Oficina Sanitária Pan-americana era publicado pelo setor de publicações. A revista Educação Médica em Saúde não era bem vista pelo setor de publicações tanto pela parte ideológica, pelo tipo de artigo que se publicava; mas, também, por que acham que ela não cumpria com certos requisitos de review rigoroso, de uma série de normas que a Educação Médica em Saúde não cumpria. De fato, publicava coisas não muito dentro da medicina. Tanto que, em dado momento, se resolve acabar com a Educação Médica em Saúde, achando que ela deveria ter um veículo único e forte, incorporando os temas da Educação Médica em Saúde, dentro do boletim, que se passou a chamar Revista Pan-americana de Saúde Pública. Cada vez mais, dentro da coisa da legitimidade social e da legitimidade acadêmica, a obsessão para que a revista entre no ISI [Institute of Scientific Information], porque a revista por muito tempo nunca foi indexada como ISI. Então, para indexar no ISI, teria que cumprir uma série de coisas, embora seja a revista uma das revistas mais citadas na América Latina. Ela nunca entrou na época a ISI, porque a ISI não se interessa. Quando o [Eugene] Garfield fez a ISI nunca passou pela cabeça dele, que os pesquisadores brasileiros iam ter o seu salário definidos em função...

GH – Aqui é assim?

AP – Eu sei. O Garfield nunca imaginou que isso fosse acontecer. Porque, realmente, é uma loucura. Ele criou essa base de dados para atender a determinadas necessidades dele, enquanto instituição privada e enquanto país. Coloca as revistas que ele acha que deveria colocar, não somente pelo critério de qualidade, mas por uma série de critérios. A gente usa como referência de qualidade máxima. As revistas internacionais são definidas em função disso. Por sorte, agora acho que o Scielo está criando um índice à parte, que vai permitir você reconhecer as revistas que realmente são importantes para a comunidade científica local. Mas, anyway, a idéia da Revista Pan-americana entrar na ISI, fez com que ela fosse bastante estrita em determinados critérios de publicação. Sempre houve toda uma discussão de que a revista é quase que uma miscelânea, pois ela publica coisas sem ter uma linha editorial muito definida. Se você olha a revista, você não vê uma clara identificação com o movimento ou com uma visão de saúde. A revista de Educação Médica em Saúde era um fórum de debates e de temas de política mais geral. Por isso, que era muito criticada. Porque realmente tinha alguns artigos que não tinham nada de artigo científico original. Eram especulações. Tinha o Boletim Epidemiológico, que também acabou. Ele era feito com muito critério. Ele dependeu de uma pessoa, que foi durante muito tempo responsável por isso, mas que também desapareceu. Hoje, você só tem a Revista Pan-americana. Claro, que você não pode esquecer a questão da BIREME, pois com ela se abre toda uma nova vertente de publicação virtual.

GH – A BIREME estava articulada diretamente ao seu programa? Ainda que ela tenha bastante autonomia por estar aqui?

AP – Estava. A BIREME nasce no programa de recursos humanos. Depois, a BIREME sai e fica vinculada à área de saúde e desenvolvimento, e depois fica vinculada ao programa de pesquisa. Embora, o diretor da BIREME seja um funcionário autônomo, que se reporta diretamente ao diretor, não tem uma hierarquia que a gente esteja vinculado. Foi isso que permitiu um escape com uma política editorial de publicações diferente. A tendência, talvez de um ano atrás, seja da área de publicações se vincular à área da BIREME.

GH – Da BIREME.

AP – Agora se criou na OPS uma área que se chama Knowledge Management ou Information Knowledgement, onde está a área da BIREME e o programa de pesquisas, mas não está a de publicações. Acho que vai haver uma coisa mais orgânica entre pesquisa, a revista e a BIREME.

GH – Eu vou até te propor fazer depois uma sessão específica, na qual o Fernando Pires, o vice-diretor, que também faz parte desse projeto, e além de ser a pessoa que mais conhece a BIREME, tratará questões importantes para registrar a tua discussão. Ele está fazendo uma dissertação sobre a história das origens da BIREME e dos processos, aqui nosso programa [de pós-graduação].

AP – A história da BIREME é muito interessante. Ela tem várias fases.

GH – Ele está pegando o início dos anos 60. Tem várias possibilidades de você trabalhar. Eu vou te propor marcar depois uma sessão até para conversar. Só que eu acho que vale a pena registrar, porque são tantos anos vinculados a essa questão.

AP – Aproveitar que ainda você tem todos os diretores vivos. São pessoas de bastante idade, mas estão muito lúcidos e ativos.

GH – Essa é uma discussão interessante. Agora, até se afastando do interesse do nosso projeto, eu acho que vale à pena a gente sentar e fazer uma coisa sobre a BIREME e essas relações a partir do seu lugar de coordenador de programa nesse processo tão impactante.

AP – Eu, quando saí da OPS, você é obrigado a fazer o que eles chamam de debrief, que é a tua vivência na OPS.

CH – Quase um memorial?

AP – Um memorial. É interessante você ver como a BIREME, realmente, representou uma mudança de paradigma. Uma mudança de paradigma tanto para a área de informação científica, como para a área de pesquisa.

GH – Para outros países está tendo um impacto efetivo, até nessa mudança de quais são os critérios que organizam a produção acadêmica que a qualificam e de como se dá avaliação. Apesar da Fiocruz ser meio retrograda muitas vezes, tem uma tabela em que você faz pontos. Agora foi que a gente conseguiu introduzir como critério de avaliação, o Scielo.

AP – Eu imagino o que devem sofrer.

GH – Não estou acostumado a sentar em comitê e a apanhar, mas acho que é um ponto muito importante para a gente conversar na sessão.

CH – O Programa Livro Texto está ligado a recursos humanos?

AP – Ele começou ligado a recursos humanos. Aqui no Brasil, era o PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde], quem administrava. E, depois a fundação vinculada a OPS, que foi quem assumiu esse programa. E não sei o que te dizer. Mas acho que ele teve um momento histórico importante. Era um momento de dificuldade de acesso à literatura, aos livros de texto, e também dificuldade financeira. Então, o que a OPS fez, foi editar esses livros e vender a um preço mais conveniente. Então, você tinha os pontos de venda da OPS, onde você podia comprar os livros-textos, e tinha acesso a eles com boas traduções etc. Depois, com a criação de um mercado interessante, na América Latina como um todo etc; no Brasil, com a expansão do ensino médio, você teve as próprias editoras fazendo esse papel. Conseguindo, inclusive, financiar. Por exemplo, a OPS não tinha acesso, você tinha que pagar à vista. Então, você tem no mercado editorial privado, livros ao mesmo preço, ou mais baratos, com pontos de venda espalhados pelo Brasil inteiro com os títulos. O Programa Livro Texto, historicamente, está tentando sobreviver. Agora está publicando alguns textos que não têm appeal mercadológico ou que as editoras não publicam, mas o programa publica. O papel desse programa é uma coisa que precisa ser repensada. Eu não sei te dizer exatamente, como ele está agora. Quando o Pedro Brito estava no programa de recursos humanos, ele era o responsável. Não sei te dar uma avaliação do que seria esse programa e o seu futuro. Mas, eu sei que ele passou por uma crise, nesse momento que não tinha muito sentido, os textos do programa do Paltex [Programa de Livros Textos], pois eram os mesmos livros que estavam nas editoras. O Paltex tinha meia dúzia de pontos de venda, esses daqui tinham centenas e vendiam mais barato. Passou o momento histórico da necessidade da OPS produzir livros.

GH - A gente está até mais preparado para falar da parte do acordo etc. Poderíamos fazer uma entrevista com você sobre esse período 86-2004 e centrar na coisa de ciência e tecnologia, trazendo também uma discussão sobre BIREME. Porque acho que esse é um debate atual no Brasil.

AP – Eu posso te passar o meu debrief. Pois tem algumas coisas que são mais de cozinha interna. Não são coisas de mencionar pessoas ou projetos específicos. Nesse documento tem toda uma parte geral, de como evoluiu o pensamento.

GH – Eu acho que talvez valesse a pena ter, para fechar esse nosso primeiro encontro, você fazer um balanço de seu trajeto na OPAS, no programa. Quais seriam os pontos, você já falou de alguns, principalmente da sua chegada, da melhoria da qualidade dos projetos, das iniciativas e dos programas, que eu acho que valem a pena ser registrados. Como você qualificaria, os mais importantes na sua iniciativa?

AP – Eu já estou aposentado. Eu vou te passar, depois, o meu debriefing, dos três períodos na minha trajetória. O primeiro período, que é o período Carlyle [Guerra de Macedo], quando eu fui para OPAS em 86 e o Carlyle ficou diretor até 94. Eu peguei oito anos de Carlyle. Você sabe o que significou o Carlyle para nós da OPS. Ele trouxe, realmente, não só uma nova visão, mas um estilo administrativo etc; que, para a OPS foi uma mudança muito significativa. Quando eu cheguei, o programa de pesquisa estava muito centralizado na figura do Juan César García. Eu tinha passado por lá, como chefe do programa, o doutor [George] Alleyne depois foi meu diretor na OPS.

GH – Ele é chileno?

AP – Não, é caribenho, de Barbados. Quando o Alleyne entrou na OPS, entrou como coordenador do programa de pesquisa. E, depois, imediatamente, passou a vice-diretor. E o Juan César García estava dependendo dessa pessoa. Quando ele passa a vice-diretor, o Juan César García passa a ser coordenador interino. Mas, como te digo, o programa sempre foi muito centrado na figura do Juan César García. Não era um programa, era uma pessoa. O que era muito precário. Ele também tinha algum recurso para pesquisa, mas, também, distribuía sem uma estrutura de programa de subvenções de pesquisa como nós temos aqui. Quando eu cheguei, O Juan César García tinha toda a capacidade de elaborar etc; mas, não tinha um programa estruturado. Então, a primeira preocupação foi de estruturar esse programa, o fundo de apoio à pesquisa para que tivesse um comitê que funcionasse com critérios bem estritos etc. Como te digo, ele até tinha uma função pedagógica. Precisava-se estruturar o fundo de financiamento de pesquisa de uma maneira séria para trabalhar na área de política científica e tecnológica. Nesse primeiro período o programa foi crescendo. Nós chegamos a ser oito profissionais e uns doze funcionários administrativos e semi-profissionais. Calculando quase vinte pessoas no programa, antes eram uma ou duas pessoas. Ele passou a se chamar Programa de Investigacion y Desarrollo Tecnológico, incluindo pesquisa e tecnologia. O programa de tecnologia, que estava em outro lugar, veio para o programa desse grupo. O programa de vacinas com Akira [Homma] também veio para o programa que eu coordenava, e também outras pessoas que trabalharam com ele. Então, a gente tinha a parte de pesquisa, de política científica e a parte de desenvolvimento tecnológico. Usando as vacinas como um estudo de caso para pensar a questão da auto-suficiência não como chamava na época, mas a questão da capacitação tecnológica em uma área específica. A Akira fez um trabalho tanto com produtores, como com pesquisadores na região para o desenvolvimento de novas vacinas e da inovação tecnológica nessa área. Então, foi um momento de muito crescimento e de muita discussão, tanto na área mais acadêmica, como na área de melhorar a metodologia da pesquisa e de como incluir esses novos temas. Começa a discutir propriedade intelectual. Coisa que, na OPS, quando com o período Alleyne é completamente diferente. O Alleyne é um pesquisador, clínico básico, que tem uma visão de pesquisa bem acadêmica. O que ele fez foi tirar o programa de vacinas e pô-lo em outra área. Ele corta a menos da metade dos recursos do programa de subvenções. No fim, nós que éramos vinte pessoas, passamos a ser meia dúzia. E, cada vez mais, o programa, lutando, teve que lutar para sobreviver. Achava que essa coisa de política científica era uma bobagem, que não existe política científica. Existia pesquisador, que era o pesquisador que produz e tem que ter recursos para financiar. Passou a não existir essa coisa de política científica e muito menos tecnológica. Então, foi um momento difícil de sobrevivência, a gente conseguia muito em função das raízes que tínhamos nos países, do trabalho, mas com muita dificuldade. Quando aparece a questão da BIREME e de uma possibilidade de sobrevivência do programa e de uma ruptura com o paradigma de trabalho do doutor Alleyne. Então, acho que essa terceira fase, que é colocar no centro da questão, da política e da [..], a biblioteca virtual e as tecnologias virtuais.

GH – A questão da gestão do conhecimento.

AP – Então, passo a escrever e a estudar toda essa parte de gestão do conhecimento e de democratização do conhecimento e da informação científica como um bem público. E o papel do Estado na geração desse bem público. Passo a relacionar esse tipo de discussão com Pierre Lévy na questão da inteligência coletiva. Os CRICS [Congresso Regional de Informação em Ciências da Saúde], de alguma maneira, refletem isso. Você pega o CRICS da Bireme e o Congresso Regional.

GH – O que vai ter agora, em Salvador?

AP – Sim. Os primeiros CRICS eram aquela coisa só de bibliotecário.

GH – E agora?

AP – E hoje, os CRICS, o último no México e o anterior em Cuba, discutem esses temas. Bibliotecário é minoria, mas reclamam muito. Hoje, você tem participação da área tecnológica.

FIM DA FITA 2/LADO B

Entrevista 3

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PROJETO:
HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

Data:
7 de junho de 2005

Depoente:
Alberto Pellegrini (AP)

Entrevistadores:
Carlos Henrique Assunção Paiva (CH)
Gilberto Hochman (GH)

N° da Entrevista: S/N

Código: 3/ 3

Transcrito por:
Andrea Ribeiro – Setembro 2005

FITA 3/LADO A

AP – Adotando esse novo paradigma, hoje na BIREME, os bibliotecários são minoria. Você tem o pessoal da área de informática e o pessoal da área de ciências da informação.

GH – Em relação a toda a discussão sobre conhecimento que você está vivendo em Washington, qual foi o impacto que ela teve na instituição? Você sente esse impacto? Ou ela acaba recortando setorialmente? Porque se pode conviver, sem ter nenhum impacto. Como é que você pensou isso na hora? Já que você teve que fazer o seu memorial.

AP – Não, de alguma maneira acontece isso, porque a OPS são muitas. Eu acho que a OPS foi, de alguma maneira, crescendo por agregação de capa. Você tem a OPS da pré-transição epidemiológica, o pessoal da malária e etc, que de alguma maneira está intacto em seus conceitos de saúde pública e de como trabalhar a questão do programa vertical. Depois, tem a OPS das vacinas que também, que tem, sempre aquela visão campanhista da saúde pública. E você vai agregando novas capas dentro da OPS. Como eu estava falando, essas novas áreas que vão se incorporando, já com uma outra visão, de uma outra OPS. Você tem até a OPS das corporações e o programa de ambiente, que era o programa dos engenheiros e da visão do saneamento básico. Ele nem falava em ecologia e na questão ambiental, se falava em água e esgoto. O programa de veterinária era um programa dos veterinários. Você tinha até programas por categorias profissionais, das enfermeiras. Tudo foi se agregando. Quando entra a área nova, área tipo a BVS, nesse esquema, você vai ter alguns grupos que já estão mais próximos, que, imediatamente, se associam. Eu acho que a estratégia da BIREME foi muito boa, de ir criando essas BVS temáticas, em função desse oportunismo, no bom sentido de ir pegando as áreas.

GH – Quem está organizado?

AP – Começou uma das primeiras BVS, que foi a de adolescência. Diz: “por quê começar com adolescência? Quem disse que é área prioritária? Ela importante, mas você tem outras coisas mais ainda”. O programa de adolescência estava preparado para trabalhar nessa linha, de trabalho com os adolescentes. Outras bibliotecas que foram se criando, em função de aproveitar essas ilhotas de modernização dentro da organização. Com essa nova administração da OPS, acho que tem coisas muito interessantes, do ponto de vista conceitual. Porque há, por exemplo, essa área de Knowledge Management que junta a BIREME e pesquisa etc. Como sempre ocorre, essas boas idéias, às vezes, se chocam com uma estrutura e com algumas pessoas que não necessariamente têm a visão que o diretor possa ter. Então, normalmente, na implementação você tem problemas, às vezes. Mas eu acho que a história da saúde pública, na OPS reflete muito bem a dificuldade de você ter uma mudança geral na saúde pública.

GH – Eu fico assim tentado a fazer a última pergunta. A gente está fazendo a entrevista muito focado na idéia de cooperação técnica e nas relações entre a variedade possível de relações entre a OPS e os países. Nesse caso, na idéia de cooperação técnica e de recursos humanos para o Brasil etc, PPREPS. Mas, eu fico pensando que dada a experiência de cooperação no Brasil parece ter tido um padrão diferente na OPAS, que você mesmo chamou atenção como os outros entrevistados. A OPS hoje, no sentido da cooperação, o que foi que mudou? E como você estaria pensando? Já que a gente tem que refletir um pouco sobre essas relações internacionais em saúde dos organismos internacionais, qual é o sentido da cooperação técnica da OPAS hoje?

AP – Quando eu falo do paradigma da BVS, vocês conhecem toda a história, desde o assistencialismo, onde o próprio consultor era a figura que levava, em si mesmo, o conhecimento, até depois, a coisa mais de administração do conhecimento, que eu acho que foi a grande ruptura do Carlyle [Guerra de Macedo]. Porque o Carlyle, quando chega, ele diz: “a missão primordial da OPS é administração do conhecimento”. E, pela primeira vez, ele define isso. Pode-se até dizer que sempre foi a administração do conhecimento, mas ele define isso como a capacidade que a OPS tem de promover a geração de conhecimento, a sua seleção, avaliação, disseminação e utilização. Para administrar o conhecimento, a OPS devia ser capaz de fazer tudo isso; produzir, disseminar, selecionar, avaliar e cooperar com os países para a sua utilização. Na época, isso me pareceu uma coisa muito avançada, quase de uma ruptura da administração do conhecimento explicitamente como o centro. Mas, para mim, isso já está obsoleto com o novo paradigma. Porque, se você pensar bem, a OPS aparece como o protagonista que seleciona, avalia, dissemina e utiliza. Eu acho que a nova cooperação, mesmo que você use as formas mais modernas para fazer isso e usar a informação com base virtual, em papel ou o que seja, a fim de estabelecer as redes de cooperação, mas ela sempre como o ator principal. Eu acho que o que a cooperação técnica deve fazer é criar espaços de interação basicamente se tiver alguma coisa para fazer. É reconhecer que você tem as redes e que pode promovê-las e estimulá-las, como a Red ScienTI. Mas, basicamente, os nós das redes vão estar nos países. Quando você já tem uma quantidade de redes estabelecidas e de grupos, o que você precisa é criar novos espaços de interação desses grupos. Assim, como a Igreja criou o purgatório, você cria um espaço de interação. A cooperação técnica tem esse papel. Eu vejo o grande potencial da BVS, não tanto quanto um depositório, mas como um espaço de interação entre esses grupos. Claro que, a OPS é um ator adicional, dentro desse espaço, pois ela atua também. Porque ela tem acesso, informação e gente. Ela pode produzir coisas. Mas, basicamente, se você for me dizer hoje, o que é cooperação técnica, a resposta será que cooperação técnica é criar espaço de interação, pelo menos um espaço virtual.

GH – O que você está dizendo é que a própria idéia da OPS como financiadora no campo da pesquisa, são dois papéis?

AP – Sim. Eu não sei se ainda tem, porque a própria região é muito desigual. Então, você não pode tomar o Brasil, a Nicarágua, são países muitos... Eu acho que você tem um fundo sem muitos recursos, mas muito bem pagos. Esses programas multicêntricos são muito interessantes, porque na medida em que você seleciona um tema de interesse geral, você põe grupos trabalhando juntos, desde grupos mais avançados. No Projeto da Costa Rica, do Brasil e do Chile. Grupos mais e menos avançados, trabalhando juntos em uma rede, em torno de um projeto comum. Eu acho que faz esse tipo de coisa, que não é muito caro, porque os gastos locais eram financiados. No caso da violência, foram as prefeituras que financiaram boa parte, a exemplo prefeitura de Caracas. Então, você mobiliza esse tipo de coisa bem selecionada.

CH – Por exemplo, dentro dessa ótica é correto chamar o PPREPS de programa de cooperação técnica?

AP – Eu estou falando em criar espaços de interação a nível regional etc. O PPREPS foi um espaço de interação, que não existia entre esses distintos setores da área de saúde. A Previdência Social era um mundo e a Saúde era outro, e o MEC era outro também. Hoje, com o SUS [Sistema Único de Saúde] e tudo, a gente está mais ou menos junto, você não imagina como era difícil o diálogo entre a Previdência e o INAMPS [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social]. Você criar esses espaços, como o PPREPS, onde esses ministérios podiam conversar e ter projetos comum. No caso do Larga Escala, a gente está falando da Izabel [dos Santos] etc, o MEC e o Ministério da Saúde trabalhavam juntos para formação de pessoal auxiliar. No caso do PREV-SAUDE, eram todos. Qualquer projeto interministerial olhava para esse acordo, e dessa forma fazem o PREV-SAUDE. O Ministério da Saúde e a Previdência Social não podiam fazer o PREV-SAUDE. Era um projeto que nascia intersetorial, interministerial. Então, você joga isso para esse espaço. Por isso, que eu acho que foi um negócio muito inovador.

FIM DA FITA 3/LADO A

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