CV – Exatamente. Esse cara era meu colega. O Ângelo Pezzutti [da Silva] foi meu colega. O pessoal que teve envolvido com o negócio do embaixador americano. Foram vários colegas meus da faculdade com gente no Araguaia e teve com gente no Nordeste.

RM – Isso, durante a faculdade?

CV – Durante a faculdade.

RM – O senhor foi no Araguaia?

CV – Não.Tive com colegas do movimento que foram para lá. Eu fiz uma opção de não entrar na luta armada.

RM – Na guerrilha?

CV – Na guerrilha. Tinham vários colegas. E eu também tive muita participação nisso.

CH – E também não se filiou a partido [comunista]?

CV – Não. Porque eu vinha da esquerda católica e da JUC [Juventude Universitária Católica], depois para Ação Popular. E quando a Ação Popular fez a chamada opção marxista, que originou, sobretudo, o PC do B.

RM – O senhor se afastou?

CV – Eu me afastei, não quis entrar. Mas, continuei em contato com pessoal e trabalhando eles.

CH – Já se aproximando mais da discussão de saúde, esse período também coincide com uma discussão forte sobre planejamento em saúde, com a Carta de Punta del Este, os encontros de ministros da saúde e essa coisa toda. Como o estudante de graduação, o senhor, acompanhava esse processo?

CV – Não. Isso é que foi engraçado porque eu tinha uma movimentação muito forte com movimento estudantil, mas, por alguma razão, eu não me meti com saúde pública durante o curso de graduação.

RM – Essa agenda repercutia na faculdade de medicina?

CV – Demais da conta.

CH – De quê forma? Seminários?

CV – Repercutia com seminários, repercutia com movimento de coisa. Por exemplo, vocês conhecem Belo Horizonte? Vocês conhecem a Praça da Liberdade, onde está o palácio do governador? Este palácio tem uma grade em volta dele. Essa grade foi feita depois que a gente ocupou o palácio. Algum de vocês é médico? Da área de saúde? Vocês são de ciências sociais. A gente tinha um negócio muito importante para a formação nossa, que era a prática no pronto-socorro, no hospital de urgência, o lugar onde se aprendia. Um diretor do pronto-socorro fechou o pronto-socorro para nós e cortou o estágio. Então, a gente fez um movimento, andando por Belo Horizonte, subimos a João Pinheiro e fomos ocupar a praça. Nós e o pessoal das ciências médicas, da Universidade Católica, ocupamos o palácio. Foi a primeira vez que aconteceu algo assim na história, nesse tempo o governador era o Israel Pinheiro. Ele, na manhã seguinte, chamou a gente de pijama e roupão, com uma comissão lá para dentro e disse: “ Aqui passa o povo do Rio de Janeiro e fica vendo esse negócio, e pensam que o governador não está bem. Vocês saem daí que eu falo com o doutor Rubens para abrir o estágio”. E a gente continuou e não saiu. Mas, de qualquer maneira, a gente tinha muita movimentação. Tivemos vários colegas que foram presos durante o curso. A gente ocupou a faculdade uma vez. Eu fui preso nessa ocupação da faculdade. Isso foi muito romântico, mas por azar nesse dia a gente foi preso, o governador Magalhães Pinto tinha estado na faculdade para visitar o Hospital das Clínicas. Nós podíamos ter segurado ele. Ali ninguém teve idéia.

CH – O planejamento em saúde era visto como vanguarda pelo pessoal da faculdade? Ou tinha um perfil mais conservador? Pergunto porque essa idéia de planejamento, de planificação, estava muito afinada com o regime militar.

CV – Tinha uma tradição forte. Um cara que foi muito importante nesse negócio na área da medicina, no nosso tempo, foi um cara da Fiocruz, o Amílcar Martins. Ele era de uma tradição e, originalmente, do partidão. Não se voluntarizou para ir à guerra lutar contra os nazistas. Então, o Amílcar vinha dessa tradição. Tinha um outro pessoal que era muito progressista.

RM – Ele era professor?

CV – Ele foi meu professor de parasitologia. E o outro cara era o Wilson Beralto e o Carlos Ribeiro Diniz, que eram da área de fisiologia e de bioquímica. O pessoal de cadeira básica, em geral, era mais progressista. Porque era um pessoal que tinha um salário de fome. Os outros eram todos médicos, em geral, de prestígio.

RM – Já estabelecido.

CV – Já estabelecido. Não tinha, pelo menos, que eu me lembro, de influências, um ou outro cara, mas não era muito. Na cadeira básica, era mais. Esse pessoal tinha muita influência no movimento da gente.

RM – Foram eles que levavam para vocês esses documentos e as informações?

CV – Esses documentos circulavam, sobre a questão de saúde pública, de chagas, de malária, de tuberculose e tinha um negócio histórico, em Minas Gerais, por causa do negócio da doença de chagas e dessas tradições. Isso era um negócio muito importante. E isso cultivava muito com esse pessoal. Eu não me lembro na área profissional de coisas assim, tanto que quando eu estava fazendo meu último ano, já me encontrava inscrito na residência para fazer cirurgia e eu comecei a virar a cabeça. Porque eu fui fazer um estágio remunerado por minha conta. Todo o fim de semana, eu ia para um lugarzinho chamado Jaboticatubas, no interior de Minas. Os caras tinham chagas, esquistossomose e todo o diabo. Eu ficava atendendo no ambulatório e chegava aquele pessoal ruim, passando mal. Então, eu dizia: “Gente, o que eu vou ficar esperando esse pessoal crescer o baço para eu operar?”, Perder o esôfago, com dilatação, por causa da chagas. Eu vou ficar esperando esse pessoal para operar? Eu tenho que ir mais na frente da enfermidade. Por isso, comecei a pensar nesse negócio. Eu estava me formando para decidir a minha residência. Nessa época, eu estava pensando em casar, essa coisa toda, cheio de idéia. Então, precisava tomar uma decisão na minha vida. Esse negócio ficou presente outra vez, quando se formaram os candidatos a orador da turma na faculdade, dos quais eu fui um deles, com o Paulo Habib, o presidente do diretório também. E teve mais um outro que era muito politizado. De repente, eu falei: “eu não vou esperar, vou fazer uma pós-graduação em parasitologia”. Decidi. Quando eu estava pensando em fazer cadeira básica, eles que me abriram os olhos para a Saúde Pública. Então, por causa da conversa com o pessoal da bioquímica e do Amílcar, “vai conversar com a Saúde Pública”. E eu fui conversar com o pessoal da Saúde Pública que, naquela época, tinha muito tesão, sabe? Falava daqueles níveis de prevenção. Eu não tinha muita atração pelo negócio. Mas, fui lá falar. Tinha um cara bacana que me influenciou muito.

RM – Em Minas ainda?

CV – Na Preventiva, era o Domingos Gambra, um antropólogo que era o único professor da faculdade de medicina não médico.

CH – Ele era mineiro?

CV – Mineiro! Nome é Domingos da Silva Gambra. Ele fez uma tese na Faculdade de Filosofia sobre lepra, em relação ao preconceito. Eu vou contar para vocês depois um detalhe sobre esse negócio. Naquela época, eles falavam muito da incorporação das ciências do comportamento no curso de medicina. Você tinha um currículo de seis anos e uma disciplinazinha de 30 horas de ciências do comportamento, que você estudava. A mulher era Margarete não sei quanto.

RM – Margareth Meed?

CV – Não, foi essa?

RM - Margareth Meed, a antropóloga? Baixinha.

CV – Antropóloga que foi a pioneira, que ia para Austrália e não sei que lugar. Depois tinha um cara. Como é que chama? De esquimó. E que mandaram ele dormir com a esquimoa, ou fazer qualquer coisa, porque ele ficou louco. Ele não sabia o cheiro, não sei o quê. A gente estava entendendo a questão de cultura. Esses troços assim, era o que quê a gente mexia. Nessa época, não tinha nada.

RM – Não tinha nada. Eram esses os autores que se liam na Antropologia?

CV – Eram esses os autores que se liam na Antropologia, na Preventiva, naquela época. Eu fui fazer na Preventiva. Os caras da Preventiva não tinham nada para mim. Eles falaram: “ah, não, boa idéia e tal”, mas não tinham nada. Então, eles me sugeriram uma coisa. Eles trabalhavam metade do tempo na universidade. Isso era distribuído um terço na universidade, um terço na Secretaria de Saúde e um terço na clínica de vacinação. E nessa clínica de vacinação, eles estavam, por causa do trabalho na secretaria, com um pepino lá, porque ia começar dali a semanas a campanha de erradicação da varíola, a CEV. E eles precisavam de três médicos de campo. E eles só tinham conseguido dois velhos da Fundação SESP [Serviço Especial de Saúde Pública], veteranos da Fundação SESP, e não tinham conseguido outro. E o povo do ministério dando cacete. O pessoal do SESP dando pau em cima deles e não sei o quê.

CH – Recém formado?

CV – Eu formei, contratado. Foi aquela loucura para mim, porque eu saí da cirurgia, pensando na coisa. De repente, eu tinha uma equipe de 180 vacinadores, entende? Jipe Rural Willys, não sei o quê e tal. Fui fazer um curso em São Paulo, no Emílio Ribas. Aí, conheci gente para burro, do Brasil inteiro. Foi a minha primeira inserção desse período da varíola.

CH – E o senhor ficou dois anos?

CV – Na varíola, eu fiquei de dezembro de 68, 69 inteiro e comecinho de 70 trabalhando na varíola. Foi uma história brava, porque eu conheci gente da Fiocruz, conheci gente que estava trabalhando tanto com varíola, quanto com epidemiologia e com vigilância. Conheci o povo do SESP. Aí eu fui me meter nesse negócio.

CH – Aí, se consolidou o sanitarista?

CV – O sanitarista foi coisa. Nessa época, eram meus companheiros na varíola, gente feito Eduardo Azeredo Costa, da Fiocruz. Esse menino está com o [José] Paranaguá [de Santana], em Brasília. Acho que ainda está com o João Batista. Tinha muita gente da varíola desse tipo aqui. Depois, eu posso ver, mas, esse pessoal foi um pessoal jovem, que estava trabalhando 24 horas. Foi uma campanha que foi uma escola para gente. No final da campanha, eu falei: “não, eu não vou ficar mais tempo aqui não. Eu vou terminar, ficar um ano, e me casar e vou fazer o curso”. O pessoal, o Eduardo [?], Nilton Arns, os gaúchos, que eram da CEV [Campanha de Erradicação da Varíola] e os colegas me encheram a cabeça para gente fazer....deixa eu te contar. O Nilton e os caras insistiram: “vai para o Rio de Janeiro fazer o curso de Saúde Pública”. Então, vim para a Escola Nacional de Saúde Pública [Sergio Arouca/Fiocruz]. E vim conversar aqui com Osvaldo Silva e Orlando Silva, que era irmão dele. Tinha uns caras, os quais eu posso depois ver os nomes para vocês. Acontece o seguinte, aquilo foi em 68, 68 para 69, tinha acabado de ter o Ato Institucional nº 5. Estava agitado o troço na ENSP. Estava tão ruim a coisa que a faculdade pôs os alunos todos em um ônibus, ou em três ônibus, e mandou fazer uma excursão pelo interior, porque não tinha condição de seguir o curso aqui. Por causa do movimento e a ligação com o pessoal. E, eu cheguei aqui nessa época para me matricular, pegar informação, e essa coisa toda. Era fim do ano, outubro, uma coisa assim, para fazer o curso no ano seguinte. E essa pessoa com quem eu me entrevistei falou: “não venha para cá. Vá para São Paulo, lá tem um curso de Saúde Pública muito bom, tem uma turma nova que está lá com um tal de Zé Carlos Seixas, o João Yunes, o Edmundo Juarez e não sei o quê. Vai para lá”. Então, daqui do Rio de Janeiro, telefonei para minha noiva lá em Belo Horizonte, e falei para ela: “olha, filha, tudo aquilo, a gente continua o casamento, continua firme, só que em vez de morar no Rio, vamos morar em São Paulo”, “o quê?!”. Eu acho, “eu te conto quando eu chegar aí, fica firme”. “Continua tudo de pé, só que nós vamos para São Paulo”. E daqui, eu fui para São Paulo fazer uma entrevista para o mestrado no curso de Saúde Pública.

CH – Primeiro fez especialização, depois, o mestrado?

CV – Quando eu entrei lá na porcaria do curso de Saúde Pública, por causa do AI-5, por causa da coisa, por causa do movimento estudantil, começaram a ter coisas dentro da USP [Universidade de São Paulo], no Brasil inteiro, com respeito à questão sobre o que quê era o mestrado e a definição do pós-graduado. Então, o nosso curso, naquele ano, foi rebaixado. Ele passou a ser de mestrado, até 69, para se tornar mestre em Saúde Pública.

RM – Deve ter havido uma mudança mesmo.

CV – Uma mudança do conselho universitário, das regras da pós-graduação. Tanto que fui representante dos estudantes, da congregação da USP, não sei o quê e tal. Eu ajudei a fazer o regulamento do mestrado da Faculdade de Saúde Pública. Na Faculdade de Saúde Pública, foi outra oportunidade riquíssima, porque a faculdade tinha um movimento bacana. Eles tinham acabado de cassar, lá na faculdade, quando houve a cassação brava da USP, 68/69 e tiraram o pessoal do CEBRAP [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento]. Isso foi quando pegaram o Fernando Henrique [Cardoso] e o Florestan [Fernandes], pegaram. E, na Saúde Pública, tiraram a Elza [Berquó] e o Rubens Murilo Marques.

CH – Acho que o Samuel Pessoa também, nessa época?

CV – Samuel também foi tirado nesse troço. Ele estava na turma de Ribeirão Preto. Que era outro núcleo forte de coisa. Eles tiraram esse pessoal. A escola estava com uma turma mais suave. Mas, mantinha relação com eles. O pessoal tinha muita influência. Eu fui colega, no mestrado de 70, do Sérgio Arouca, do Ademar [?], lá da Bahia, do Marlon [?] de Porto Alegre. Eu era o único mineiro. Não conhecia ninguém de Minas Gerais, porque não tinha ninguém na área de Saúde Pública nessa época.

RM – Mas era uma turma do Brasil inteiro?

CV – Do Brasil inteiro! Tinha gente de Porto Alegre, de Pernambuco e de outros lugares fazendo o mestrado na Faculdade de Saúde Pública. Então, foi excelente o curso. Nessa época, o curso foi muito bom, por causa do pessoal da área da demografia, que era muito bom, e do próprio curso, que era excelente.

CH – E a sua tese foi sobre o quê?

CV – Durante a minha tese, eu tinha uma pressão para ser professor de Preventiva em Uberlândia, na federal de Uberlândia. Por isso havia uma pressão para fazer o mestrado. Então, eu vi nas opções da Faculdade de Saúde Pública, um negócio sobre chagas. Então, eu fui fazer a minha tese de mestrado sobre chagas. Eu alimentava barbeiros com sangue de galinha e sangue de rato e via a diferença de crescimento e de evolução do barbeiro. Desde o ovo até o barbeirão velho e não sei o quê. E via as possíveis implicações disso. Era biologia do barbeiro. Era um troço assim. Eu fiz com Edmundo Juarez, que foi a maneira mais rápida deu fazer a minha, de resolver o meu problema do mestrado. Eu não tinha muita paixão pelo negócio, mas estava ali. Era uma coisa concreta.

RM – Foi no sentido mais pragmático?

CV – Mais pragmático. Mas, eu fiz muita coisa. Eu fiz todos os cursos de demografia. Eu fiz muita coisa com um cara que se chamava Armando [?]. Ele era de ciências sociais e tinha Araci Vitti, fiz cursos com eles. Tinha um menino. Vocês estão aqui na Fiocruz há muito tempo?

RM – Eu e o Carlos não estamos. Eu já estive, saí e voltei.

CV – Tinha uns meninos, lá do meu tempo. Ele foi meu professor quando eu era jovem, o Joaquim [?], um cientista Social.

RM – Que é daqui?

CV – Eu fiz esses cursos todos. Engraçado, o curso de planejamento era chato. Não era uma coisa muito atrativa. A coisa estava boa na área de Ciências Sociais, o pessoal da estatística e da demografia eram muito bom.

RM – Essa demografia, o que eu me lembro, das matérias do Boletim [da Oficina Panamericana de Saúde], era uma linha de pesquisa muito demandada.

CH – Nos anos 60 era fortíssimo.

CV – Fortíssima.

CH – Tinha esquema de bolsas?

CV – De bolsas. E estava entrando o problema quente do controle de natalidade. Começando a entrar essas coisas. Então, tinha a Elza [Berquó]. Era um avião. Continua viva?

RM – Não sei.

CV – Não sei. Depois, ela foi para Unicamp. Porque a Unicamp foi criada como uma espécie de refúgio para alguns postergados. Alguns da turma da USP foram para lá. Então, eles pegaram o pessoal, eu fui fazer a minha tese nesse negócio como candidato a professor de medicina em Uberlândia. Mas, quando eu voltei da faculdade, do mestrado, do curso de especialização, ainda fazendo o mestrado, a pesquisa, voltei para Minas Gerais, Uberlândia, com o pessoal da Preventiva de Belo Horizonte. E eles não abriam concurso lá e não sei o quê e tal, me chamaram com a possibilidade de ir para federal e para Secretaria de Saúde. Então, eu desisti de Uberlândia, fiquei em Belo Horizonte, na Preventiva da federal de Minas Gerais e na Secretaria de Saúde, para trabalhar na assessoria de planejamento. Tinha um cara, que foi precursor.

CH – Eu gostaria de fazer uma pergunta: você foi professor de Medicina Social?

CV – Fui professor de medicina preventiva e social.

CH – Como é que você se aproximou e acompanhou o debate sobre o surgimento da medicina social e depois da saúde coletiva, nessa época? Lembrando que em 73 foi criado o IMS no Rio.

CV – Nós estávamos todos juntos. A gente estava junto com o pessoal da Unicamp. Lá estava o [Sergio] Arouca, tinha um latino, não sei se era chileno, como é que ele chamava? Ele era o chefe do Arouca, da Preventiva. Tinha ido para USP o Guilherme Rodrigues da Silva, que era um cara muito progressista, sofreu para burro, pois era afro-brasileiro e imagina lá na USP, um professor catedrático negro. Ele sofreu muita resistência. Tinha essa menina que morreu, que trabalhava lá, como é que chamava? Era uma pessoa muito importante, uma socióloga. Também, tinha o pessoal do IMS. Onde estava o pioneiro, que era um sanitarista de renome da velha guarda. Ele também tinha uma clínica de vacinação aqui no Rio de Janeiro. E a meninada nova dele era o Moisés Goldbaum, o Hésio Cordeiro e ainda tinha uma menina.

CH – Nise da Silveira.

CV – É.

FIM DA FITA 1/LADO A

FITA 1/LADO B

CV – Então, a gente, no primórdio do negócio, ainda não tinha um movimento importante nesse caso, você vê uma coisa, deixa eu fazer um pequeno parêntese, que junta aí também, que foi importante. Vocês viram o [o filme] “Diário de Motocicleta”? Eu não vi ainda. Porque não passou nos Estados Unidos na época em que eu estava lá. Eu estou doido para ver se acho. No “Diário de Motocicleta”, quando aqueles dois saem da Argentina de moto, subindo os Andes, eles param em um leprosário na selva do Perú, e ficam lá encantados. Então, nesse leprosário, eles trabalharam com Frederico Bressane. O Bressane era um sanitarista peruano que anos depois foi ser o representante da OPS aqui no Brasil. Essas coisas estavam circulando. Eu estou dizendo, porque há uns anos depois o Che [Ernesto Guevara] vem ao Brasil, como ministro de Finanças de Cuba e é recebido em Brasília pelo Jânio Quadros, que vai para Conferência de Punta Del Este. Onde foi criado o Banco Interamericano e lançada a Aliança pro Progresso, o Encontro de Ministros de Relações Exteriores e de Finanças e Planejamento. A saúde foi pensada como um negócio importante demais para ficar fora do processo de desenvolvimento regional, de planejamento. Então, vamos fazer um projeto para planejamento de saúde, incorporado no planejamento de desenvolvimento. Pegaram três ou quatro gatos pingados, não sei como eles pegaram e levaram para uma experiência inicial. Eles acharam que, nessa época, tinha uma experiência interessante no CENDES, da Venezuela, Centro Nacional de Estudos e Desenvolvimento. Eles pegaram o método de planejamento do CENDES.

CH – O chamado CENDES-OPS?

CV – Criaram um segmento de saúde que ficou chamado CENDES-OPS. E montaram um centro parecido com o troço do PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde], no ILPES [Instituto Latino-Americano y del Caribe de Planificación Económica y Social] de Santiago do Chile, entende? E lá, quem foi trabalhar, foi o Raul Vargas, foi o Carlyle [Guerra] Macedo, foi o Américo Miglionico, foram os caras que formaram centenas de gentes da área de planejamento em saúde.

RM – É interessante como essa geração circulou pela América.

CV – Você está entendendo? Vocês têm que entrevistar o Carlyle [Guerra de Macedo] também.

RM – Entrevistamos.

CV –O Carlyle foi para o ILPES por causa do seguinte: ele foi de uma turma importante, que é de outro círculo. Nós estamos falando de uma porção de círculos concêntricos superpostos.

RM – Interseções?

CH – Até foi época que ele estava na SUDENE [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste]?

CV – Não, antes disso. O Carlyle estava trabalhando na Secretaria do Piauí. No governo daquele cara que era senador, que foi governador do Piauí, morreu em Brasília. Depois, vamos lembrar o nome desse cara. O Carlyle era dessa equipe do Piauí. E ele foi ser secretário de Saúde, mesmo recém-formado. Foi um negócio incrível, ser secretário de Saúde recém-formado. Eu tenho impressão de que arrumaram para ele fazer um curso lá no Chile, no CENDES. Acho que foi no Chile o curso. Depois, ele foi para a equipe do Celso Furtado, da criação e organização da SUDENE. Na equipe de Saúde tínhamos o Carlyle e o Mozart de Abreu Lima. Esse foi um círculo importante. O Carlyle terminou o trabalho dele na Secretaria de Saúde do Piauí e foi para Santiago do Chile no convênio do ILPES [Instituto Latino-Americano y del Caribe de Planificación Económica y Social] com a OPS [Organização Pan-americana da Saúde]. E era um convênio engraçado, apesar do Carlyle não ser um radical, do ponto de vista político, era um cara progressista, de visão de esquerda, mas não era um radical. Os caras da OPS rejeitavam. O papa do planejamento da saúde na OPS, nesse tempo, era Juan José Barranechea. Ele não tinha uma boa relação com o Carlyle. Na hora que a gente conversar sobre a formação do PPREPS [Programa de Preparação Estratégia de Pessoal de Saúde], a gente volta a falar desse negócio. Esse foi outro, a outra interseção importante.

RM – A sua atuação na Secretaria de Planejamento, ela seria um outro círculo ou teve a ver com o seu engajamento na medicina social?

CV – Na Secretaria de Minas Gerais?

RM – Na Secretaria de Minas Gerais.

CV – Eu não era da Secretaria de Planejamento, é sim da Secretaria de Saúde de Minas Gerais. Mas, eu estava no departamento de planejamento, na assessoria de planejamento, na APC. Lá, eu tive muito trabalho. Nós tínhamos o polígono das secas, na região de Montes Claros, éramos parte da SUDENE. Eu ia ao Recife participar das reuniões da SUDENE por causa do negócio de Montes Claros. E, por alguma razão, a USAID [United States Agency for International Development] resolveu se meter por aí também. E foi engraçado porque uns meses antes, me lembro de subir no consulado americano em Belo Horizonte, no 10º andar de um edifício, para avisar a eles que nós estávamos fazendo uma manifestação, uma passeata contra eles. E, uns tempos depois, eu estava negociando com a USAID um projeto de Montes Claros.

RM – Na área de planejamento em saúde?

CV – Na área de atenção primária atenção rural. Que que era esse projeto? Lembra que eles fizeram o famoso MEC/USAID? Logo em 64. No começo de 70, eles fizeram um projeto na área de saúde. Eles pegaram gente que estava trabalhando com medicina social nos Estados Unidos. Eles não eram só o Pentágono e nem só a CIA. Eles também viviam querendo saber o que estava acontecendo na sociedade americana e o movimento da medicina social crescendo lá. Então, eles pegaram um pessoal da Universidade e fizeram um projeto para Montes Claros, Pernambuco e Paraíba.

RM – Assistência?

CV – De assistência, de integração docente assistencial de componente que vocês já conhecem do PPREPS.

RM – E quando foi isso?

CV – Isso foi em 71, 72. Então, esse projeto foi importante porque era um projeto que começou a pensar uma nova realidade para o sistema de saúde lá em Minas Gerais. O [Alberto] Pellegrini [Filho] brinca com a gente, “ô César, uma cidade não tem a importância que vocês atribuem para ter gerado tanto PHD assim”. Porque ele diz que Montes Claros tem uns cinco ou seis Phds. Então, o Pelé critica o negócio da coisa. Outro círculo, era a SUDENE, a medicina social americana. Eu me lembro que quando, na minha primeira viagem aos Estados Unidos, nessa coisa promovida pelo Juan César García para ver a ciência do comportamento, o primeiro lugar que eu desci nos Estados Unidos foi Nova Orleans. Foi o primeiro lugar que eu entrei em Nova Orleans. Como é que chama? Esse pessoal veio ajudar a gente a trabalhar. O Mário Ribeiro era o mentor de Montes Claros. Ele era irmão do Darcy Ribeiro, que foi governador do estado do Rio. Gente do PDT progressista, não sei o quê, era o tipo de gente que você estava trabalhando com eles. O chefe do Centro Regional de Saúde de Montes Claros era o Carlos Espírito Santo, que veio a ser, tempos depois, sogro desse menino, do Saraiva [Felipe], que está no Ministério da Saúde agora. O Saraiva foi dessa equipe do começo. O Saraiva foi júnior, meu aluno mais novo do que quando eu estava na medicina preventiva. Mas, de qualquer maneira, Montes Claros foi um troço importante na Secretaria de Saúde, na experiência do planejamento. A gente estava tocando a rotina dos centros de saúde, do pronto-socorro, aquela coisa toda.

RM – Isso é anterior ao PPREPS?

CV – Montes Claros foi anterior.

RM – Não houve seqüência nesse trabalho?

CV – Sim, porque em Montes Claros foi criado o Centro Regional de Saúde de Montes Claros. Foi o primeiro centro regional de saúde. Depois, foi criado o Centro Regional de Diamantina. A regionalização de Minas Gerais começou por causa de Montes Claros, disso criou-se o centro metropolitano. Daí por diante foram criados outros, e feita centralização da Secretaria de Saúde.

RM – E a USAID?

CV – A USAID deu um projetinho, uma coisa assim.

RM – Específico?

CV – Não, eles não interferiram. E o projeto foi tocando e foi saindo aí com o negócio. Um negócio muito interessante. Veja bem, como a gente estava na Preventiva, nós estávamos na Secretaria de Saúde de manhã, e de tarde na Preventiva, ou vice-versa, a gente, ao mesmo tempo que pensou que estávamos vivendo o movimento da reforma universitária dentro da faculdade de medicina. 120 km por hora, que a gente tinha começado como estudante e estávamos agora vivendo com mais coisa. A gente criou internato rural. Não sei se já ouviram falar dessa expressão, foi a primeira vez na história da escola de medicina que a gente conseguiu pegar. A gente pegava os meninos de Belo Horizonte e eles iam passam três ou quatro meses na área rural. Eles ficavam morando em uma casa que alguém oferecia. Eles atendiam no posto.

RM - Das capitais.

CV – Das capitais.

RM – Isso em Minas?

CV – Em Minas, em Montes Claros. Hoje em dia tem vários estados, faculdades. Minas inaugurou. O internato rural veio dessa experiência, veio daí. Foi daí dessa experiência. O Délcio [da Fonseca Sobrinho] fez a tese aqui também.

CH – Fez no IMS [Instituto de Medicina Social] ou na ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública]?

CV – Acho que fez na ENSP.

CV – Esse Délcio fez uma tese que foi uma das teses que o Pelé [Alberto Pellegrini Filho] fez quando estava se doutorando.

CH – Montes Claros vai ser uma experiência importante para o PPREPS ?

CV – Foi muito importante.

CH – Então, pensando já nisso, que foi o PPREPS?

CV – Olha, o PPREPS é um negócio engraçado. Teve um negócio no Brasil que a gente não viu no resto da América Latina. Em 64 teve uma diáspora brasileira. Em 68 teve outra diáspora brasileira, mas se você compara a diáspora chilena com a diáspora da Argentina, e com a diáspora de qualquer país de Centro América.

RM – Teve uma diáspora em 71 também?

CV – Tinha, de vez em quando uns apertões assim, mas a maior parte das pessoas ficaram. A gente não teve, por exemplo, a migração que você vê como aconteceu com esses meninos que vieram da Argentina para cá, o [Adolfo Horácio] Chorny e o [Dalton] Mário Hamilton. Como é que chama esse outro, que os filhos trabalham lá no Ministério da Saúde da Argentina e que agora é da Fiocruz também? Quer dizer, você não teve esse tipo de coisa. Teve gente que saiu, proporcionalmente. A gente estava aqui e esses núcleos estavam no Ribeirão, em Campinas, estava no IMS, na ENSP, na universidade em Minas Gerais, e em Pernambuco. O projeto de Montes Claros, a Faculdade de Medicina de Montes Claros era pobre nesse aspecto. A federal tinha uma presença muito maior lá. Mas, a gente conseguiu desenvolver as idéias sobre a descentralização, o auxiliar de saúde, a formação do pessoal auxiliar, essa coisa toda, que foi muito importante depois para ser o que foi mais ou menos incorporado pela questão do PPREPS. Por uma questão dessa que aconteceu, um dinheiro grande do governo do Ministério da Saúde que mandaram aqui para FIOCRUZ. E esse dinheiro saiu daqui para implementar um projeto de recursos humanos na área de saúde. O dinheiro ficou lotado aqui na FIOCRUZ há meses, se não foi anos. Isso foi na época de 73, 74, por aí.

CH – Em pleno milagre econômico brasileiro?

CV – Sim, era no tempo do Médici. Esse dinheiro ficou aqui. Teve um movimento importante, nessa época, no Ministério da Saúde. Como é que chama o menino do Piauí? Que era do Rio Grande do Sul? Era um cara do tempo do [Emílio Garrastazu] Médici? Nessa época vieram dois caras importantes para área de saúde no Brasil. O cara que está no Rio Grande do Sul. Ele não era o secretário de saúde, era o vice lá no Rio Grande do Sul. O secretário de saúde foi para a Previdência. Veio muita gente, o Mozart de Abreu e Lima foi ser secretário executivo da Saúde. Esse pessoal estava circulando.

RM – O ministro?

CV –O curso do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] todo estava lá. O IPEA tinha um grupo de progressistas. Então, estava esse pessoal. E jogaram esse dinheiro aqui para FIOCRUZ. Nessa época, aqui na FIOCRUZ, eu tenho impressão que já estava Lynaldo [Cavalcanti de Alburquerque]. Como é que se chamava o outro? O menino da Paraíba, o presidente da Fiocruz. Eu vou dizer o nome dele. Eles pegaram esse dinheiro e deixaram aí. Esse dinheiro ficou muito tempo, muito tempo parado, não conseguia implementar. Eu tenho impressão de que foi tentado com gente daqui. O negócio, por alguma razão, não saiu. Não conseguiu, ou o pessoal resistiu. Nessa época, fecha o ILPES/OPS, o CENDES/OPS. Por causa do golpe do Chile. E os caras são evacuados do Chile. E chega o Carlyle [Guerra de Macedo] aqui, vindo do Chile, para explorar oportunidades. E vê que coisa, eu tenho impressão, conversando com Mozart [de Abreu e Lima] que eles resolveram fazer com a OPS o programa de formar equipe. A equipe foi formada assim; A idéia foi gerada, “vamos fazer”, não sei o quê e tal. “Está bom, então, vamos fazer”, então, quem que é a equipe? Eles pegaram, acho que eles pegaram o Carlyle, depois a Izabel Santos, que estava no SESP [Serviço Especial de Saúde Pública], que tinha uma tradição e estava vivendo em Pernambuco. Depois, pegaram o Pancho Salazar, o Francisco Salazar, que era um chileno que estava trabalhando aqui no Rio de Janeiro, na área de administração pública. Ele estava trabalhando aqui, não sei se com a ENSP ou com a UFRJ, ou com o PROASA [Programa de Estudos Avançados em Administração Pública para o Setor Saúde]. Mas, ele estava sediado aqui. Nessa época, a OPAS estava com um escritório ainda na rua Paissandú, antes de transferir todo mundo para Brasília. Então, já tinha o Carlyle, a Izabel [dos Santos] e o Pancho. Inventaram o convênio com a universidade, com o MEC, para originar também o acordo. Puseram duas pessoas: Regina Coeli e o Francisco [Salazar], por alguma razão.

RM – Francisco é o Pancho? É outro Francisco.

CV – Era outro Pancho, outro Francisco [Francisco Lopes]. Era um Francisco brasileiro. Eu tenho o nome dele. Eram dois funcionários do MEC que entraram no projeto como parte do negócio do MEC. Precisavam de alguém na área médica, da faculdade de medicina, não sei o quê e tal. Nessa época, acontece um troço, tinha um cara muito interessante, que era professor de cirurgia da USP. Ele chamava-se Danilo Prado Garcia. O Danilo tinha um plano de ir morar com a família na França. O Danilo preocupado com outras coisas além da cirurgia, muito interessado, um cara progressista, muito amigo do Arruda Sampaio que, nessa época, estava no Banco Interamericano de Desenvolvimento, em Washington. Clínico lá, encontrei com ele outro dia. O Danilo estava meio na época de construir o plano de ir morar na França, para se livrar um pouco do Brasil, porque estava sentindo confuso na ditadura com um auto-exílio. Ele tinha muito dinheiro, era muito rico, era um cirurgião estabelecido em São Paulo. O Danilo rompe com a mulher dele. Então, manda a família para a França. Ele ficou mais ou menos. Não sei se arrumou algum namoro, alguma coisa assim. Ele em vez de ir para França, vai aos Estados Unidos. E vai em Washington conversar com o clínico das coisas, visitar o amigo, não sei o quê e tal. O Danilo disse que andando em Washington, ele viu um negócio assim: Organização Pan-americana da Saúde, falou: o que que é? Então, ele chegou lá no porteiro e começou a falar, perguntar o que que era, não sei o quê e tal.

RM – Ele contou isso para você?

CV – O Danilo que contou esse troço para mim. Eu sugiro até que se vocês tiverem um tempo, para a segunda fase, poderiam pegar o Danilo. O porteiro diz então, “ah, o senhor é de São Paulo? Brasileiro? Então, espera aí que eu vou falar com o senhor”, não sei o quê e tal. Então, o Danilo ficou conhecendo, assim, de turista, andando na rua, ficou conhecendo o Zé Romero Teruel, que era um cara de recursos humanos.

RM – Washington?

CV – Em Washington. E o Juan César García conversando.... E o Danilo falou: “olha, sabe o que que é, eu tô de saco cheio e tal de cirurgia, não sei o quê e tal”, os caras falaram: “olha aqui, vai ter um projeto lá em São Paulo, no Brasil, que ninguém consegue pôr pra frente. Eles tão precisando de montar uma equipe. Quem sabe, de repente”, não sei o quê. O Danilo, pumba, veio para Brasília, se entrevistou, não sei o quê, entrou para o projeto.

RM – Essa história é ótima? Nós sabíamos dele.

CV – Do Danilo?

RM – Mas, não conhecíamos essa história.

CV – Assim foi a coisa. Então ficou faltando um último moicano para entrar na equipe. Eles queriam um cara da área de planejamento. O candidato natural foi o [Sergio] Arouca. Então, foi falar com o Arouca e não sei o quê. O Arouca, por alguma razão, que eu não entendi, não topou. Chegou até ir à Brasília, teve lá uns tempos, não sei o quê. De repente, o Arouca sentiu que não era bem o que ele estava querendo, por isso não topou. Perguntaram se estavam buscando gente, perguntaram pelo Eugênio Villaça Mendes, porque ele tinha feito o curso de planejamento no CENDES/OPS. Era um cara importante lá em Minas Gerais, da odontologia, progressista, estava na Secretaria de Saúde, foi um dos precursores do troço de Montes Claros. Ele foi um cara responsável pela revirada do projeto da odontologia social, em Minas Gerais e não sei o quê. Foram falar com o Eugênio. E ele não topou. Então, eles continuaram com aquela novela, aquele lenga-lenga, quem que põe, quem que não põe. De repente, o Carlyle [Guerra Macedo] chega lá em Minas Gerais para me entrevistar. Eu não conhecia o Carlyle, minto, conhecia o Carlyle. Um ano antes, quando houve o troço do Chile, o Carlyle saiu para buscar opções de reinstalar o CENDES/OPS no Brasil. Nós e ele fomos a Minas Gerais, fizemos uma reunião histórica na casa do Eugênio Mendes, em Belo Horizonte. O Carlyle estava querendo saber da possibilidade de fazer o centro em Minas Gerais. A gente tinha experiência de planejamento em saúde, tinha o Montes Claros. Já estávamos trabalhando muito com o ILPES, na Secretaria de Planejamento, na Fundação João Pinheiro, em Belo Horizonte. Nós estávamos muito metido na máquina de planejamento do estado e na criação dos estados de Rondônia, Roraima, Amapá e Acre. Porque eles estavam sendo transformados em estados e a gente trabalhando na infraestrutura, no projeto com o Ministério do Interior.

RM – Vocês estavam assessorando?

CV – Nós fizemos todo o planejamento desses estados.

RM – A Secretaria de Planejamento.

CV – O povo da Secretaria de Planejamento de Minas Gerais com os setoriais. Nós fomos todos para Rondônia, Acre, Amapá e Roraima ajudar na criação do planejamento dos estados. O Carlyle foi lá para explorar a possibilidade. Mas, nesse momento, nós estávamos com um racha danado na Secretaria de Saúde e na universidade, com o pessoal supostamente da nossa velha guarda, que eram dois anos ou três anos mais velhos do que a gente. Estava muito dividido. Era o Paiva, o Filadélfio, Conde Boechat. Então, recomendamos o Carlyle não ir para Minas Gerais, pelo menos, não com aquele pessoal. Nesse meio tempo muda o governador de Minas. Entra na Secretaria de Saúde, a nossa turma. O Eugênio, o Zé Maria Borges, gente assume a Secretaria de Saúde. Então, o pessoal que era do segundo escalão, na Secretaria de Saúde, no novo governo, assume o primeiro escalão.

CV – Então quatro, cinco, por aí. Então, isso foi muito importante. Foi aí que eu tinha conhecido o Carlyle.

FIM DA FITA 1/LADO B

FIM DA FITA 2/LADO A

FITA 2/LADO B

CV – Eu fiquei impressionado, por exemplo, como que esse isso foi um troço que o Carlyle fez com a gente, sabe, é diferente do resto da OPS. Nós tínhamos o diabo do programinha de trabalho da comissão de coordenação, que a gente reunia. Esses caras falavam, o fulano tinha uma discussão...

CH – CIPLAN [Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação]?

CV – Não, a CIPLAN era uma Comissão Interinstitucional de Planejamento e Saúde, uma coisa assim. Mas, que depois, a gente queria inclusive colocar o PPREPS, o programa de recursos humanos nesse marco da CIPLAN. Porque aí, começou a entrar, entrou o PPREPS. Como é que chamava o programa de ações integradas de saúde?

CH – O PIASS [Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento].

CV – Então, a gente queria entrar e expandir esse negócio, pois não dava mais para ficar só na coisa restrita da formação do pessoal. Tinha também a questão de utilização e a questão de mercado de trabalho.

RM – Essa era uma iniciativa que você está dizendo, que era bem acolhida?

CV – Era bem acolhida.

RM – Por parte dos ministérios da OPAS?

CV – Das secretarias de saúde.

RM – Órfãos.

CV – Órfãos. A gente, bem ou mal, era um mecanismo que estava aí. Quando, eu estava vendo agora você olhando os cursos e os seminários que a gente dava, as oficinas e tal. Elas acabavam indo para outros temas, incorporando outros temas. Tanto por sugestão nossa e por demanda também do pessoal.

CH – E foi nessa segunda fase que vai ser concebido o PREV-SAÚDE [Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde]? Iniciozinho dos anos 80?

CV – Que foi concebido o PREV-SAÚDE.

CH – Que passo foi esse? O que significou?

CV – Foi um negócio engraçado, teve a fase que eu não vivi a experiência do programa entre 89, entre 79 e 81.

CH – Então, você não acompanhou o início?

CV – Eu saí. Porque o programa ia acabar. Então fui para Inglaterra.

CH – Foi para a área de Filosofia?

CV – Para fazer um mestrado em Filosofia, sobre Desenvolvimento Sócio-Econômico. Foi interessante porque também tem a ver com as nossas interseções, que a gente estava falando. Porque, a gente tinha muita coisa de onde fazer, eu já tinha feito o mestrado, então, podia fazer um doutorado. Onde é que a gente podia ir em outro lugar? Então, eu me lembro que o meu sonho era a Hopkins, a Johns Hopkins. Eu conheci o Vicente Navarro no começo da história. Eu tinha aquela idéia de ir para lá e não sei o quê. E eu estava com isso na cabeça. De repente, uma menina, de Minas Gerais, a Mercedes Somarriba, foi fazer uma tese em Sussex [Universidade de Sussex] no IDS [Institute of Development Studies] sobre Montes Claros. Não sei se vocês conhecem a Mercedes? Mais uma maldita tese sobre Montes Claros.

RM – Realmente, deu foi tese.

CV – Deu foi tese. Pelé tem razão. O que que aconteceu? Chegando na época que eu queria fazer o mestrado, um curso fora, eu conversei com os colegas e os caras falaram: “César, por que que em vez de você ir para uma escola de Saúde Pública clássica ou avançada, por que que você não vai para um lugar assim, tipo Sussex?”.

CH – História?

CV – História, e a sua?

RM – Ciências Sociais.

CV – Ciências Sociais. A gente tinha na profissão da gente aquela estrutura muito rígida dos campos de conhecimento dentro da profissão. E quando você precisava de alguma coisa de História ou de Ciências Sociais, você pegava algum de nós e mandava lá fora aprender alguma coisa e voltar. Mas, a raiz e básica estava mantida.

RM – Estava mantida.

CV – Você está entendendo? Foi esse negócio de trazer um historiador, um cientista social para o campo nosso, era uma loucura e impensável na coisa médica. Então, era muito o paradigma principal, de você ir para um curso de Saúde Pública, onde tinha as cadeiras clássicas e um bom curso de Ciências Sociais. Eu fui o primeiro aluno médico de Sussex. Nunca tinha entrado, logicamente, “o que você veio fazer aqui, cara?”, e não sei o que. Eles eram um grupo de desenvolvimento sócio-econômico e que tinha, inclusive, uma equipe de saúde lá dentro.

RM – Não tinha formação médica?

CV – Não, médica. Tinha um médico, um cara muito especial. E teve outros que eram cientistas sociais trabalhando com a saúde, a exemplo do Malcolm Seagal, que era o médico, e o Emanuel de Kadt, que era o cientista social, com muita experiência em América Latina. Então, eu fui para [Johns] Hopkins [University]. E Hopkins foi um espetáculo para mim, porque eu pude trabalhar na Índia, na China e na América Latina. Era na área da saúde e outras coisas, no meio de gente que trabalhava com desenvolvimento sócio-econômico.

RM – Você ficou dedicado, exclusivamente, ao curso nesse período? Ficou de licença.

CV – Dois anos. Pedi uma licença por dois anos e fui para lá com a família. Em relação ao curso você tinha que entregar um paper cada dois meses e meio. Deveriam ser feitos nove papers mais a dissertação.

RM – Foi sobre o quê a sua tese afinal?

CV – Ai, meu Deus do céu! A minha dissertação foi sobre o Brasil. Eu estava olhando o desenvolvimento da saúde. Eu fiz algumas especulações, porque estava acabado de ser criado o PPI [Programa de Pactuação Integrada]. Eu tinha um sonho de fazer uma monografia e uns troços assim de coisa. De examinar, porque a gente discutia demais, tinha muita gente sua lá para discutir a história da teoria da dependência e os enfoques do desenvolvimento. Tinha o Hang Seng, o chileno, o mexicano, o cubano, o africano, e gente do mundo inteiro. Eu, europeu e pessoas da União Soviética. Eles eram um centro, uma universidade também nova, que foi criada para fugir um pouco do Imperial College da Universidade de Londres, de Manchester e de Oxford. Então, eles pegaram as dissidências de outros lugares e levaram para lá. Pegaram muita gente do Brasil e do mundo inteiro, e levaram para trabalhar lá. Então, para mim foi uma coisa espetacular porque eu pude ver a experiência brasileira no contexto mundial, comparando-a com outras coisas que estavam acontecendo. Foi um troço fantástico!

CH – Quando você volta para essa segunda fase do PPREPS? Com que tipo de responsabilidade?

CV – Quando eu voltei para a segunda fase do PPREPS, foi engraçado porque, porque fiquei um ano numa situação meio precária de trabalho, devido uns problemas de contrato lá na PAHO [Pan American Health Organization]. Supostamente era a equipe onde trabalhava o Carlyle, que era candidato a diretor da OPS. Por isso fiquei de precário lá.

CH – Você lembrar se você entra na primeira fase como OPS?

CV – Na primeira fase, eu fui funcionário da OPAS. Na segunda fase, quando eu voltei, passei um ano e tanto como consultor contratado a cada dois meses, numa situação precária, com quatro filhos. Mas fiquei.

RM – Quando você saiu para Inglaterra foi numa situação de licença?

CV – Não. Acabou o meu contrato na OPS. Tinha um sistema que nós éramos contratados a cada dois meses, durante dois anos no máximo. Tem um pessoal excepcionalmente que são contratados, porque eles falam carreira, que é até aposentar. Mas, é muito raro, hoje em dia. Hoje em dia, todo mundo é contrato renovado de dois em dois ou de cinco em cinco anos.

CH – Então, você chega naquela fase em que já não se recebia em dólar. Isso gerou aquele problema no PPREPS, no início dos anos 80.

CV - Quando eu voltei, os caras estavam no final daquela fase. Você falava de resolver, de acabar os contratos em dólar. Eu fiquei durante um ano e tanto e fiquei contratado precariamente, com o contrato de serviço prestado, assinava o contrato a cada dois meses. Eu tive uma experiência fascinante, fora esse drama. Começamos a montar o que era o negócio e a fazer umas entrevistas. Já estava na história do movimento da reforma e do sistema nacional, essa coisa toda. Então, a gente começou a preparar material e algumas coisas relacionadas com isso. Eu me lembro que eu entrevistei Deus e o diabo. Entrevistamos e conversamos com os diferentes interlocutores para entender um pouco o que passava pela questão do sistema nacional de saúde. E foi aí que apareceu a história do partido sanitarista. Teve uma eleição de governador estadual, não sei em quê ano. E a gente tinha, nessa época, um curso descentralizado de planejamento, que a gente dava em vários estados, com o tema política de planejamento, uma coisa assim. Nós montamos um exercício, em cada estado aproveitando para fazer uma análise do que os candidatos a governador estadual estavam apresentando de proposta de governo em geral e na área de saúde. Naquela época, havia uma divisão entre a Arena e o MDB [Movimento Democrático Brasileiro]. Não era PMDB e PFL [Partido da Frente Liberal]. Você olhava os candidatos e você tinha os programas bem diferentes na hora que você olhava os programas estavam e em geral os de saúde estavam aqui. Então numa famosa reunião em Brasília, estava todo mundo discutindo essas coisas. Saiu uma história do partido sanitarista. Era como se houvesse divisão na sociedade brasileira com relação à saúde. Mas ela não era tão grande. Quanto era em relação a outras coisas. Havia alguns consensos que estavam se formando. Foi aí que surgiu a idéia de que havia um partido sanitarista, como uma hipótese. Eu estou falando isso porque outro dia, alguém me mostrou na biblioteca, na BVS [Biblioteca Virtual em Saúde], o [Sergio] Arouca fez algum comentário de alguém da Fiocruz fazendo uma crítica à discussão do partido sanitarista. Achei engraçado porque ele falou da mesma reunião da OPS, onde eu acho que esse troço foi aventado pela primeira vez.

RM – Isso foi tratado seriamente?

CV – O quê?

RM – O partido sanitarista.

CV – Não, foi tratado numa reunião.

CH – Na verdade, quem escreveu, achou que de fato existia o partido?

CV – Não sei disso. A pessoa critica a reunião da OPS em que esse assunto foi discutido. O partido sanitarista foi usado numa conversa, numa apresentação usando isso como se houvesse, do que eu me lembro hoje, eu vou ter, inclusive, tem que achar as transparências, das quais eu falei.

CH – Mas, isso foi um movimento relativamente organizado.

CV – O quê?

CH – O partido sanitarista.

CV – Acontece que a diferença era muito pouca. Havia muita coisa em comum na questão entre os partidos em relação à proposta de um futuro SUS. Muito mais semelhante do que as diferenças que os caras tinham para o setor do petróleo ou de siderurgia. Porque, se você olhar, inclusive, reproduziam um pouco o debate, depois que a gente ia se dar conta do que estava acontecendo com o resto do mundo. O debate dos sistemas beveridianos e dos sistemas bismarckianos de seguro de saúde. Quer dizer, ninguém pensa em troço que seja puramente estatal ou puramente privado, pois é uma mescla.

CH – O PREV-SAÚDE estava nisso?

CV – A gente estava discutindo essas coisas e vendo esses negócios.

CH – Por que o PREV-SAÚDE não foi para frente? Ou seja, porque ele não vingou? Em parte, assim como no próprio PPREPS, as pretensões eram grandes, em relação estimativa de cobertura, um pouco fora das possibilidades, não?

CV – Eu não sei. De repente, a gente não tinha analisado direito. Tem um vídeo de uma conferência do congresso da ABRASCO que foi em Salvador, na Bahia, uns dois, três anos atrás.

CH - Acho que foi 2000.

CV – Você lembra desse troço? Nessa reunião tem uma conversa de velho em que está o Arouca e mais não sei quem mais.

RM – Foi gravado o vídeo?

CV – Foi gravado, eu vi o vídeo. Eu não estava no congresso. O SUS, nós jamais discutimos, por fato de que nós éramos do IPEA e tínhamos um plano de saúde. Éramos da Fiocruz e tínhamos um plano de saúde da Fiocruz, éramos do Ministério da Saúde, tínhamos o GEAP, que éramos do Banco do Brasil, tínhamos o CACIS. Quer dizer, todo mundo tinha um plano de saúde. E uma das coisas que eu acho mais curiosas nesse negócio, quando saiu a lei do sistema nacional de saúde, foi a expressão Sistema de Saúde Suplementar. Porque nós negamos a bandeira do SUS. Porque nós tínhamos um sistema muito melhor do que o do SUS em geral. E a gente não debateu isso em profundidade. A gente, de uma certa forma, a gente esqueceu ou ignorou ou não sei quanto o fato de o SUS ser um sistema universal. O SUS tem uma proposta universal.

CH – Você fala em universalização excludente?

CV – Universalização excludente. Eu assisti uma vez na campanha eleitoral um debate que me deixou congelado. Foi num programa do Jô Soares, em que apareceu o Lula. Ele teve uma capacidade de energizar o público, ele tem uma coisa para discutir, para conversar, aquele jeitão de falar, muita coisa de capacitação. Ele falou, falou, falou. Lá no final do programa, levanta uma moça, que era enfermeira, e perguntou um negócio da saúde. O Lula encostou a mão no ombro do Jô Soares, disse: “Jô, nós não temos problema, porque nós temos um plano de saúde. Se nós precisamos de alguma coisa, lá no INCOR, a gente vai lá e fala com o [Adib] Jatene. O Jatene cuida da gente, não sei o que e tal. Agora, o povo tem”. Eu fiquei inclusive chocado de ver como é que o Lula se apresentou. Eu falei: “Isso é um desastre eleitoral, ele falar um troço desse, assumir a questão dele ter um plano lá dos metalúrgicos lá de São Bernardo. Porque nós negamos o troço do SUS. A gente não trabalhou esse negócio do SUS. Me lembro numa das Conferências Nacionais de Saúde, que a gente fez um negócio incrível. A gente fazendo essas entrevistas, no tempo do Guilardo [Martins Alves], quando ele era presidente da Fiocruz ou era o diretor da escola? Guilardo Martins Alves.

CH – Diretor da escola.

CV – No tempo do Guilardo, a gente fez uma história de fazer umas entrevistas com interlocutores do sistema nacional de saúde. Foi um exercício fantástico, que eu fiz junto com o Pelé [Alberto Pellegrini Filho]. E, numa das Conferências Nacionais de Saúde, eu me lembro que nós pegamos a turma sindical para entrevistar. Entrevistamos, de noite, na sinuca lá do [conjunto] nacional, em Brasília. Só nós e os caras tomando cerveja e jogando sinuca, não sei o que, era um lugar muito popularzão, não tinha nada. No dia seguinte, nós tínhamos que entrevistar o povo da Federação Brasileira de Hospitais e da ABRANGE da medicina de grupo. E o único lugar que a gente conseguiu marcar com os caras foi no restaurante do senado ou na câmara dos deputados, onde estava acontecendo a conferência. E eu não posso me esquecer que nós estávamos comendo com os caras, quando entra a turma dos sanitaristas. E o Eleutério [Rodrigues Neto] olha para gente e fala assim: “olha aí o traidor por um prato de lentilhas”. Eu falei:”Pelé [Alberto Pellegrini Filho], mas nós somos umas éguas, nós devíamos ter comido de noite, com esses caras, escondidos”. A gente tinha esse troço muito arraigado. Isso não é um troço do Brasil. Esse não é privilégio nosso.

CH – Gostaria falar um pouco sobre esse entendimento de que o privado é sempre promíscuo. Essa visão é muito forte na tradição brasileira. Fiquei muito impressionado quando eu tive acesso a parte do debate em torno do PREV-SAÚDE nos jornais, O Estado de São Paulo de 81, 82, 83. Mário Magalhães combatendo duramente o PREV-SAÚDE. Eu fiquei bastante impressionado. Eu ainda não consegui entender muito bem, o PREV-SAÚDE, não foi implementado, quais forças se movimentaram contra ele?

CV - Ele ficou como proposta.

CH – Em três anos foi engavetado? Em 83?

CV – Ficou como proposta. Muitas coisas foram de alguma maneira absorvidas. Vocês viram o troço do [Bill] Clinton, como é que deu para trás? Ele não conseguiu fazer uma reforma da coisa americana, porque é muito complicada. Não conseguiu juntar a força. Vou contar para vocês, durante 20 anos na PAHO, fui responsável pela preparação de alguns capítulos da “Saúde nas Américas”. Inclusive, a parte de financiamento em saúde era a maior picaretagem do mundo. A gente soube que tinha uma moça lá no Banco Interamericano que juntava umas tabelinhas de gasto em saúde do Ministério da Saúde, da Previdência e tal. Então, todo ano, a gente mandava uma interna para lá, quando precisava da tabela para buscar os dados e a gente publicava os dados que eram do BID. Dava o razoável, mas nós nunca usamos. Um dia, nós fomos lá, já quase fechando a edição do “Condições de Saúde das Américas”, a moça foi lá no BID e voltou com a notícia aterrorizadora. A menina do BID que fazia a tabela tinha se aposentado e a tabela tinha sido descontinuada. Então, eu juntei a minha equipe e nós falamos: “nós temos duas opções, ou nós vamos passar o vexame de tirar esse troço da coisa, ou então, nós vamos agarrar a saia e as calças pelos dentes e fazer uma tabela de alguma maneira”. E começamos a catar dado do zero, começamos juntar. E acabou virando um movimento lindo da questão das contas nacionais de saúde de estimar com mais rigor essas coisas. Na hora que sai o “Saúde nas Américas”, teve alguns países que sistematicamente mandam uma carta para OPS de várias páginas criticando o troço, página por página e não sei o que, esse dado está ruim. Os caras lêem com atenção, esse dado não está, esse está bom demais, não é tanto assim, nós não estamos tão bem assim, nós não estamos tão ruim assim, não sei o que e questiona. Nós publicamos 15% de gasto privado de Cuba. E Cuba, que é um desses países que todo ano questiona página por página, jamais questionou nossos dados. Eu já conversei isso com os companheiros de Cuba. E eles, às vezes, até riem para gente, falam: “ah, César, vocês estão otimistas com a gente, estão muito benevolentes com a gente”. Porque se você olhar Cuba, é um sistema misto. Porque ele tem um grande componente estatal. Ele tem um grande componente comercial, tipo Ivo Pitanguy, do povo que vai para Cuba prestar serviço. Cuba vende o serviço de uma maneira muito exitosa. E tem as operações por baixo do pano, que dentro de Cuba, acontecem. Porque os cubanos são gente feito nós. Eles não são anjo. Os caras, eu me lembro de uma vez quando eu estava andando um rua em Havana assim, com uma turma de colega, e com ministro de saúde. De repente, eu vejo um ministro, o [Carlos] Dotres, um cara fantástico, que era deputado lá da Assembléia Nacional, agarrando um pretinho assim na rua, “cábron de mierda”, não sei quanto, contra-revolucinário, não sei o que e tal. Eu cheguei lá perto, peguei o Dotres, separei, tirei o menino, “que era Dotres?”, “esse hijo de puta...” Esse estava me vendendo Cuba”, inventou um remédio que é para umas doenças raras.

RM – E o menino estava vendendo?

CV – O menino pegou aquilo de algum laboratório do governo. Pensou que nós éramos turistas e estava vendendo para o ministro de saúde. E o ministro se sentiu....

RM – Que azar do garoto.

CV – Na vista da gente, estrangeiro, eu abracei o Dotres, disse: “Dotres, bem-vindo à América Latina”.

RM – Bem-vindo ao clube.

CV –Acontece, meu Deus. Eu acho que não tem, pelo que eu observei até hoje, em nenhum país com 100% quimicamente público puro, quimicamente privado puro. Eles têm mesclas ou algumas mesclas muito transparentes, muito bem reguladas e controladas para evitar bagunça. E outras mesclas que são um quilombo, um carnaval. Tem um estudo de um cara chamado Francisco [Ferreira], que é do Banco Mundial. Um menino daqui do Rio de Janeiro, um economista, que escreveu esse ano o informe do Banco Mundial sobre pobreza. O Francisco está comparando, inclusive, os diferentes setores progressivos e/ou regressivos nesse negócio. E uma das coisas, que eu achei até isso interessante para nós, foi sobre o setor de educação, pelo fato de ser mais regressivo que o de saúde. Talvez porque a regressividade ou a progressividade não sejam iguais nos diferentes níveis de atenção ou nos diferentes níveis de educação. Mas, na hora que você vê, possivelmente, as diferenças na área de atenção básica não sejam tão grandes. Mas, na hora que você vê atenção terciária ou ensino universitário. Então, você sente como o país é regressivo, como ele tem dificuldades de fazer. A reunião de Salvador me chocou, porque foi a primeira vez que os caras falavam assim, muito do fundo do coração, lembrando essa coisa e reconhecendo as dificuldades. De que a gente ainda não superou esse problema.

FIM DA FITA 2/LADO B

FITA 3/LADO A

CH – Para retomar, a gente estava falando sobre o seu retorno da Inglaterra para o Brasil e a sua inserção na segunda fase do PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde].

CV – Nessa fase, a gente estava vivendo uma dificuldade aqui, por causa da confusão com Washington. E como o Brasil, o Carlyle [Guerra de Macedo] estava sendo lançado candidato. Tem um negócio gozado sobre a história do Carlyle, alguém foi convidar, está me faltando o nome do ministro da saúde aqui, piauiense. Foi o Waldir Mendes Arcoverde consultar o Golbery [do Couto e Silva], porque ele pensava em lançar o Carlyle como diretor da OPS.

CH – Achou uma maravilha?

CV – Teve duas fofocas na eleição do Carlyle para OPS. A primeira era de que o Arcoverde era da máfia do planejamento. Foi falar com um dos precursores do planejamento da OPS, que era do céu, misericordioso. Eu prometo os nomes, apesar de ficar esquecendo. Dessa forma, vou aumentando a minha dívida. Um peruano, que trabalhava em Genebra, na área de planejamento. Foi falar com ele se ele não queria ser candidato a diretor da OPS, David Tejada de Rivera. Na Assembléia Mundial de Saúde, o Arcoverde consultou o David Tejada: “Davi, nós estamos lá, o [Héctor] Acuña está terminando o período, você não quer se lançar, o Brasil te apóia”. Aí, o Davi falou com o Arcoverde: “Arcoverde, que isso, rapaz? Vocês têm um candidato melhor lá no Brasil, que é o Carlyle. Por que vocês não lançam o Carlyle?”. Então, o Arcoverde voltou animado para o Brasil, para lançar o Carlyle. Mas, antes de promover o troço no Itamaraty, foi conversar com o Golbery. E o Golbery disse: “não, olha aqui, se fosse para uma coisa aqui no Brasil, eu achava que não. Mas, como é fora do Brasil, é até bom, a gente ficar livre dele, porque ele é um cara meio de esquerda e aparece um nome mais palatável para os outros países” Então, o Brasil lança o Carlyle. E não é que o David Tejada se lança também. Apesar dele ter insinuado o lançamento do Carlyle, ele se lança com esse negócio. E esse troço foi gozado porque a história do Carlyle ser comunista, e de ter alguma ligação com o partidão, no começo, todo o trabalho dele com o Celso Furtado, na SUDENE, aquelas coisas. Eu sei que, lá na Inglaterra, eu escutei uma história dessa de gente ligada ao Tejada falando que o Carlyle era comunista. Então, eles tiveram até uma reunião cerrada no Amazonas, uma vez, na selva, em algum país na fronteira do Brasil com o Perú, para ver se o Carlyle falou a conta errada para os caras. Tiveram algum entendimento sobre as regras da campanha. Mas o fato é que o Tejada, que tinha insinuado a candidatura do Carlyle.

CH – E o que mudou na cooperação técnica OPAS-Brasil [Organização Pan-Americana da Saúde]?

CV – Ficou tenso.

CH – Com a eleição do Carlyle?

CV – Não, com a candidatura do Carlyle. Meu período foi precário por causa disso, não me deixaram contratar. Porque o pessoal achava que o Carlyle queria ficar livre. Ele queria que eu ficasse de coordenador. Então, eu não fui contratado. E o Carlyle teve problemas de os caras ficarem chacoalhando, sabe como é? Com esse negócio, durante a campanha. Bom, o fato é que só vim a ser contratado outra vez, uns dois meses depois que o Carlyle já tinha sido eleito. Com duas razões, a primeira foi a que eu estava trabalhando na equipe; e a segunda que o Carlyle tinha saído da equipe. Então, precisava de alguém com perfil assim. Então, eu fui contratado para substituí-lo.

CH – E nessa segunda fase, quem mais entrou e saiu? Só o Carlyle sai?

CV – Não, nessa época já tinha entrado com o [José] Paranaguá [de Santana], que foi da época inicial. Tinha entrado o [Alberto] Pellegrini, na área de ciência e tecnologia. Mudou o pessoal do MEC [Ministério da Educação e Cultura], porque o Francisco [Lopes] e a Regina [Coeli] saíram.

RM – Já tinham saído.

CV - Que interrompeu o PPREPS. E já na segunda etapa, não vieram outras pessoas do MEC. Não sei se vocês viram a equipe de 84. A Regina [Coeli] saiu. Entrou o Paranaguá, e o Francisco [Lopes] ficou ainda um tempo. Depois entrou a Maria Tereza Grande. Vocês têm esse documento?

RM – Você tem?

CH – Esse não.

CV – Esse, nós vamos ter que tirar uma cópia dele. Esse aqui é o relatório de 84. Esse foi o relatório que foi de 84, que a gente faz umas considerações mais amplas. Ele está muito detalhado. Tem esse aqui de 80, 78. Esse quase que pega a primeira parte. Esse aqui [referindo-se a um texto em mãos] que era do Programa de Legislação do Serviço de Saúde, que foi um troço que a gente fez nessa época e tem esse que era a proposta do PREV-SAÚDE.

CH – O Pellegrini me passou, mas ele realmente não sabia me dizer se era o documento final. Apenas me passou uma versão.

CV – De quando ele é?

CH – Acho que é outubro de 80 ou 81.

RM – Agosto.

CV – Agosto de 80. E esse aqui é o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde, aqui tem muita coisa que a gente discutiu da reforma, do SUS, da coisa dentro do negócio.

RM – Eu gostaria de tirar uma cópia.

CV – Pode tirar uma cópia. E eu tenho outros materiais, se vocês quiserem tirar cópia. Ele é de 84, vocês não tem não? Eu tenho mais coisa lá em casa. Tem uma frase do Pelé, que eu nunca esqueço. Eu falei para vocês do Délcio [da Fonseca Sobrinho].

RM – Não.

CV – O Délcio fez uma tese sobre Montes Claros.

CH – Você comentou. O Délcio foi em Brasília para me entrevistar. Eu fiquei apavorado, com ele, na entrevista, porque ele exigiu uma série de coisas, me perguntou e eu tive que catar os meus documentos. Fiquei lembrando da minha visita ao cara de São Paulo. Falei com o Pelé: ”ô, Pelé, sabe de uma coisa, eu sofri ontem com o Délcio, por causa da entrevista. E onde é que eu guardava os materiais. Eu tenho impressão, Pelé, que eu vou começar a organizar os meus documentos melhor”, porque isso pode ser importante para alguém que vai fazer uma tese sobre o seu trabalho, fazer alguma história, a sua biografia, não sei o quê. O Pelé falou assim: “ô, César, eu acho bom você organizar os documentos, mas faça alguma coisa para merecer uma biografia” Então, disse para ele: “Pelé, estou quase completando a fase dos documentos”.

RM – Na segunda fase, você entrou para coordenar o grupo?

CV – Eu fiquei durante um ano que o Roberto [Nogueira] ficou coordenando.

CH – O Roberto fica?

CV – Porque o Carlyle ficou em licença em campanha. O Roberto Nogueira ficou coordenando. E eu fiquei fazendo esse trabalho com as entrevistas.

RM – Era e época em que você estava naquela situação funcional precária?

CV – Sim.

CH – Em nenhum momento você coordenou o PPREPS?

CV – Em 83, eu assumi a coordenação do PPREPS.

RM – Quando o Carlyle sai.

CV – Quando o Carlyle caiu, eu assumi a coordenação do PPREPS. Para corrigir uma coisa que você falou, Carlos, e que me deixou muito chateado, não o que você falou, o que que aconteceu. Vocês lembraram, foi nessa época que mudou o regime do PPREPS. Os contratos todos passaram a ser em real. Cruzado, o que que era na época?

CH – O cruzeiro.

RM – Cruzeiro novo.

CV – Eu tenho impressão que mudaram o formato dos contratos, menos o meu. Como coordenador do grupo, o meu foi mantido, entende? O que me deixou meio chateado com o negócio do grupo. A gente discutiu esse troço com o Carlyle. Foi um esquema institucional que arrumaram para fazer. Então, ficou só para corrigir, não mudou de todo mundo, o meu não mudou, foi mantido. Eu tenho impressão que o que eles fizeram foi dar uma compensação pelo período que eu tinha ficado precário. Eu fiquei porque isso deve ter sido de maio, ou de abril ou março de 83 até junho de 85.

CH – Formalmente, era coordenador do PPREPS?

CV - Programa de Desenvolvimento de Recursos Humanos para a Saúde no Brasil. Era o nome ampliado. Aqui, inclusive, tem um convênio, tem a documentação que está bastante completa aqui porque tem os relatório, uma história da criação, de porquê que o programa, os convênios, essa coisa toda. Então, atividade como coordenação do programa, nessa época, foi muito diferente, porque nós passamos a ter, do ponto de vista da OPS, um apoio muito melhor. Porque o Carlyle estava na direção da OPS, em Washington. Então, a gente deixou de ser um grupo com restrições, às vezes, e de ter problemas com a direção da OPS na área administrativa; nós passamos a ter uma boa relação com o governo nacional, com as secretarias e com a OPAS. Isso facilitou muita a coisa. Nessa época, eu tinha a coordenação do grupo todo. Eu fazia outras coisas também, além de coordenar o trabalho técnico. Por exemplo, a gente começou a mexer com a questão da economia, com os estudos do PISS [Programa de Investigação em Serviço de Saúde]. Também fazíamos alguns cursos, os quais participava intensamente. Começamos a entrar muito na reforma sanitária.

RM – O CADHRU [Capacitação em Desenvolvimento de Recursos Humanos de Saúde] é dessa época?

CV – Acho que vem depois.

CH – O CADRHU é 87.

CV – Eu tenho impressão que já foi depois. O Larga Escala.

RM – O Larga Escala também?

CV – Acho que já vem depois.

RM – Você deixa a coordenação do programa quando você vai para Washington?

CV – Quando eu vou para Washington. Acontece o seguinte: em 85, deixei a coordenação do programa porque eu fui selecionado para uma posição em Washington, na área de planejamento da OPS. Estive um ano nessa área de planejamento. Depois, fui para uma nova área, um programa de políticas de saúde. Então, no Brasil, a gente estava mexendo com a questão de política e planejamento e de plano de saúde, com a questão de economia, da democracia e saúde, e a questão da equidade em saúde. Foi sempre uma equipe multidisciplinar trabalhando com temas cruciais. E mais recentemente, dentro de iniqüidades, quando a gente começou a mexer com pobreza, saúde, redução de pobreza e raça. Ou seja, a questão de etnicidade e saúde.

CH – Esse é um debate bem atual. A questão da etinicidade e saúde, nos últimos anos começou a ser reconhecida pela OPAS, a relação da doença com o perfil racial.

CV – Você não imagina como a descoberta desse troço foi para nós. Porque a gente jamais suspeitou desse tipo de coisa.

CH – Essa descoberta se deu, me parece, em parte, por conta do ativismo político, porque hoje têm grupos que estão muito bem articulados. Inclusive, com fóruns internacionais. Como é que se deu essa descoberta?

CV – Essa descoberta teve várias origens. Mas, uma das descobertas foi por coisa de ativismo. O Banco Interamericano fez um estudo pioneiro sobre esse negócio, analisando a questão de raça. Com um grupo lá de Washington, uma ONG [Organização Não-Governamental], que mexia com a questão racial. Tive muita influência do movimento negro americano. Eu me lembro que houve uma conferência sobre iniqüidade na Fiocruz.

CH – Acho que foi o ano passado, tem dois anos.

CV – Teve uma conferência e nessa conferência a gente sugeriu a entrada desse tema. E o pessoal falou: “como? O quê?”, você está entendendo? Os companheiros. Esse caso, inclusive, eu uso como exemplo, às vezes, um grupo de alto nível intelectual e progressista, o tema não estava presente. Como é que chama esse menino que trabalha com saúde indígena? Ela é da ENSP. Não importa. Então, de repente, os negros americanos começaram a contar para gente que você pode ter o mesmo nível educacional, pós-graduação completa, mesmo nível de renda, ter o mesmo seguro saúde e o plano de saúde, ter a mesma coisa; se você é negro, o seu tratamento vai demorar mais, vai doer mais, vai ter um resultado pior, vai ser maltratado. Porque o médico não sabe, a enfermeira não sabe, o sistema não conhece. O sistema culturalmente. A gente começou a trabalhar esse negócio.

CH – Lá tem um programa como o que tem aqui, da Anemia Falciforme, por exemplo, tem alguma coisa do tipo?

CV – Trabalhamos muito.

CH – Aqui, já é formal, ainda que o programa não esteja efetivamente funcionando.

CV – Mas, esse povo da anemia falciforme está trabalhando muito com a Cristina [Torres]. Em São Paulo tem a Sueli [Carneiro] que trabalha na Associação de Anemia Falciforme. Ela trabalha muito com a Cristina Torres, que é uma colega nossa que mexe com essa área aí. Então, hoje, esse negócio, de repente, começa a ser reconhecido. Engraçado, a sensibilidade do setor como um todo, dos investigadores e do pessoal para a área indígena, muito maior. Apesar de que, os indígenas é uma minoria da população. E a população negra afro, afro-latino-americana é 40 e tantos por cento da população brasileira.

RM – Historicamente, foi o grupo dizimado. Então, acho que é uma espécie de resgate.

CH – É curioso isso, porque você vê, hoje, que o movimento negro está, digamos, se apropriando das áreas indígenas como se fossem áreas negras. Se você falar em saúde negra no norte do país, onde, grosso modo, a população tem origem étnica indígena....

RM – Indígena.

CH – Eu gostaria de fazer uma pergunta sobre sua ida de um ponto ao outro da cooperação técnica. O que que mudou? Quais mudanças você percebe a partir do lugar que você está ocupando em Washington? O que você sentiu de diferente nesse momento da cooperação técnica OPAS-Brasil?

CV – Eu acho que olhando, hoje, tendo idéia do resto da nossa cooperação no continente, eu tenho impressão de que o trabalho que foi e continua sendo feito no Brasil, é um trabalho muito especial.

CH – No fundo, parece que o trabalho funcionaria apesar da OPAS. Era um movimento genuinamente nacional.

CV – Nacional.

CH – Extremamente misturado ao movimento sanitário.

CV – Pode ser que a gente teve algum oportunismo de entrar nesse negócio e de fazer entendeu? Mas, é muito diferente do resto da média dos outros países.

CV – Eu acho que foi uma experiência bacana, muito bacana. Inclusive, agora eu estou muito preocupado.

CH – Com a cooperação técnica hoje?

CV – Com esse tipo de coisa. Eu vou falar com vocês, já falei isso com outras pessoas, inclusive com a nossa querida diretora, a Mirta [Periago], sobre uma organização feito a nossa, que consegue manter, atrair, manter um [José] Paranaguá numa equipe. Paranaguá está conosco há mais de vinte e tantos anos. Ou que manteve uma Izabel [dos Santos] por não sei quanto tempo, ou um Edmundo Granda, no Equador. Ou uma Margarida Pedreira no Peru. Ou manter uma experiência muito positiva. Porque foram pessoas precursoras que conseguiram, sendo nacional, trabalhar a dimensão internacional, viver nesse negócio assim, que os outros estrangeiros não têm. A coisa não tem uma barreira natural, um limite para inserção, e essa coisa. E eu acho que, tendo participado desse tipo de experiência há vinte e tantos anos atrás, isso foi um negócio bacana para Organização. Agora por uma série de medidas, a Organização está tendendo que cortar esse tipo de experiência. Então, não sei se o Pará [José Paranaguá] conversou com vocês, mas ele está pensando, inclusive, estavam discutindo a história do Pará ir para Fiocruz.

CH – Ele falou. Em parte isso reflete, também, um certo desprestígio do tema recursos humanos, pode ser?.

CV – Não. Porque o que aconteceu com a Margarida, uma economista, que trabalhou com economia lá. Ela não é de recursos humanos, eu acho. Trata-se de uma política mais geral. Então, eu acho que já falei isso com a Mirta. Da mesma maneira que vocês estão fazendo esse relevamento, a reconstrução dessa história. Na Organização, nós fazemos umas besteiras, às vezes, que são históricas e enciclopédicas. Toda instituição no mundo usa o sistema de estágio, de recrutamento, de internato como uma forma de observar sangue novo, de ver novos candidatos eventuais. A OPS tem um programa lindo que chama Residência de Saúde Internacional, que está completando vinte e tantos anos agora. Ele é um programa espetacular, o qual todo ano a gente recebe dez, doze caras que já fizeram, no mínimo, um mestrado em Saúde Pública, ou em área relacionada. Eles passaram um tempo olhando cooperação internacional, em geral, em suas áreas específicas. A OPS auto-impôs uma quarentena para esse povo. Esse povo quando acaba, em dezembro, recebem o diploma, tem gente que passar dois ou três anos sem olhar para eles.

CH – Ele é punido?

RM – O que poderia ser uma fonte de renovação mesmo de quadro?

CV Sabe quem está olhando para eles? O Banco Mundial, o BID, a OEA, e as universidades. Todo mundo pega e contrata. Porque o que nós poderíamos contratar, não necessariamente todos, mas caras bons, bobagens históricas. Em vez de fazer, nós vamos entender isso daqui a cinco, dez anos. Porque, se você olhar no sistema de Nações Unidas, em todo ele, está cheio de gente nacional trabalhando nos seus próprios países. Pode ir no PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] ou na CEPAL [Comissão Econômica para a América Latina] em Brasília.

RM – Essa mudança de política, ela é explícita?

CV – OPS.

RM – Aos quadros do país. Ela é restritiva?

CV – A lógica é que a Mirta colocou é, inclusive, interessante. Possivelmente, em alguns casos, tenha havido algum tipo de benevolência, de alguém que ficou encostado por muito tempo sem produzir ou dar alguma coisa. Então, corrige, corta, tira e demite. Não elimina a modalidade. Então, ela fala que, em vez de fazer isso, é melhor você buscar novas formas de relação com o país e com as instituições nacionais. Em vez de ser com pessoas e instituições. Faz uma transição. Em alguns casos, infelizmente, estão sendo umas rupturas muito traumáticas.

RM - No país dos acordos de formação de recursos humanos, os acordos da OPAS era um misto, porque tinha o trabalho com o pessoal de ministério, integrando grupo e também a figura da OPAS no grupo.

RM – E deu certo?

CV – Deu certo em muitos países, não é só recursos humanos. Por exemplo, tem um menino, que é o Alexandre Girardi, no Uruguai. A Margarida, economista no Perú, o pessoal de Cuba foi sempre nacional. Só tinha um estrangeiro em Cuba que era o representante, o resto todo era nacional. Isso porque era exigência do governo cubano. É um pessoal que é dedicado que vestem a camisa. Eles não tiraram a camisa de Cuba, mas vestiram a camisa da OPS.

CH – Se a gente pudesse fazer um prognóstico, qual seria o prognóstico da cooperação técnica do acordo com esse modelo que está concebendo?

CV – Não de acordo com esse modelo com a função desse grupo que poderia ser substituído por novas relações institucionais, tais como os centros, os núcleos no país. Em vez de ter, na equipe, um grupo de recursos humanos; faríamos um convênio com a Fiocruz, que assumiria esse papel.

RM – E qual seria a função das representações?

CV – A representação continuaria com a sua função política e diplomática.

FIM DA FITA 3/LADO A

FITA 3/LADO B

CV –Todo ano, agora, em setembro, acontece isso: é feita uma reunião anual na qual vão todos os governos, discute, define, aprova e vota. Foi a primeira vez que a equipe do governo do Lula foi para lá participar. O chefe da delegação era aquele menino, o secretário executivo, de Campinas.

CH – Ele inclusive saiu agora?

CV – Saiu agora. Saiu antes da saída do Humberto Costa. Bom, mas, o Gastão [Wagner de Souza Campos]..... era um japonezinho da área de planejamento. A gente se reuniu com os caras, em geral, a comunidade dos países, de cada país com a sua delegação para decidir em que podemos ajudar. O japonezinho fez uma pergunta assim, para mim: “César, eu queria saber o conjunto das interfaces da OPS com o Brasil”. Eu pensei: “Que que isso que esse cara está perguntando?”. Eu falei: “Está bom, velho, eu vou procurar”. E ele foi entrevistando. Fui em umas dez ou quinze entrevistas lá dentro da Organização com ele. Eu, veterano e velho, impressionante. A minha conclusão é de que ninguém sabe o conjunto das interfaces das relações. Porque é tanta coisa e um processo multiporoso. Tão complexo. Por exemplo, eu fui na assessoria jurídica, onde é que tem, supostamente, todos os convênios registrados. Conversei com a menina do convênio. Mas, de repente, a gente num outro lugar, alguém contava: “ah, não, mas nós estamos fazendo um negócio com a Secretaria de Saúde do Amazonas, que não está nos convênios”. Então, é uma relação múltipla, que vai acontecendo de maneira impressionante. Eu não sei se, por exemplo, esse projeto está contemplado em algum convênio de repente.

RM – Ele está no Ministério da Saúde.

CH – É OPAS/MS.

RM – Que é a rede de Observatórios [de Recursos Humanos em Saúde].

CV – Da rede dos observatórios. Eu fiquei impressionado quando falei com o chefe da administração, com a diretora de finanças e de assuntos jurídicos. Conversei com esse pessoal todo e o pessoal não tinha a notícia toda.

RM – A representação do Brasil também não terá?

CV – Digamos que a representação deve saber a maior parte das coisas. Da OPS, eu tenho impressão que a representação, entre todo mundo da OPS, é a que sabe mais. Essa é a minha hipótese, que a representação é que sabe mais. Mas é muito difícil de você, de você levar, pois você tem que ser muito ativo para saber. Quantas reuniões estão acontecendo hoje em coordenações, transações e experiências boas ou más? Esse negócio começa a ser cozinhado, ou preparado, ou coordenado, ou desenvolvido, e vai aparecer formalmente, como um papel, uma proposta, não sei o quê. Então, são todos organismos vivos, cheios de gente viva. Então, o importante da Organização é se ela for fazer tudo formal, só no papel, a coisa está lascada. Eu acho que ela tem que ser mais aberta.

RM – O importante, eu fico pensando, é que se isso estivesse mais integrado em forma de rede, poderia se tornar mais visível tanto para o Brasil, como para a OPAS, naturalmente.

CV – Evidente. Porque isso é útil para o Brasil.

RM – Claro. Porque você evitaria desperdício mesmo de esforços.

CV – Eu já andei com uma advogada de Belo Horizonte, que está fazendo uma pós-graduação e que quer fazer alguma concentração na área de saúde. Ela de alguma maneira recebeu o meu nome. Então, me mandou um correio eletrônico. Doutor César, não sei o quê e tal, sou fulana e aqui está o meu currículo. Encaminhei para o fulano, para que pudesse conversar. Este tipo de consulta, eu faço normalmente por costume, mando uma cópia, “estou te pondo em contato com o representante ou com fulaninho, com o [José] Paranaguá, na representação, que também está metido nisso. Às vezes eu esqueço, mas ponho em contato. De repente, me mandou uma outra mensagem, de uma amiga dela, que é uma moça que tem um PHD em biologia molecular. Ela trabalhou com Chagas com xistossomose. Então, eu pus essa moça em contato com um chefe nosso de doenças transmissíveis. As relações vão acontecendo assim. Quando eu chego, outro dia, em Belo Horizonte, soube o que aconteceu. Uma ex-colega da minha mulher que estava conversando com uma colega dela, uma outra colega de ambas, e amiga da minha mulher, falou que nós estávamos voltando para Belo Horizonte. Depois de 29 anos fora. A filha da mulher estava escutando a conversa. Escutou aquela história, “ah e tal, e o César?”, ela falou: “quem?”, “César”, “, eu estou escrevendo e em contato com ele”. E as relações vão acontecendo.

RM – Você acha que a OPAS tem o espírito aberto, hoje em dia, em termos de cooperação?

CV – Ela tem. Eu tenho impressão de que é mais hoje do que antes. Antes era muito o senhor ministro, hoje já é mais aberto.

RM – Você usou uma expressão, a palavra poroso?

CV – Nós estamos na época da Internet, da comunicação. Então, é um negócio impressionante.

RM – Não sei se teria uma outra forma de isso acontecer.

CV – O negócio da internet está revolucionando o modo de produção do nosso de trabalho. Porque, antigamente, você tinha que viajar para entregar a cooperação. Era necessário levar fisicamente esse negócio. Hoje, você está fazendo virtual. Uma das áreas, mais recentemente, que estou trabalhando é na área de globalização, do comércio e da saúde. Vocês não imaginam o que está acontecendo hoje. Não sei se vocês lembram do [Carlos] Albuquerque? Ele foi ministro da saúde, morreu outro dia. Eu tive uma conversa histórica com o Albuquerque e ele falando sobre esse negócio. No meu tempo de estudante de medicina, quando estava fazendo internato de cirurgia, a gente tinha uma equipe de 30 pessoas no hospital, para trabalhar de noite numa cirurgia, hoje em dia, os caras estão se virando no plantão. O plantão está reduzido a uma equipe menor porque os outros profissionais, que antes estavam fisicamente ali, hoje estão virtuais no outro continente, com fuso horário diferente. Em vez de ser de noite.... os caras trabalham pela internet. Você não tinha isso, antes no processo de trabalho. Hoje está fazendo cirurgia e tratamento por Internet. O conhecimento está sendo produzido através de pós-graduação virtual e educação virtual. Isso está sendo feito sem precisar da presencial. As tecnologias educacionais são uma beleza que esse negócio. Isso está mudando a forma da gente pensar
.
CH – Você acompanhou a cooperação técnica OPAS-Brasil e boa parte do Larga Escala. O que você sabe sobre o Larga Escala hoje? Que impacto ele produziu, quando você estava lá?

CV – Eu tenho impressão que eu não estava acompanhando diariamente a coisa. E de que ele, ele provoca um impacto positivo, no sentido do pessoal estar vendo como uma modalidade de trabalho de cooperação, de resolver o problema que os países precisam. Claro que nós temos um problema, que é o fato da gente falar o português basicamente. Como é que o americano está fazendo o Larga Escala dele? Além das coisas virtuais, o americano contrata gente do mundo inteiro e traz o pessoal americano, canadense, inglês, francês, europeu e o espanhol. O Brasil teve que fazer o Larga Escala porque a alternativa não era satisfatória. A alternativa era buscar alguém da África que estava com uma preparação muito precária, de fala portuguesa para trazer para cá. Outro dia, há uns tempos atrás, no meu escritório de noite, toca o telefone, ‘ah, nossa, o seu número foi dado para mim pela embaixada brasileira. A gente é uma empresa de recrutamento de pessoal de saúde no mundo inteiro. Nós temos 15 filiais no mundo”. Então eu falei: “sim, e onde é que eu entro nesse negócio? A gente está querendo contratar uns fisioterapeutas brasileiros”. Falei: “fisioterapeuta brasileiro? Por quê?”, Porque a gente fez uma pesquisa e olhou os currículos e achou bom o currículo de vocês. A gente estava querendo contratar”. Eu falei: “eu conheço a Inês, a Marília e outras pessoas.” Ele disse“está bom, quantos que vocês precisam para começar, eu disse logo: digamos 250 para começar”. Então “não é comigo, companheiro”. Eu sabia umas duas muito boas. Os caras estão fazendo assim. Qual que é a demanda do SUS [Sistema Único de Saúde] para o Larga Escala?

CH – Mas não é formação, é sim a contratação.

CV – O americano tem, hoje, um déficit de 150 mil enfermeiras. E mais auxiliar, não sei quantas. Eles não vão formar esse povo. Eles vão contratar fora. Então, eles mandam os caçadores de cérebro deles irem para a Jamaica. Nós fizemos um estudo no Caribe, depois de quatro anos de formado, de graduado, 95% do pessoal de saúde do Caribe migrou. O americano está formando 16 mil médicos por ano. E eles precisam, só de residente, de primeiro ano, 24 mil. Então, só para completar as vagas de residentes, eles têm que importar 8 mil por ano. Estou dando esse exemplo, para dizer o seguinte: o Larga Escala, num país como o Brasil, de língua portuguesa, que é um limitante para nós, na inserção internacional, uma das formas de você responder a uma demanda grande, acumulada, é crescendo o sistema de educação. A Espanha está fazendo diferente, levando do Chile, do Equador e da Bolívia. Se essa importação ficasse só no remanejamento do superávit, não teria problema. O problema é que não fica. Você está gerando déficit no país de origem.

RM – Você diz que 95%?

CV – Migra do Caribe. Você não sabe da maior, no Caribe, na escola de enfermagem, por exemplo, 95% das enfermeiras migram. As enfermeiras são formadas, no Caribe, por um esquema à parte da universidade, porque o Ministério da Saúde paga cama e comida para elas. Elas têm bolsa, educação gratuita para pegar as moça e os moços do interior, para que eles estudem. Então, não é só a universidade que não é recompensada, pois existe o gasto também de alimentação. O próprio Caribe tem uma experiência fantástica de recursos humanos; eles têm um escritório, um departamento lá no Ministério de Trabalho que se chama Departamento de Mão de Obra Internacional. É um nome assim, muito bonito. Eles já têm 50 e tantos anos de experiência. Esses caras, durante esses 50 e tantos anos provêem de culturas agrícolas de colheitas, de momentos de semeadura ou momentos de auge produtivo na Flórida, no Canadá, entre outras coisas. Você não imagina como é que a peãozada caribenha, da Jamaica, por exemplo, faz fila para ser contratada. Eles vão por um trabalho de três ou quatro meses, na Flórida, ganham um bom salário, e voltam para o seu lugar. Isso já está incorporado na experiência deles. Eles vão, fazem e voltam. A experiência do Caribe, de 50 e tantos anos, é autofinanciada e valorizada socialmente em relação ao trabalhador agrícola. No entanto, com enfermeiros e médicos, eles não tem essa valorização. Por isso, perdem o pessoal.

CH – A OPAS tem a intenção de intervir nisso?

CV – Nós estamos trabalhando de cabeça nesse troço. Por exemplo, nós temos uma experiência aqui no Brasil; a migração profissional, mas não é tão grave por que a língua para nós é um bloqueio. Mas a OPAS está trabalhando com isso. Tem, inclusive, um movimento, agora, no Caribe, que está feito junto com a comunidade britânica. Eles têm um negócio, que se chama migração gerenciada. Trata-se de forma de não provocar déficit.

CH – Algo como uma regulamentação?

CV – Regulamentando, regulamentando o processo.

RM – Interessante.

CV - Certo? Então, voltando à questão inicial: Larga Escala, eu acho que é uma solução interessante, certo?

CH – Que em determinado contexto, específico.

CV – Num determinado contexto, considerando as coisas nossas. Eu acho que, isso é uma coisa que eu não sei, uma coisa que eu faço, inclusive, uma pergunta pra vocês. Porque a gente sempre exagerou, trabalhou muito com a questão de formação, de educação, mas, eu não sei como é que nós estamos mexendo com a questão de contrato, incentivo, remuneração, outras formas de.... que também tem, vão influir no resultado final desse pessoal, você está entendendo?

RM – Formas de atração e de manter também.

CV – De atração, retenção, de...

RM – De retenção.

CV – Sabe como é? Eu não sei, por exemplo, como é que está isso. Não sei, por exemplo, essa turma formada pelo Larga Escala, como é que está a questão de contratação, remuneração deles, deles e delas, entende?

RM – É. Não deve estar bem.

CV – Ou, pelo menos...

RM – Eu me lembro de um, não sei se foi o [José] Paranaguá, de alguém que mencionou na entrevista também alguma atuação nessa linha que foi frustrada, que não deu certo.

CV – É. Sabe, porque, porque a gente tem que olhar esse negócio. A gente tem que olhar esse negócio, que é uma coisa que a gente não deu muita, muita atenção ainda, sabe? A gente tem que olhar essa questão não só da formação, mas também da...

[interrupção]

CH – Eu queria, César, que você me falasse o seguinte: já pensando em retrospectiva, você poderia apontar qual o programa ou a iniciativa mais exemplar dessa cooperação técnica? O que foi mais relevante?

CV – Eu acho que na nossa experiência, sem dúvida alguma, foi a coisa com o pessoal auxiliar.

CH – O Larga Escala?

CV – Por último, o Larga Escala. Porque a coisa da integração docente-assistencial foi muito importante, não sei se foi porque a gente não tinha os instrumentos. A questão do Larga Escala, eu tenho impressão que foi importante porque era um nicho muito claro. Não estava sendo trabalhado. Claro, houve alguns desenvolvimentos na área educacional que favoreceram a questão do ensino profissionalizante e a questão do ensino técnico. Isso ajudou a aproximar mais o setor saúde desses novos desenvolvimentos que surgiram na área da educação. De alguma forma, facilitaram a atualização do setor nessa parte. Eu tenho impressão de que foi uma experiência boa e que o trabalho iniciado na área de ciência e tecnologia, foi um negócio importante também. Porque a forma como a questão de ciência e tecnologia é manejada, como o conhecimento é gerenciado e tratado no setor, necessitava e necessita de uma atenção especial e profissional. A gente deixava isso muito implícito na formação dos profissionais, na atuação da indústria e na atuação do comércio. Essas coisas precisam ser objeto de algum tipo de intervenção racional e técnica que possa melhorar o resultado disso. Eu tenho impressão de que houve uma contribuição na questão das políticas dos sistemas de saúde, apesar de ainda a gente precisar de avançar mais. Eu acho que está um pouco limitado ou um pouco deficiente, por causa dos pepinos do próprio sistema de saúde, dos problemas de concepção ou de distorção que o sistema tem.

CH – Como é que era a relação do grupo do PPREPS com as universidades?

CV – As universidades com as quais a gente tinha uma relação mais especial, de cooperação era com o Fundão [Universidade Federal do Rio de Janeiro], por causa do NUTES/CLATES [Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde/ Centro Latino-Americano de Tecnologia Educacional] e de outras coisas, com a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] e com a USP [Universidade de São Paulo]. Essa relação também existia com a [Universidade] Federal de Pernambuco e a [Universidade] Federal de Minas Gerais. A nossa relação com a ABRASCO [Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva] ajudou muito a facilitar a relação com as universidades, sobretudo, na área de Saúde Coletiva. A OPS tem um mecanismo, que você deve conhecer, que é a questão dos centros colaboradores.

CH – Sim.

CV – É um mecanismo que facilita, em geral, a relação. Isso é uma coisa que a gente usa e que, inclusive, a gente pode usar até melhor. Em alguns países, inclusive, mais do que no Brasil, os departamentos e as faculdades valorizam muito o título de ser um organismo cooperador, um centro colaborador. Isso é valorizado pelos departamentos. Aqui também temos um pouco dessa preocupação. Mas, é um negócio que pode ser uma ISO 9000 ou 10000, o que seja, para essa área. Essa questão da certificação.

CH – Essa cooperação não teve, pelo menos de forma consolidada, uma interface, posso dizer assim, de pesquisa? Isso é uma impressão que tenho, mas posso estar errado, creio que o tema dos recursos humanos não se consolidou como uma arena de investigação acadêmica, de produção de artigos ou de trabalhos. Ou eu estou enganado?

CV – Não saberia dizer. Mas, pode ser que sim, que a coisa não tenha gerado um desenvolvimento. Pode ser.

CH – E era também um objetivo do PPREPS?

CV – Não.

CH - Não era?

CV – Não era. Mas, não saberia dizer sobre a questão. Deixa eu fazer um paralelo, para ver se a gente pode elucidar alguma coisa. Há uns tempos atrás, quando a gente estava fazendo esse documento aqui, existia o Problema de Investigação em Serviço de Saúde, o PISS [Programa de Investigação de Serviços de Saúde]. A gente estava contente, ou sei lá, começamos a estudar uns negócios, nós achamos um trabalho de um cara do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], do Rio de Janeiro, do Fernando Resende, que foi o primeiro trabalho, que eu me lembro, que fazia alguma estimativa de gastos em saúde no país. Ele fazia a estimativa para os anos, final dos anos 40, e começo dos anos 50, era um troço assim. Então, não havia esse estudo. E a gente começou a juntar alguns dados, juntar algumas coisas. É muito difícil, você ter que somar o que gasta o governo, o que gasta a Previdência Social, o que gasta os planos de saúde. Mas, o mais importante é o que gastam as pessoas. O que gastam do bolso, o que gastam comprando seguro de saúde, o que gastam comprando ainda as coisas que não são prestadas ou que não são proporcionadas pelos planos de saúde. Ou coisas que a gente até começou a detectar mais recentemente, é a questão do empobrecimento por questões de saúde, de atenção à saúde. Você tem uma enfermidade, uma doença grave numa família, a pessoa deixa de trabalhar para cuidar do paciente, não sei o quê. Isso é um troço catastrófico. A gente viu que esse negócio era completamente isolado e desconhecido na literatura. Então, a gente fez uma pesquisa do como é que estava a investigação, economia de saúde na América Latina, para ver, mais ou menos, como estava o desenvolvimento. A gente viu que essa pesquisa era muito efêmera. Mas, a pesquisa em economia de saúde não foi efêmera só na América Latina, ela também foi nos Estados Unidos. Os chamados precursores da investigação da economia de saúde nos Estados Unidos, que nem é o Victor Fuks e outros caras, estavam vivos até pouco tempo atrás. Quer dizer, isso é um negócio recente. Não atraía a atenção do economista, ou do historiador, ou do cientista social. Por isso, nós também não tivemos a suficiente.

FIM DA FITA 3/LADO B

CV – Não, possivelmente, estão acontecendo estudos sobre recursos humanos em outras áreas, formação de recursos humanos, utilização, emprego, mercado de trabalho, remuneração, retenção, avaliação e reconhecimento. O que está acontecendo é que nós do campo da saúde não fizemos ainda. Inclusive, pela forma como a gente domina e acha que domina o setor. E não deixa entrar outro investigador. A gente protege o setor, mas, na realidade você está impedindo que o setor cresça. Então, possivelmente, isso que estou te contando, vi de perto. Muito mais recentemente sobre a economia de saúde ou sobre racismo em saúde, que eu vim a descobrir mais recentemente ainda, e estou vendo que não é. E foi engraçado porque eu estava conversando com uns colegas de ciências sociais, aqui da Fiocruz, da ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz], para organizar essa tal reunião. Os caras, a gente não, não conseguiu despertar o interesse. Foi interessante porque eles trouxeram uma menina daqui do Rio de Janeiro, um anjo, fazendo estudo sobre raça e saúde. Não sei se é do Iuperj [Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro].

CH – É aqui da Fiocruz?

CV – Não era da Fiocruz.

CH – Na Fiocruz tem a Simone [Monteiro].

CV – Quem? Que é Simone?

CH – Simone Monteiro, é do IOC [Instituto Oswaldo Cruz].

CV – Que está fazendo isso?

CH - Está fazendo isso.

CV – Possivelmente, sim, mas, há cinco anos atrás, como eu te contei, veio essa menina do Iuperj que falou uma beleza desse troço. Então, são coisas que a gente está descobrindo. Enquanto a gente não abre para um pessoal de recursos humanos estudar e ajudar a gente a analisar esse negócio. Então, eu concordo com você, de repente, não virou um tema de investigação. Não atraiu o suficiente a atenção dos especialistas nesse campo. E isso é mal, porque a gente deixa de se beneficiar. A gente está com uma gestão de recursos humanos um pouco improvisada, de repente.

CH – O PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde] recebia projetos oriundos das secretarias?

CV – É, as secretarias faziam propostas.

CH – E esses projetos, pelo menos, eu andei consultando alguns memorandos e tal, eles não eram, em geral, de boa qualidade.

CV – Possivelmente.

CH – Como era o processo de revisão dessas propostas, sugeriam acertos? Esses projetos eram mandados de volta? Como é que era esse processo de seleção de projeto? Na verdade, eram abertos editais? E as secretarias submetiam os temas?

CV – Edital, eu não me lembro de que a gente tivesse. Em geral se aproximava, falava, propunha e pedia para os caras apresentarem uma proposta e ajudava na elaboração. Possivelmente, inclusive, isso foi um negócio interessante, porque a gente fazia um processo que acontecia na Secretaria de Saúde de Minas Gerais. Onde eu tinha planejamento, um departamento de recursos humanos, e uma escola de Saúde Pública, a Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Nunca, nunca foi falado, fazia uns cursinhos, umas coisas, tinha o departamento, fazia os negócios e tal. Isso completa com a história de fazer a proposta do projeto e pedir aos caras. Você exigia que a turma sentasse, pensasse, tentasse identificar onde é que estavam os problemas.

CH – Diagnóstico.

CV - O tamanho do problema, pensar um pouco e estabelecer um plano de ação. Eu achei isso um troço, era uma coisa positiva, nós aprendemos para burro sobre esse negócio. E eu acho que os estados [federativos] aprenderam e começaram a desenvolver esse tipo de coisa. Isso foi positivo. Olhando retrospectivamente, a gente pode dizer que, “podia ter sido melhor, podia ter feito mais intensivamente”. Nós também estávamos aprendendo muito os negócios e tocando muita coisa. Possivelmente, hoje em dia, a gente teria feito de formas diferentes. Hoje, a gente teria outras modalidades, outros enfoques e outras coisas.

CH – Esse mesmo esquema continua na segunda fase do PPREPS?

CV – De uma certa forma sim, porque era baseado em grants que a gente distribuía para os projetos estaduais. O que não era necessariamente ruim. A história do grant em relação à idéia do projeto, é porque exige uma interação, abre um espaço de negociação, de conversa em que você pode alterar e corrigir. Não é um troço que vai ser dado automaticamente, perene, e não sei o quê. Você sabe que você tem algumas limitações. Então, você gera alguma coisa supostamente positiva.

RM – Em relação à avaliação do desenvolvimento desses projetos, vocês faziam?

CV – Fazíamos avaliações.

RM – Quais eram os métodos?

CV – A gente tinha um sistema de relatórios, que os caras faziam. Contratava consultores para fazer uma avaliação, uma coisa assim. Eu tenho impressão de que a gente precisava de que colegas fizessem alguma coisa mais de longo prazo. Eu não sei se foi feito. Mais consolidado. Por exemplo, esse tipo de coisa que vocês estão fazendo agora, eu tenho impressão de que algumas olhadas periódicas de dois em dois, ou de três em três anos, poderia ter ajudado a corrigir. Eu não sei, agora, por exemplo, seria uma pena isso ser só uma história do passado. A gente não usar essa informação que vocês tão gerando para as próximas intervenções, para os próximos e novos desafios contemplados devidamente ou que ficaram pendentes.

CH – A primeira fase, basicamente, foram projetos nordestinos?

CV – Tinha um peso muito grande o Nordeste.

CH – Na segunda fase, muda o perfil?

CV – Eu tenho impressão de que a gente começou a abrir mais um pouco. Mas, no começo, pegou muito a coisa no Nordeste. Tenho impressão de que no Brasil, esse negócio precisa ser mais olhado com atenção. Eu hoje em dia focalizaria mais as coisas. Levaria alguns critérios de focalização, não sei se eu entraria no Rio de Janeiro, em Santa Catarina, ou no Paraná. Eu ia concentrar mais pelo Nordeste. Mas, assim mesmo, do Nordeste, eu ia lá para santa Catarina. Gostaria de ver onde é que é o lugar da população mais vulnerável, de coisas assim. Porque esse é o tipo de coisa que eu acho que, às vezes, falta. Não nesse projeto só falta mais ação do setor público, em geral dos nossos países. Às vezes, a gente não tem uma idéia. Eu fui formado sempre na política universalista, mas a gente precisa de olhar um pouco com mais atenção, essa coisa de focalizar.

CH – César, como é que o GTC [Grupo Técnico Central] se desfaz? Quando isso ocorre?

CV – Eu tenho impressão que já foi no final dos 80 ou início dos anos 90. Não sei quando foi.

CH – Em 88 ou 89, formalmente é assinado o segundo acordo?

CV – Sim.

CH – Que é o Infraestrutura de Serviços de Saúde. Na verdade, como a gente falou, já estava acontecendo.

CV – Já estava acontecendo.

CH – Nessa fase, o GT é diluído? Quem é que vai levar esse acordo?

CV – Vocês já conversaram com o Eugênio [Vilaça Mendes]?

CH – Não.

CV – Tem que conversar com o Eugênio. Vocês conhecem o Eugênio? Já ouviu falar dele?

CH – Já ouvi. Ele é uma figura importante nessa discussão de planejamento em saúde.

CV – O Eugênio é uma pessoa chave nesse negócio. Eu tive o privilégio de ser substituído pelo Eugênio duas vezes na minha vida. Uma, quando eu saí de Minas Gerais e vim para Brasília, ele ficou no meu lugar na assessoria de planejamento lá na saúde. E, depois, quando eu saí de Belo Horizonte, e fui de Brasília para Washington, e ele assumiu a direção.

CH – É porque a gente não sabe quando acaba o GT efetivamente?

CV – Eu não sei, isso era um negócio que precisava ver com o Eugênio e Pará [José Paranaguá].

CH – A cooperação técnica continua?

CV – Continua, mas eu não sei. Tem que ver com o Eugênio. Eu tenho a impressão que foi quando a Izabel [dos Santos] se aposenta. Só que eu não sei quando ela se aposenta. O Eugênio teve um tempo e depois saiu.

CH – Final dos 80?

CV – O Roberto Nogueira sai do projeto e vai para o IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada].

CH – É, está no IPEA.

CV - Está no IPEA. Eu tenho a impressão que houve uma debandada por diferentes razões, uma mudança no quadro institucional do país, por causa de demanda, possivelmente.

CH – E quem fica coordenando a cooperação técnica é a representação da OPAS? Quem que está dando o norte dessa cooperação técnica?

CV – Eu tenho a impressão de que o [José] Paranaguá continua como o cara chave na área de recursos humanos.

CV – Quem está na área de serviços de saúde?

CH – Então, se descentralizou?

CV – Está o [José] Paranaguá. Teve uma fase, que é um negócio que precisava de ver esse troço, na qual o Mozart [de Abreu e Lima], [Waldyr] Arcoverde e o [João Batista] Rizzi foram para lá. Antes esse pessoal todo era do ministério.

RM – Para representação?

CV – Para representação. Não sei se foi aí, que não ficou mais caracterizado.

RM – Foi década de 90?

CV – Eu tenho impressão que foi na década de 90. Tenho impressão que foi na década de 90, porque eu me lembro que esse pessoal todo foi para lá. O Arcoverde, o Mozart e o Rizzi. Engraçado, aumentou muito o pessoal. Isso pode ter sido, inclusive, uma fase na cooperação da OPS, porque outras áreas de cooperação também fizeram isso, incorporaram gente nacional. Por exemplo, a área de saneamento, de ambiente, incorporou aquela menina, Jacinta, Jacira [?]. Na área tem muito técnico nacional trabalhando. Na área de transmissível foi aquele menino. De repente, incorporou muito, houve uma nacionalização do staff da Organização.

RM – Nessa mesma época?

CV – Eu tenho impressão que coincide. Eu sei porque a gente vinha aqui visitar e você encontrava muita gente brasileira em serviço lá. Muito nacional trabalhando lá. Não sei se com essa base, nesses mesmos termos de referência, ou enfoque de trabalho.

RM – A essa altura, César, o grupo original já estava disperso?

CV – Eu tenho impressão que sim, porque o Roberto [Nogueira] vai pro IPEA. E acho que o Eugênio volta para Minas Gerais. É uma fase em que eu não estou me lembrando muito o que aconteceu.

CH – Você já estava fora?

CV – Estava fora há muito tempo. E, de repente, não acompanhei ou não procurei fazer uma ligação dessas diferentes coisas. O Pará, seguramente, pelo fato de ter ficado esse tempo. Também teve o Mosh que ficou um tempão. Vocês conversaram com ele?

CH – Não.

CV – Moisés Goldbaum, o Mosh, ele ficou na área de ciência e tecnologia, substituiu o [Alberto] Pellegrini. Eu fui para Washington, o Pellegrini foi para Washington e o Roberto Nogueira também. Esse foi outro caso. O Roberto esteve lá durante uns tempos, ele e a Teresa Grande.

CH – Também foi para lá?

CV – Foi para lá. Eles estavam casados, foram para lá uns tempos. Depois, o Roberto voltou. Mas, esse negócio também, essa mudança para Washington, de repente, pode ter dado uma idéia para desfazer ou recompor o grupo. Mas na área de ciência e tecnologia ficou o Moisés. O Eugênio ficou me cobrindo. Eu tenho impressão que ficou Izabel [dos Santos], [José] Paranaguá, um tempo. Deve ter entrado gente. Mas, agora, não tenho idéia. Para mim, é um pouco obscuro quem que ficou.

CH – Alguma questão?

CH – Então, César, a gente agradece muito.

FIM DA FITA 4/LADO A