Rede observatório. Recursos Humanos em Saúde

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Entrevistas

Carlyle Guerra de Macedo

Entrevista Completa


OBSERVATÓRIO HISTÓRIA E SAÚDE
Rede de Observatório em Recursos Humanos em Saúde do Brasil - ObservaRH
Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz

Entrevista 1

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PROJETO: HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

Data: 1º de Março 2005

Depoente:
CM - Carlyle Guerra de Macedo

Entrevistadores:
CH – Carlos Henrique Assunção Paiva
FA – Fernando Pires Alves
GH – Gilberto Hochman
JC - Janete Lima de Castro

N° da Entrevista:

Código: 1 / 5

Transcrito por:
Annabella Blyth - agosto 2005

FITA 1/LADO A

GH – Hoje é dia 1º de março de 2005, entrevista com Dr. Carlyle Guerra de Macedo, realizada na sede da OPAS-Brasil. Estão presentes Fernando Pires Alves, Janete Castro e Carlos Henrique Paiva e eu, Gilberto Hochman. Dr. Carlyle, a gente tem um interesse inicial, talvez uma pergunta um pouco a partir da sua formação como médico, formatura como médico em 1961, e a gente olhando o seu currículo, a gente percebe que rapidamente o senhor se aproxima do campo do planejamento, planificação em saúde, e dos temas dos recursos humanos. Por exemplo, o senhor, formado em 61, em 63 vai fazer o curso de planificação no Chile. Então a gente queria, talvez para começar, abordar a trajetória para o campo dos recursos humanos, como se deu essa aproximação com essa temática? Uma vez formado em medicina, também se aproximar, logo recém-formado, do tema do planejamento em saúde, enfim, e mesmo dos recursos humanos?

CM – Só tem uma explicação bem funcional. Eu assim que terminei o curso de medicina, fui recrutado pela SUDENE, na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, que na época era uma instituição nova e inovadora, em todos os campos, particularmente na economia, era dirigida por Celso Furtado, um homem, economista também de planejamento, sobretudo. A função fundamental da SUDENE era planejamento. Mas eu fui enviado, assim que entrei na SUDENE, para organizar, como coordenador da área de saúde, um projeto de povoamento numa área específica do Maranhão. Então aí começa realmente minha relação profissional com a área de recursos humanos, porque o próprio nome do projeto, “Projeto de Povoamento”, a idéia era facilitar a transferência dos excessos de população do Nordeste árido, do semi-árido nordestino, para a pré-Amazônia, o Nordeste úmido que era o Maranhão, naquela época estava também dentro da SUDENE. Em termos de meta, eram muito ambiciosos. Eram algumas centenas de milhares de pessoas que deviam passar do Nordeste para o Maranhão. E nós, da saúde, fomos a ponta de lança para criar as condições sanitárias para isso. Aí tivemos de organizar equipe, recrutar gente. Saindo da universidade já com essas responsabilidades que estavam acima do que nós, não sabíamos nada, de nada dessas coisas. Era uma improvisação muito grande. Mas daí vem a história, e daí vem a necessidade de ir um pouco estudar, fazer cursos de planejamento, essa coisa toda, pra poder responder a esse desafio na própria SUDENE.

CH – Dr. Carlyle, o senhor usou a expressão “recrutado” para a SUDENE, o senhor se formou na Universidade de Pernambuco, como é que se deu exatamente esse recrutamento?

CM – Olha, eu tenho...

GH – O senhor tinha outras oportunidades ao lado...

CM – Tinha, tinha.

GH –...De clinicar etc., como é que se deu..?

CM – Eu estava quase, eu tinha sido aceito aqui no hospital de base de Brasília, que estava começando naquela época, a gente era dirigido por um conterrâneo piauiense nessa época, talvez por isso eu tinha sido aceito, para vir fazer residência e ficar aí. Na realidade naquela época a residência era pouco estruturada, mas era uma maneira de começar a trabalhar aqui em medicina interna. E tinha também a Fundação SESP [Serviço Especial de Saúde Pública] que estava me oferecendo a possibilidade de trabalhar, não sei se vocês se lembram, identificam a Fundação SESP. Além disso, tinha também o próprio estado, voltar para o estado e começar a trabalhar lá como médico. Eu tenho a impressão que o pessoal da SUDENE, no caso a pessoa que realmente me recrutou chamava-se Jader de Andrade, que era economista agrícola e que teria me encarregado desse projeto, particularmente, era diretor do departamento. Eu fui orador de minha turma de medicina e fiz um discurso talvez um pouco não usual, daqueles discursos de elogios, lindos dos professores, que era a prática, eu fiz um discurso um pouco mais com conteúdo social, um discurso crítico até onde minha capacidade naquela época me permitia. O fato é que esse discurso teve uma repercussão, até mereceu uma referência numa reportagem na Revista Cruzeiro, dos Diários Associados, naquela época era a principal revista do Brasil, ela fez uma reportagem com o nome de 'Sinal Vermelho no Nordeste', e entre as provas de que havia um sinal vermelho no Nordeste estava esse meu discurso, e o fato de que eu, posteriormente a esse discurso, ou logo depois de terminado, tenha sido recrutado pela SUDENE. A reportagem toda era até para atacar a SUDENE, e atacar a própria filosofia da SUDENE. Toda aquela coisa de desenvolvimento industrial do Nordeste que o Celso Furtado previa e que eles achavam que isso não competia, a proposta de indústria era pra São Paulo, e o Nordeste e o resto do Brasil tinham que ficar como satélites dessa máquina, dessa locomotiva que era São Paulo. Então toda a reportagem foi feita assim. Mas eu tenho a impressão que o discurso realmente foi o que chamou a atenção do pessoal da SUDENE, tem um cara aí que está saindo da faculdade, mas parece que pensa um pouquinho mais diferente, alguma coisa diferente do que simplesmente que receitar anti-ofídico.

JC - Dr. Carlyle, tem um curso, ainda nesse tema, um curso chamado 'Primeiro Curso de Planificação em Saúde', em 63, que o senhor participou, que foi realizado no Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social. A gente poderia dizer que esse curso teve uma importância fundamental na sua trajetória, que importância teve?

CM – Teve, porque eu estava muito vinculado a esses temas, esse foi meu primeiro, vamos dizer, meu primeiro treinamento numa área diferente da medicina, curso de medicina tradicional, e de acordo com o que eu pensava que era o exercício de minha profissão. Então foi o meu primeiro, primeiro treinamento formal. Minhas inquietações, não sei se respondeu muito a isso. O curso era um curso curto, mas tinha uma grade curricular muito interessante, sobretudo a parte de economia, de ciências sociais, que não chegava a ensinar, mas você despertava e orientava ao auto-estudo. Então daí foi que eu adquiri o gosto pela economia, pela sociologia, pela política, o gosto, digamos, de leitura e de capacitação nessas áreas.

FA – Dr. Carlyle, mas como foi exatamente o processo de identificação desse curso como uma oportunidade enfim...

CM – Não fui eu, não fui eu quem o fez, essa identificação. Eu estava na SUDENE, e o como é que chama? O Departamento de Recursos Humanos funcionava, esse projeto todo estava vinculado a essa época, eu já tinha voltado do Maranhão, eu passei no Maranhão um ano e meio, e já tinha voltado e estava em Recife. E o diretor do Departamento de Recursos Humanos era um senhor chamado Nailton Santos, um negro, bem negro, que dizia ter orgulho de ser de cor, naquela época precisava ter coragem para dizer isso, não é? E ele recebeu, não sei por que vias, informação sobre esse curso. Era um curso patrocinado pela OPS, pela CEPAL [Comissão Econômica para a América Latina] e pelo ILPES, Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social. Provavelmente pelo ILPES, porque a SUDENE tinha muita relação com a CEPAL e com o ILPES, e a SUDENE tinha o direito de indicar pessoas, e eu fui o indicado. Aliás, tinha o direito de indicar pessoas, me indicaram, acho que não tinha mais ninguém [risos], indicaram somente a mim para que eu fosse fazer esse curso em Santiago.

GH – Algum outro brasileiro foi?

CM – Sim, teve outro brasileiro, teve mais, comigo foram duas pessoas do SESP, já pessoas experientes, e mais uma pessoa de uma universidade que agora não me lembro qual foi, foram quatro brasileiros nesse curso.

CH - Dr. Carlyle, o senhor lembraria de alguma referência, alguma leitura que o senhor fez lá nesse curso, alguns autores, que foram importantes para o senhor naquela época?

GH – O que se vê, o que era importante que o senhor..?

CM – Olha de obras não, de autores eu me lembro, Celso Furtado era um, Ricardo Bielschowsky, outro foi o diretor-presidente da CEPAL na época que era um argentino, o nome dele agora não me ocorre, uma pessoa que teve uma importância muito grande na formação do chamado pensamento cepaliano, essas pessoas foram muito importantes, isso em literatura econômica. Na área de planejamento em saúde, na realidade não havia, porque planejamento estava começando e a metodologia que servia de base para o curso tinha sido recém-criada pela OPAS e pelo Centro de Estudos da Universidade Central da Venezuela – CENDES, daí ser chamado método CENDES-OPS. E os autores eram Mario Testa e Hernán Duran, e Ricardo [Rojas?]. Esses três eram os autores dessa metodologia e tinham um texto vinculado a isso. Sobretudo Testa, porque tinha mais ou menos as mesmas preocupações intelectuais que eu tinha, então foi muito importante.

JC – É Planejamento, desenvolvimento, planejamento em saúde e recursos humanos. Essa aproximação com a área de recursos humanos se deu a partir daí ou ela vem depois?

CM – Não. Como eu lhe disse, no começo mesmo, o simples fato de ter ido para esse projeto do Maranhão me aproximou dele. Eu tive de recrutar gente, selecionar gente, formar gente, formar equipe, então a preocupação com recursos humanos começou realmente aí. Depois eu vim pra cá, pra Recife, no Departamento de Recursos Humanos da SUDENE. E na realidade não tinha muita coisa vinculada a desenvolvimento de recursos humanos, porque era mais uma visão muito mais global, desenvolvimento de recursos humanos era criar condições de bem-estar pra população, e isso, então na realidade o departamento funcionava nessa dimensão. Mas depois eu, um pouco, me afastei, porque me dediquei muito mais, vim pra SUDENE, voltei pra Recife, e de Recife fui pro Piauí como Secretário de Saúde, pra criar a Secretaria, aí também tive responsabilidades com respeito aos recursos humanos, porque fui o criador, criar algo que não existia, a instituição não existia, criar uma Secretaria de Saúde no Estado pobre, então, a preocupação com recursos humanos está aí, o tempo todo metida, mas sempre como um instrumento, não com uma preocupação central, a preocupação central era dirigir a Secretaria, a saúde, essa coisa toda. E depois aí fui recrutado outra vez pela OPS para voltar ao Chile como instrutor já. Aliás, antes disso eu fiz o curso de saúde pública, mas é, quando fui recrutado pela OPS para ser instrutor nos cursos em planejamento, e aí a essa altura já estava como Instituto de Saúde, outra vez voltei a me preocupar mais diretamente com recursos humanos especificamente. Até que caí, por acaso, nesse programa aí...

JC- PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde].

CM – PPREPS, que essa talvez tenha sido o meu envolvimento mais direto e mais específico com recursos humanos em toda a minha vida.

CH – O senhor é recrutado já no início dos anos 70; de 70 a 75, o senhor ministra cursos no ILPES, mas antes entre o primeiro curso de planificação em saúde, em 63, e o seu ingresso como professor, em 70, o senhor realizou uma seqüência de cursos importantes....

CM – Não, eu tenho uma experiência muito grata com matéria de docência, eu nunca fui, nunca me senti como tendo a matéria-prima pra ser um bom docente. Mas tive uma experiência muito grata. Quando, logo que eu entrei na SUDENE, com essa coisa, havia um problema de recursos docentes nos cursos, da Faculdade da Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro, que funcionava ali na Lapa, ainda não tinha a sede bonita que tem hoje. E o diretor da ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz] naquela época, creio que era, como era o nome dele, [Sebastião] Duarte [de Barros Filho], uma coisa assim.

FA – Duarte, professor do tópico de Fundamentos Sociais da Saúde, creio que era algo assim, era uma pessoa extraordinária... Como é o nome agora? Também me passa o nome dele, que tem uma esposa que foi psiquiatra, ou psicanalista...

GH – Mario Magalhães.

CM – Mario Magalhães. Mas Mario tinha sido cassado e então não podia lecionar, e ficou esse vazio desse 'Fundamentos Sociais da Saúde' no Curso de Saúde Pública da ENSP. Eu tinha voltado do Chile do meu curso de planejamento, ainda nem tinha feito Saúde Pública. E por essas razões, e pelo fato de ter trabalhado ou não ter trabalhado, sei lá por que razões, eu não tinha realmente currículo para ser professor, fui convidado para dar curso nessa matéria, que eu me centrei muito, eu me lembro muito bem, até demasiado na parte econômica, de análise econômica, eu estava entusiasmado com economia...

GH - Mas o senhor chegou a ter contato com Mario Magalhães?

CM – Ah, não, eu conhecia o Mario!

GH – Ele foi, ele passou pra SUDENE também...

CM – Ele na realidade, eu não citei antes, mas na realidade ele foi um dos recrutadores que me recrutaram para a SUDENE. Porque ele não era funcionário da SUDENE, mas era muito amigo de Celso Furtado e de Chagas de Andrade. Um dos testes que eu passei para concretizar esse recrutamento foi ir ao Rio [de Janeiro], me pagaram a passagem para ir ao Rio para ser entrevistado pelo Mario Magalhães. E o Mario é quem ia dizer se eu tinha mesmo a matéria-prima para ser ou não ser. E conversamos muito, o negócio, e ele entusiasticamente recomendou, não, esse é o rapaz, esse menino tem muita coisa, muito bem. Apesar de que depois desse negócio que eu dei o curso no lugar dele, ele ficou com raiva de mim. Ele achou que eu era traidor, que eu não podia ter aceitado, não sei, nunca nem me passou pela cabeça que ele ia ficar chateado.

FA – Dr. Carlyle, eu gostaria de insistir um pouco nessa questão do planejamento em saúde, e da sua experiência no início dos anos 60 em Santiago do Chile, pensando da seguinte maneira: é o momento em que os temas de planejamento e desenvolvimento estão muito em voga, não é?

CM – É.

FA – É bastante recente a Conferência de Punta Del Este, a Carta de Punta Del Este, da mesma maneira que o Primeiro Plano Decenal de Saúde, se não me engano, o projeto de 61... de 62, não é isso? Logo depois da Carta. Que impacto tinham esses eventos numa escola que estava se dedicando ao planejamento em saúde e desenvolvimento? Como é que a Aliança para o Progresso, como é que isso era visto lá em Santiago?

CM – A coisa do planejamento em saúde na OPS, na OPAS como nós dizemos aqui, vem exatamente disso aí. Depois da reunião de Punta Del Este e da Aliança Para o Progresso, então houve uma pressão dos Estados Unidos, eles acreditavam naquela época em planejamento, depois esqueceram disso [risos], pra que todas as instituições interamericanas, e até as próprias Nações Unidas, comprassem essa proposta. E a OPAS comprou com todo o entusiasmo, daí foi que formaram esse grupo lá do Centro da Universidade de Venezuela, para criar uma metodologia de saúde que respondesse aos fundamentos da Aliança para o Progresso.

CH - Que vai desembocar na Conferência Internacional ....?

CM – Não, nessa época ainda não, esse grupo foi para formular a metodologia para dar os cursos para instrumentar os países em termos de recursos humanos na área de planejamento em saúde para que eles pudessem elaborar os planos de saúde que a Aliança para o Progresso ia apoiar. Mas isso veio direto, não é uma influência digamos, não foi, não é coisa assim, é uma causa, mais do que influência.

FA – Ainda sobre esse ponto, e aí se aproximando mais especificamente da questão de recursos humanos. Recursos humanos pode ser, às vezes, visto como uma coisa mais instrumental, pode ser visto como a idéia de se estar produzindo meios para melhoria geral, mas pode estar sendo pensado como elemento indispensável do planejamento para o desenvolvimento. Recursos humanos sempre foi um tema central no planejamento em saúde, nesse contexto da Aliança, quando é que ele se torna?

CM – Não. A metodologia CENDES-OPS, vocês reviram um pouco a metodologia CENDES-OPS? Ela é muito matemática. Ela pega uma quantidade de parâmetros e monta isso quase numa espécie de equação. Quer dizer que, dado aquilo ali, dá aquilo acolá. Na época, isso era o pensamento de maior influência na área da economia, e isso foi transferido para o planejamento em saúde. Nós acreditávamos, um economista americano [Walt Whitman] Rostow, tem um livro até interessante das etapas do crescimento econômico e, no qual, a coisa se resume praticamente numa fórmula muito simples do negócio, crescimento econômico que equivale a isso mais isso, dá aquilo, então se media, você faz tanto de inversão, dá um coeficiente de produtividade, e faz um negócio, dá um crescimento de tanto, era um negócio assim muito dessa coisa. Então, a metodologia muito pobre com relação a praticamente todos os outros fatores que não estavam incluídos nesses parâmetros. Não tinha muita coisa que se considerava recursos humanos, porque na hora de instrumentar, até a palavra dele era essa, instrumentar as ações de saúde, então os recursos humanos entravam, mas entravam como fator de produção, que era a teoria econômica, não tinha nenhum outro pensamento adicional, era a mão-de-obra dele, fator de produção. Tinha de preparar gente que soubesse manipular aquilo pra botar essa coisa pra frente. Não tinha nada sobre política, política praticamente era neutra, você tinha as razões de capital e tecnologia no negócio, então a política era neutra, nem se pensava que a política tivesse importância. Não é que não se pensasse, não se incluiu na metodologia. Essa era uma crítica que eu pessoalmente fazia. Depois nós tentamos, já no Centro de Planejamento do ILPES, tentamos corrigir essas deficiências, mas não era fácil, partindo de uma metodologia desse tipo, você botava umas coisas de um lado, mas não chegava a integrar um corpo realmente bom.

CH – Ainda sobre esse aspecto mais metodológico, eu consultei a documentação, quer dizer, alguma documentação, entre a elas a da “Conferência Internacional sobre Recursos Humanos para a Saúde e Educação Médica” que se realizou em 67, na Venezuela. E pelo menos, de acordo com a documentação, seria um fórum importante de discussão dessa temática metodológica...

CM – EM 67 já estava bem avançada a crítica sobre a insuficiência desse método.

CH – O senhor chegou a participar dessa Conferência?

CM – Não, não, eu não participei da Conferência.

CH – Mas ela teve algum tipo de impacto, repercussão...?

CM – Não, não muito, nem o Plano Decenal, que a Conferência foi um pouco na esteira do Plano Decenal de Saúde, teve muita importância. Pode até ser um erro de apreciação minha, mas o fato é que, eu participei durante essa época, ao mesmo tempo em que trabalhava, depois mais tarde, no Centro, eu visitava os países como consultor, e assessor na área de planejamento, área de organização de serviços, e praticamente durante essa época eu percorri quase todos os países da região. E o impacto foi muito, muito pouco sentido. É que não tinha também as correias de transmissão das coisas. Você naquela época praticamente não tinha escola de saúde publica, você tinha a Escola de Santiago, mas tudo escola tradicional, a ENSP, também era uma coisa, a de São Paulo, mas também ninguém estava muito preocupado com essas coisas, então não tinha um instrumental institucional, quer dizer, o meio institucional para fazer a transmissão dessas teses, era realmente o começo de uma discussão, antes que ela fizesse impacto sobre a realidade dos países, e a realidade inclusive dos cursos que se estavam ministrando.

CH – O senhor comentou há pouco que esta foi uma tarefa que o senhor encarou a partir dos anos 70, no curso do ILPES, rever essa metodologia. Isto de que forma, que tipo de leitura vai se...?

CM – Não, isso não ficou como uma tarefa especificada, no exercício da função de ensinar, é que a gente, em tendo a experiência do fazer, à luz da experiência do fazer, quando eu fui pro Centro eu já tinha passado cinco anos como Secretário de Saúde, então, a minha prática de saúde pública era a da existência da minha formação. Então, a gente começava a ver que havia insuficiências e vazios muito grandes. Havia problemas que não tinham respostas, que não entravam no esquema, não entravam na fórmula. Então a gente começou: “não, vamos ter de ensinar aqui um pouco de análise política, vamos ver o quê, como é, como é o processo”, daí se produziu até... vocês devem ter inclusive nos documentos de vocês, a formulação de um documentozinho que se chama 'A formulação de políticas em saúde'. Que é quase uma transposição.

CH – De 75.

CM – O ano eu não sei, mas é por aí, nessa, mais ou menos nessa época. E aquilo era um esforço de encher uma dessas falhas, a parte política estava fora, o método, disse: vamos ver um jeito, como é que a gente ensina. Mas se você ver mesmo o documento, até ainda gosto dele, do ponto de vista da razão formal, da razão formal, porque tenta a fazer uma coisa que seja todo certinho: feito isso, aquilo, dá, dá, mas é mais ou menos uma transposição da ideologia, ou do pensamento, da base do método CENDES-OPS para área da política, na realidade a gente faz um instrumento. É um documento que pretende disciplinar a política. Que é um erro crasso, de saída. Mas naquela época a gente pensava que talvez fosse possível, quem sabe, que a razão sempre teria, prioridade sobre todos os outros fatores que, que realmente alimentam a vida política de um povo. Não chegamos a essas coisas não. Mas, a preocupação nasceu do exercício. Não, não tínhamos uma missão, nós não sabíamos, do exercício da função docente a gente foi descobrindo que precisava corrigir, ou pelo menos tentar corrigir algumas coisas que não estavam, que não estavam certas. E depois, o tipo de planejamento, indicativo, que na época estava muito em voga, sob a estrela da Aliança para o Progresso, começou a dar mostras, já digo no desenvolvimento, começou a dar mostras de que não ia, não era. A sociedade é muito mais complexa do que a obedecer àquelas recomendações que saíam de determinadas formulas, por mais complexas que a gente chegasse. Me lembro, na época, nós tínhamos um matemático muito inteligente, filósofo também, Oscar Varsavsky, na Argentina, tinha um livro interessante, a gente trabalhava muito por métodos matemáticos para fazer previsão do que acontecia na sociedade. A idéia dele é de que a matemática podia dar respostas. E tem umas formulações interessantes. Para nós no Centro, inclusive, isso serviu para um experimento de criar um modelo matemático para esse tipo de coisa. Mas Varsavsky dizia, se dizia o seguinte: “não há modelo que possa reproduzir a complexidade da sociedade”. Porque se você faz um modelo tão complexo pra incluir pelo menos as principais variáveis que devem ser consideradas, ele se torna tão complexo que é imanejável. Estava antes dos super-computadores. Mas ainda com super-computadores, acredito que ainda é válido, é válido, é válido, né. [tosse] E se a gente simplifica, pra poder manejá-los, então a gente se afasta do que é a realidade. Então gente, o modelo é simplesmente um instrumento. É interessante ele dizer isso, eu me lembro muito bem, é simplesmente um instrumento para ajudar a racionar, mas não deve nunca ser entendido como substituto da coisa. Mas isso a gente descobriu já bem mais tarde, e aí era o jeito de acabar com o Centro, entrar noutra, né [risos].

JC – Dr. Carlyle, eu tenho uma pergunta. qual a relação do Instituto de Desenvolvimento Econômico com a OPS, como é que se dá essa parceria?

CM – Com o ILPES ?

JC – ILPES, correto!

CM – O ILPES com OPS. A ILPES com a OPS são inteiramente autônomas, tem um único parentesco entre eles, é que pertencem ao chamado Sistema Inter-Americano. O ILPES como associado à CEPAL, porque é um filho da CEPAL, é criação da CEPAL, e a OPS como uma criação paralela ou, vinculada à OEA. Então os dois pertencem à mesma família inter-americana. Mas, à parte disso, não tem nenhuma outra coisa. A aproximação dos dois esteve exatamente pela Aliança pelo Progresso. Criada a metodologia, digo: “e agora, o que é que a gente faz com essa metodologia?” Então a gente, lá de Washington, resolveu dizer: “não, faz-se um convênio”. O PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] financia, o órgão das Nações Unidas, financia, e o ILPES e a OPS se associam, e na sede do ILPES, o ILPES ofereceu sua sede, que aliás nessa época nem tinha sede própria, mas tudo bem, se associam para fazer os cursos. Foi onde surgiu essa associação.

JC – Parceria.

CM – Uma parceria com dinheiro do PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], e uma boa parte do dinheiro PNUD dado pela USAID [United States Agency for International Development].

JC – Dinheiro do PNUD?

CM – Do PNUD, mas que foi graças à USAID.

JC – Como é que se deu o seu ingresso na OPS, quando se tornou, digamos, servidor, entre aspas, se esse é o nome?

CM – Eu tenho três ingressos...

[GH] – Só isso?

FIM DA FITA 1/LADO A

FITA 1/LADO B

JC – A idéia é querer explorar um pouco desse seu ingresso na OPS e tentar esclarecer como era o contexto institucional da organização na época, nos três ingressos.

CM – Nos três ingressos? O primeiro ingresso foi para esse centro de planificação, planejamento em saúde em Santiago do Chile. Eu entrei aí pela minha participação no curso, no primeiro curso do qual eu participei. Por algumas razões, acharam que eu tinha sido, pelo menos, diferente do aluno comum e corrente. Eu questionava as coisas, dizia uns negócios, eu tinha mais leitura do que a maioria, que a maioria era médicos, médicos, poucas leituras fora da área da medicina, enquanto eu tinha já um background de leitura bastante mais amplo. E isso entusiasmou o pessoal quando se criou o Centro, o pessoal: “esse é que é um dos homens para vir para aqui”. Então, me chamaram. Na verdade, eu não me candidatei. Fui outra vez recrutado para isso. Eu estava saindo, estava terminando o meu período como Secretário em Saúde.

JC – No Piauí.

CM – No Piauí. Minha opção era ser político, eu fiz uma autocrítica pessoal, não é que não gostasse, eu gostava até, e ainda gosto da política, mas me fiz uma autocrítica muito grande, tinha um padrinho forte na época, que era o Petrônio Portela, éramos muito amigos, e o Petrônio estava mais ou menos destinado, na minha opinião, a ser presidente, se não tivesse morrido prematuramente, era provável que teria sido presidente, e bem para o regime, apesar de que não acreditava, posso adiantar isso a vocês, mas político se adapta. Mas eu não tinha a flexibilidade do Petrônio, flexibilidade ideológica, digamos assim. Nem a flexibilidade individual de aceitar os ônus de fazer política num estado como o Piauí. È uma política muito de patrocínio pessoal, de envolvimento pessoal, de interesses pessoais, de coisas nesse sentido. Então fiz um diagnóstico de que essa opção pra mim não era boa. Então aceitei o convite, essa foi a minha decisão de deixar a política de lado, ou pelo menos, como opção profissional. E aceitei e fui para o Chile. A segunda entrada, nessa época, a OPS era dirigida por um chileno muito brilhante, chamado Abraham Horwitz, um tipo realmente muito capaz, ele acreditava muito em planejamento. Ele foi o autor, idealizador do Plano Decenal, dessas coisas toda. É a OPAS estava num processo de crescimento, digamos assim. Até mil e novecentos e, não sei se interessa, fazer um pouquinho de história da OPAS.... A OPAS foi criada no começo do século, pelo menos é o que a gente diz, e de fato há uma resolução que cria, mas como instituição operante realmente, ela ficou, até 1942, 43, ela ficou praticamente como um adendo, um apêndice, do Departamento de Saúde dos Estados Unidos. Era o próprio cirurgião-geral que ao mesmo tempo era diretor dessa agência. E ele tinha um assessor, pra dizer a verdade. A partir dessa época, começo dos 40, é que a OPAS começa, com guerra inclusive, talvez até por isso, começa a ter um crescimento. E vem um diretor, assim que termina a guerra vem um diretor, [Fred] Soper, um americano ainda, mas já não era o diretor do Departamento de Saúde, ele tinha sido eleito como diretor da OPAS, primeiro diretor da OPAS realmente que não era o diretor do Departamento de Saúde. E vem o fim da guerra e a decisão de se criar a OMS [Organização Mundial da Saúde]. Antes havia tido a experiência da Liga das Nações, uma instituição de saúde em Paris, essa coisa toda. E até vem a criação da OMS. Cria-se a OMS, a Assembléia Geral das Nações Unidas decide criar a OMS, e o grupo que se reunia em Genebra, durante uns três meses, dois meses, antes da Assembléia Mundial que criou a OMS, pra definir o que deveria ser a OMS, começou a discutir o que fazer com as instituições internacionais de saúde já existentes. E a decisão era de que todas deveriam desaparecer, para serem incorporadas nessa nova instituição, a OMS, que ia substituir. E aí o pessoal soube, adiantado, discute, só um momentinho é, que espera, espera aí. Então o Soper resolveu que a OPAS não devia desaparecer antes que se tivesse certeza do é que viria a ser a OMS, que seria muito arriscado terminar com a OPAS antes de saber pra onde é que a OMS iria.

JC – Estamos em 50?

CM – Isso foi em 48, 47 a criação em 47, mas esse envolvimento todo em 48. Ele saiu de país em país pedindo apoio dos presidentes. Um dos apoios que recebeu foi do [Eurico Gaspar] Dutra. A OPAS praticamente não tinha orçamento, migalha, mas ele conseguiu aí que os presidentes, com os presidentes, que cada um se comprometesse a dar um tanto. Então quando ele vai pra primeira reunião, Assembléia Mundial da Saúde, da OMS, pra dizer quando é que a OPAS tem de desaparecer, ele chega com um orçamento que era cinco vezes maior do que o orçamento inicial da OMS. Então se cria um impasse. Então aí, num acordo que então resolve assinar entre a OMS e a OPS, diz lá que a OPS vai se integrar à OMS no devido tempo, devido tempo, de comum acordo entre as duas organizações. E isso nunca se deu. A OPAS continua, por esse acordo com a OMS, continua sendo a oficina regional, mas nunca desapareceu. E nessa época, a partir daí, ela começou a crescer. Com a chegada de Horwitz, que foi o primeiro diretor latino, que não era americano, substituiu o Soper, então ela cresceu ainda mais. E Horwitz estava num processo de aproveitar-se da Aliança para o Progresso, dessa coisa do desenvolvimento e do planejamento, para fazer, promover ainda mais o crescimento da OPAS. Então a OPAS na época era uma instituição média, como as instituições de saúde são, mas uma instituição que estava se fortalecendo, crescendo, e tinha-se um certo prestígio. Bom, minha segunda entrada na OPAS é uma entrada, quando terminaram com o Centro, que o planejamento já estava caindo de moda, e eu fiquei um período sem ter muito pra onde ir. Eu não queria ir pra Washington, que foi uma das ofertas que me fizeram, não tinha mais como voltar à minha decisão de não ser, teria, mas seria muito custoso voltar a fazer política no meu estado, não estava disposto também a pagar o preço disso, então vem essa coisa daqui, do PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde]. Isso era um acordo, o Brasil, naquele momento, estava na época do milagre [econômico], vocês recordam, milagre econômico, crescia 10, 11, 12%, então tinha dinheiro pra burro e o ministério estava cheio de dinheiro e não sabia como aplicar. E um dos projetos, plano de desenvolvimento que tinha, era desenvolvimento de recursos humanos para saúde. Então, se estabeleceu um acordo entre o Ministério da Educação, o Ministério da Previdência e o Ministério da Saúde, de criar um grupo pra elaborar uma proposta pra utilizar esse dinheiro que estava sobrando. E então, como é, quem é que entra nesse grupo? Eles ficaram, mas o [Sergio] Arouca era um dos candidatos, mas o Arouca não queria vir pra Brasília. Eu nunca nem perguntei a Arouca sobre isso, sobre esse negócio, mas ele era uma das pessoas mais, que todo mundo queria aqui pra isso. Mas ele não aceitou vir pra Brasília. Então me chamaram pra organizar esse grupo. Eu estava mais ou menos sobrando.

GH – Mas é o convite veio do Ministério da Saúde, não?

CM – Era o Ministério da Saúde que era o órgão líder entre os três, na realidade era o [José Carlos] Seixas, a pessoa que realmente conduzia essa coisa. Eu não conhecia o Seixas, nem ele me conhecia pessoalmente. Daí, então, me chamaram pra cá, eu vim, aí a OPAS me aceitou, aceitou que eu viesse como funcionário da OPAS, foi um dos casos raros da coisa. Eu vim com salário da OPAS, como funcionário internacional para trabalhar no meu país. O dinheiro era pago, o meu salário era pago pelo ministério, mas era através da OPAS, certo? Mas isso fez um interregno, porque na realidade era funcionário nacional. Do ponto de vista funcional, eu era nacional, com os privilégios do internacional, mas era nacional. Quando a gente termina esse período de PPREPS e de PREV-SAÚDE, que foi a outra aventura que a gente fez logo depois, outra vez eu estou, e aí é que vem a segunda entrada para a OPAS. Terminou, não estou mais. Me ofereceram para ir pra Costa Rica, eu não quis ir pra Costa Rica, não queria sair do Brasil, na realidade. E de repente aparece, entra o Waldyr Arcoverde como Ministro da Saúde, e ele me chama para ser Secretário Geral, na época era Secretário Geral. Mas o SNI [Serviço Nacional de Informação] me corta, não merecia confiança ideológica pra ser Secretário Geral do Ministério. Mas aí Waldyr vai à OMS, isso são coisas realmente muito particulares, mas talvez sirva pra vocês, vai à Assembléia Mundial da Saúde, e estava na época de eleger o substituto do diretor da OPAS, chamado nessa época Héctor [Acuña], aliás, o reverso do outro que era brilhante, esse era medíocre, um mexicano, e ele já estava há dois períodos, e ele não tinha condições políticas de se reeleger. E então estava na época de candidaturas. E aí eu digo a ele: “olha, um cara bom mesmo, brilhante, é um senhor chamado David Tejada”. David Tejada tinha tido muito contato conosco aqui no Brasil, teve muito como consultor aqui, era realmente brilhante. E Waldyr, que conhecia o David, foi para Genebra com a intenção de induzir o David a se candidatar. E volta com a idéia de que eu é que vou ser candidato. Quem foi falar com David, e David ficou com medo de ser candidato, porque podia perder. E disse: “não, não você tem lá um homem melhor pra isso, que é o Carlyle, por que você não contacta Carlyle?” E aí ele veio de olhão grande. Aí foi falar com o Golbery [do Couto e Silva], e aí o Golbery disse: “ah, pra isso ele é bom”. [risos] Pra ser Secretário Geral do Ministério não, mas pra isso [risos], é um candidato bom, o velho, o velho vale. E aí ainda segunda entrada foi como candidato a diretor numa eleição interessante, de que a gente conseguiu vencer os Estados Unidos, uma quantidade de fatores favoráveis, essa coisa toda, toda a desconfiança com a esquerda, essa coisa toda, mas vindo, promovido pelo Brasil na época era difícil conciliar, era um negócio meio triste. E o que eu chamo a terceira, é a minha saída, que aí eu tenho uma relação com a OPAS diferente, que é ser diretor emérito, sem responsabilidade, essa é que a boa [risos].

[Todos interrompem e falam] - Essa é a melhor!

CM – Essa é a melhor. Agora, nessa segunda vez, quando eu chego como diretor o que é que era a OPAS? A OPAS tinha perdido prestígio. Um diretor medíocre, um negócio, mas não é só por isso, tinha perdido prestígio também porque tinha passado da moda da cooperação multilateral. A moda e tudo isso comandado pelos Estados Unidos, era da cooperação bilateral. Então todas as agências, inclusive todo o sistema das Nações Unidas estavam passando por períodos críticos, de falta de recursos, de atraso em pagamento de cotas, e de essa coisa toda, né. Eu era uma instituição...

FA – Desculpe, eu insistir nesse ponto, mas a que se deve esse passar de moda da cooperação no âmbito desses organismo, organismos internacionais?

CM – De passar de moda o quê, você diz da cooperação?

Todos interrompem e falam – cooperação...

CM – Da multilateral pra bilateral? Não, a cooperação multilateral teve em moda enquanto durava aquele sentimento de culpa pelo crime de lesa-humanidade da Grande Guerra. É a criação das Nações Unidas, da coisa da paz, da cooperação entre os países, esse negócio todo. Que é a Aliança para o Progresso ou da ideologia própria de um império, do centro do império, traduzia de certa maneira. Quer dizer, não era uma coisa puramente norte-americana, eles aceitavam coisas multilaterais, essa coisa toda. Isso durou. E aí surgiu PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], surgiu UNICEF [Fundo das Nações Unidas para Infância], surgiu uma quantidade de instituições, que tinham esse caráter de canalizar recursos voluntários postos por esses países ricos para atender as necessidades dos países pobres. Mas depois os Estados Unidos começou a ter problemas, a Guerra Fria, não sei o quê, então manipulavam, nem sempre podiam manipular, tinham dificuldades de manipular decisões do Conselho de Segurança, na Assembléia nem se fala, e nas Assembléias de cada um dos órgãos pior ainda; na Assembléia de Saúde começou-se a aprovar coisas que não importavam, então eles vão perdendo o entusiasmo por isso, então começam a se afastar, começa a diminuir, e isso vai acarretando, leva os outros também. Esse é só um período. Agora estão no auge disso, não é?

CH – Dr. Carlyle, para retomar o papo, um aspecto ainda dos anos 70: quando a gente começa a falar em cooperação técnica OPAS-Brasil em recursos humanos, automaticamente a gente fala do PPREPS, este é de 75. Mas o Acordo, de fato, foi assinado em 73. O senhor poderia comentar um pouco este percurso? Porque demorou dois anos para o Acordo de 1973 se desdobrar em prática?

CM – Porque não tinha quem implementasse.

CH – Quais condições permitiram essa implementação?

CM – Não, simplesmente a possibilidade de fazer um núcleo, um grupo de gente que começou a trabalhar, a discutir, a visitar os estados, para poder elaborar o documento. Antes não tinha, eles criaram as coisas, tinha o dinheiro, mas não tinha quem fizesse o trabalho. Então ficava vazio. E não era por falta de dinheiro, nem sempre o problema é dinheiro. Na época tinha muito, mas não tinha um grupo, o ministério era muito débil, mais débil do que hoje, nem se compara, lembra que naquela época o ministério, além disso ainda tinha o INAMPS [Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social] que estava do outro lado, não tinha nada que ver, embora tivesse junto nisso, é cultura diferente, o MEC [Ministério da Educação e Cultura] também, era outra cultura, então não tinha realmente quem trabalhasse a coisa, era preciso formar esse grupinho pra implementar, conseguir avançar no passo, né. Isso levou dois anos.

JC – Esse grupo faz um diagnóstico da situação de recursos humanos na época, não é?

CM – Fez. Muito superficial porque os prazos eram muito curtos, mas fizemos.

JC – O senhor lembra qual o resultado desse diagnóstico, como é que se caracterizava essa situação na época?

CM – Olha, alguma coisa eu me lembro, eu queria ver esse documento de trabalho para ver os detalhes. Alguma coisa eu lembro, que são as coisas mais ou menos que já se sabia, mas que se pôs no papel. Em primeiro lugar sobre o problema da inadequação do que existia em matéria de disponibilidade de recursos humanos com as necessidades da população. Essa constatação em todas as categorias de recursos humanos. Não era só medicina, médico, médico – dentista, não, era em todas as categorias. Daí um dos componentes fundamentais do PPREPS, o total de formação de pessoal de nível médio, porque essa era a categoria que a gente via realmente uma desfuncionalidade completa. A maior parte do pessoal de enfermagem, por exemplo, era de atendente, sem nenhuma formação, sem nenhuma preparação, sem nenhuma coisa pra exercer tanto dentro dos hospitais como nos programas de saúde publica. E nós pensávamos na época que talvez fosse a área mais fácil de mudar. Mas havia a inadequação nas outras categorias profissionais também, medicina, enfermagem, todas as outras categorias da equipe de saúde. Depois as condições de emprego, eram absolutamente, não havia nenhum tipo de homogeneidade, era uma diversidade, digo no setor público, não estou falando nem do setor privado, no setor público era uma coisa que não tinha nada que ver uma coisa com a outra, dos municípios até o ministério. E dentro do próprio setor público federal era completamente diferente. Não havia nenhum tipo de coisa, então era outra coisa que eu me lembro bem. A formação médica, a formação ao nível universitário, médico, ou daquele diagnóstico de uma das causas, de por quê a desfuncionalidade entre a disponibilidade de recursos humanos e as necessidades da população. É que as universidades estavam afastadas muito da realidade social do país, pra formação médica. E uma das propostas que muito se insistiu na época era o problema da integração docente-assistencial, foi uma das bandeiras como conseqüência desse diagnóstico. E por aí anda as coisas.

GH –Agora queria que o senhor contasse a história de como recebeu convite pra formar o grupo, como é que foi a formação desse grupo, um pouco dessa gênese do grupo do PPREPS.

CM – Não foi muito difícil a formação do grupo, não, porque era a liberdade era relativamente restrita. Primeiro nós tínhamos que ter gente dos três ministérios. Eu representava a OPAS, digamos, então não havia uma pressão pra ter gente específica da OPAS, mas os ministérios tinham que ter gente. Então nós tínhamos que aceitar quem os ministérios indicassem. E normalmente indicam não as pessoas melhores, não, não quero fazer crítica, até que a gente conviveu bem com o pessoal que veio. Mas veio um de cada ministério, uma pessoa pra cada um. E tivemos que recrutar mais umas quatro, cinco pessoas, que não foi difícil, não, um dos acertos maiores, por exemplo, foi ter encontrado a Izabel Santos, um pilar desse grupo, fantástica.

GH – Mas as pessoas que foram encontradas, o senhor já tinha relação com elas?

CM – Não, eu estava já há bastante tempo fora, e além disso, antes tinha estado no Piauí, que era marginal a tudo [riso], tinha esse negócio, mas aqui tinha muita gente que conhecia as coisas, então não demoramos muito não, fomos até muito rápido, não me lembro quanto tempo não, foi questão de meses, dois ou três meses, nós tínhamos o grupo trabalhando.

FA – Dr. Carlyle uma das dúvidas que eu pelo menos tenho é um pouco, digamos assim, a construção original da idéia do PPREPS, que é um programa de uma envergadura considerável, implica na articulação de várias agências, tem uma pauta de objetivos também bastante expressivo, do ponto de vista tanto de estrutura, de secretarias, de cobertura, de treinamento de um volume considerável de pessoas, enfim, é um empreendimento importante. E refletindo sobre isso: que papel jogou a OPAS? Que papel jogou o Ministério da Saúde, nos seus quadros, na formulação disso? Isso é uma idéia brasileira? A oficina central de Washington participou do ponto vista intelectual disso, como é que foi essa, a construção original dessa idéia?

CM – Olha, como aliás quase todos os movimentos importantes no Brasil, esse é um movimento importante, o SUS [Sistema Único de Saúde], por exemplo. Nisso o Brasil tem uma originalidade com relação à maioria dos países da região e do mundo, que eu até onde eu conheço, e conheço alguma coisa. É que geralmente nós criamos coisas aqui. O SUS é uma reforma de saúde tipicamente brasileira. Não tem nenhum similar, não tem nenhum contrabando ideológico, pelo menos significativo, embutido nele, não tem dedo do Banco Mundial, nem da OPAS, nem de ninguém, é uma criação daqui. Esse, respeitadas as dimensões da coisa, de que o SUS vem de um movimento sanitário, é uma coisa muito mais ampla, conhecida com a redemocratização, é mais ou menos também uma obra local. Lógico, houve participação de gente da oficina central, o José Roberto [Ferreira], por exemplo, participou da discussão muitas vezes, ele olhava, dava pitaco, e o Banco Mundial não teve nada que ver com isso, o Banco Interamericano, a OMS em Genebra também nada, nem direta nem indiretamente. Genebra pouco, Washington sim, sobretudo através de José Roberto [Ferreira] e o grupo dele. Mas José Roberto em particular. E aqui dentro houve participação de muita gente. Além do grupo especifico, esse é um grupo, esse grupo aí teve um cuidado muito grande de ouvir. Secretarias de Saúde, ministério, se ouviu muito, escolas, se ouviu muito. E dessa capacidade de ouvir saiu essa proposta, que é um pouco como você disse, utópica, porque não era, nós sabíamos, no grupo mesmo, sabíamos que não ia ser realizado. Mas era uma coisa de lançar, mesmo já esperávamos de certa maneira que as condições políticas do Brasil iam mudar, e que uma formulação dessa magnitude teria de ajustar-se aos novos tempos que estavam por vir. Essa do PPREPS e o PREV-SAÚDE são contemporâneos do Andrômeda. Vocês já ouviram esse nome? Andrômeda era um movimento, vamos dizer, precursor do movimento sanitário. Precursor no sentido de que ele previa essas coisas, defendia essas teses que o movimento sanitário, depois pôde levantar, as bandeiras que pôde levantar, mas não tinha liberdade de atuar publicamente. Então nós discutíamos isso de noite, escondidos, nas casas dos amigos, publicávamos, e criamos o chamado projeto Andrômeda. Um pouco secretariado pelo pessoal do PPREPS. Aí nós tínhamos um bocado de gente: Hésio [Cordeiro], [Sergio] Arouca, muita gente, Nelsão [Nelson Rodrigues dos Santos], que estavam envolvidos nessa coisa da Andrômeda, nessa conspiração, que felizmente não deu nenhuma.... ninguém foi pra cadeia, nem foi negócio, não ameaçava ninguém.

FA – E ele era no Rio de Janeiro, nacional, como é que ele era?

CM – Era nacional, tinha gente de todos os estados, que a gente não tinha ...

JC – Realizar.

CM - ....como fazer a coisa, mas tinha de muitas, de muitas partes, nós tínhamos muita gente, muitas dezenas de pessoas trabalhando no Andrômeda, conspirando, pensando, fazendo a coisa, e quando tinha uma oportunidade, a estratégia era essa: conspirar, discutir, e quando tiver uma oportunidade, essa idéia que foi discutida aqui na sombra, “pom”, empurre.

GH – O PPREPS é uma dessas idéias?

CM – O PPREPS é um misto, ele foi beneficiado por essas idéias, mas ele surgiu às claras, quer dizer, não era...

JC – E, já bem lá na frente o SUS era uma...

CM – Foi precursor.

JC – Precursor.

CM – O Andrômeda foi precursor na sombra do que veio a ser o movimento sanitário, e que depois deu origem ao SUS. Eu quero crer que esse grupo de gente que participou das discussões do Andrômeda, que não eram muito freqüentes, mas que tocavam o negócio, teve muita influência nisso. Eu, não, por exemplo, terminei indo embora, mas eles ficaram aqui e continuaram com isso. Foi do Andrômeda que nós criamos, por exemplo, a ABRASCO [Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva], a idéia surgiu, primeiro, era uma maneira de fazer uma coisa visível do que estava sendo discutido na sombra. Criemos uma associação nacional que possa servir de coisa desse negócio, surgiu um pouco por aí.

FA - E a dinâmica de funcionamento era ir na casa das pessoas....?

CM – Era, por telefone, não era gente importante, tratar com o SNI, exceto talvez eu, o Arouca um pouquinho, a maior parte do pessoal não era tão assim perigoso que o SNI estava controlando o telefone. A gente também não pensava, era um pouco irresponsável. Nós combinávamos por telefone reuniões, e aproveitávamos viagem de um e de outro, pra reunirmos, sempre fora dos horários de trabalho, não fazíamos reuniões, não podíamos.

FA – E por que o nome?

CM – Andrômeda.... [risos]

FIM DA FITA 1/LADO B

Entrevista 2

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PROJETO:
HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

Data:
1º de Março 2005

Depoente:
CM - Carlyle Guerra de Macedo

Entrevistadores:
CH – Carlos Henrique Assunção Paiva
FA – Fernando Pires Alves
GH – Gilberto Hochman
JC - Janete Lima de Castro

N° da Entrevista:

Código: 2 / 5

Transcrito por:
Annabella Blyth - agosto 2005

FITA 2/LADO A

CM – [..] uma lenda que deu origem a um filme e que foi um enigma de Andrômeda, então daí a gente tomou o nome. Nós estávamos tentando decifrar o enigma que era o futuro da saúde, um pouco mais da saúde, mas o futuro da saúde no desenvolvimento político do país.

GH – Dr. Carlyle, como é que foi o processo de feitura desse documento, aqui [projeto do PPREPS]?

CM – Era isso que eu dizia, um grupo pequeno que trabalhava full-time, nessa coisa...

GH – Estou falando do PPREPS?

CM – No PPREPS eu trabalhava full-time nisso e consultas pessoais. Fizemos algumas poucas reuniões coletivas. Não havia orçamento para esse tipo de coisa, mas aproveitávamos muito outras reuniões para ir adiante. E prazos curtos, que tinha que produzir esse documento dentro do prazo relativamente curto. Eu não me lembro quanto era, mas era questão de meses.

JC – Corrija-me se eu estou errada. Há algum tempo eu li que um desdobramento do PPREPS... por exemplo, a criação dos Núcleos de Recursos Humanos em secretarias estaduais, que se sentiu a necessidade de organizar uma estrutura que trabalhasse com a área de recursos humanos com várias indicações que o PPREPS inclusive terminou assumindo. E tinha algumas áreas que foram colocadas como prioritárias, uma delas a questão da administração que a gente chama de gestão do trabalho, uma unidade de administração de recursos humanos, a própria área de capacitação e a área de planejamento de recursos humanos, inserido nas instituições de saúde, especialmente nas estaduais nesse período. Isso é verdade, como é que se deu?

CM – É verdade. Eu acho que talvez o êxito, outros êxitos, mas um dos sucessos do PPREPS foi a criação desses núcleos, quer dizer, o sucesso institucional. Porque independentemente do trabalho que eles realizaram, o simples fato de criar um núcleo já colocava o assunto sobre a mesa. Então isso, pra mim, foi muito importante, foi muito importante. Então eu acho que, que isso é importante. Na área de planejamento nós fizemos muito pouco, na minha opinião, muito pouco progresso de planejamento de recursos humanos. Na área de gestão de recursos humanos ou gestão do trabalho, ou administração de recursos humanos, como eles chamavam, também a gente teve muito pouco progresso. Mas o fato de ter colocado sobre a mesa essa questão foi importante. Agora vocês têm de ver isso aí também no momento seguinte que é o PREV-SAÚDE. É às vezes, uma conclusão: se não houver modificação no sistema de saúde, a área de recursos humanos não vai adiante. Essa foi uma das conclusões. Por mais que a gente tenha trabalhado, não vai adiante. Então vem, como é que a gente pode avançar? Tem de unir Ministério da Saúde e Previdência. Mas não se podia pensar na fusão da área de saúde com o ministério. Pensar podia, mas não era viável. O Ministério da Saúde era politicamente, na época era Waldyr Arcoverde já; e do outro lado estava Jair Soares, que era politicamente muito mais forte. Então a transferência do INAMPS já se discutia, mas não era uma coisa que estava por vir, assim recentemente. Então, eu disse: -Como é que se faz? Então, vamos fazer uma associação, convencer a Jair de que ele não vai perder poder, de que o INAMPS [risos] não é nenhum negócio... Então lutamos pra propor um processo de transformação do sistema de saúde para poder a área de recursos humanos evoluir. Mas a partir das coisas básicas, tinha que ter uma rede básica que precisa ser construída. Todo mundo está de acordo com isso? Está. Montou-se uma rede básica. Já tínhamos Alma Ata, já tínhamos todo o negócio, então vamos ver se a gente, por aí.... E os acordos formais foram conseguidos basicamente. Mas acho que isso foi um dos sucessos, um dos sucessos do PPREPS. Porque isso decorre da existência do PPREPS, anteriormente o PREV-SAÚDE. Que não fez lá grande coisa, aí sim, teve muitas reuniões, o método de trabalho era já de reuniões, para o estado. Focou, inclusive o ponto de vista de recursos humanos. Talvez o PREV-SAÚDE tenha formado mais gente do que o próprio PPREPS, na parte de formação. O PREV-SAÚDE, porque com o problema da rede básica, de fazer aquele negócio todinho [..], Então vamos dizer curso; treinar para isso, treinar para aquilo, dentro da mesma linha, antes da formalização das coisas, que era o plano de saúde de Izabel [dos Santos]. Mas durante o PREV-SAÚDE, aquela movimentação toda, teve muita, muita parte de formação. Inclusive médica.

JC – Eu imaginava que o PPREPS era um braço do PREV-SAÚDE, que ele tinha agido nessa formação, então o sr. fez uma separação...?

CM – Não. Fiz uma separação porque quando o PREV-SAÚDE estava andando, não se falava de PPREPS.

JC – Já tava morrendo...?

CM – Já estava morrendo. Quer dizer, como projeto mesmo já não tinha mais o vigor inicial. O dinheiro tinha desaparecido, a fase de euforia do milagre econômico estava passando. Já tinha passado, na realidade no governo João Batista Figueiredo, o milagre tinha se esfumado, não é?

JC – Eu queria que o senhor falasse um pouquinho desse final, está certo?

CH - Na verdade, gostaria que o senhor comentasse o seguinte: qual era a relação do PPREPS ou do GTC com as Secretarias estaduais de saúde? Do seu ponto de vista, em quais secretarias essa relação foi mais ou menos tensa, e por que motivos?

CM – Aí a minha memória está um negócio. Eu só guardo as coisas boas e muito pouco as coisas que não são tão boas.

CH – Então, a gente fala sobre as coisas boas.

GH - Então onde deu certo? [risos]

CM - Um dos fundamentos do PPREPS era trabalhar com as Secretarias de Saúde, quer dizer, a descentralização que nós prevíamos naquele momento. Não chegávamos até o município. Não que não pensávamos, sonhávamos, mas estava fora da realidade pensar numa descentralização, a não ser para municípios muito grandes. Então a coisa era trabalhar com as Secretarias de Saúde. A idéia de que as Secretarias de Saúde depois multiplicassem para o município. A filosofia do PPREPS era trabalhar com as Secretarias de Saúde. E a resposta, eu não diria dificuldades sempre, sempre existe, em qualquer coisa, mas eu não me lembro de nenhuma Secretaria com a qual tenhamos tido dificuldades maiores do que a situação normalmente justificaria. Também não me lembro em seguida que tenha sido extraordinariamente exitosa. Tinha alguma Secretaria que por razões de afinidade a gente tinha mais, por exemplo, Bahia, que depois se tornou o novo PREV-SAÚDE também com uma relação especial, uma coisa de afinidade pessoal e de gente, pelo menos que minha memória me conta.

JC – Dr. Carlyle, eu queria explorar um pouco sobre o finzinho do PPREPS. Ele estava acabando o vigor. Acho que tem muita moda no Brasil?

CM – Tem, mas não é só no Brasil.

JC – A história das modas, quer dizer, como é que estava acabando o vigor, por que estava acabando o vigor? As instituições deixaram de financiar, não era mais necessário alguma instituição estar se responsabilizando pelo que o grupo, na época, estava fazendo?

CM – Não, que eu me lembre, esse último seria o normal, o êxito, o sucesso que nós tivemos na Secretaria de Saúde de criar os núcleos de recursos humanos. Nós não tivemos no nível central, não tivemos a mesma coisa no nível central.

JC - No Ministério.

CM – No Ministério. O financiamento do PPREPS era via Ministério, os chamados projetos de desenvolvimento que a FINEP [Financiadora de Estudos e Projetos] do Reis Velloso tinha promovido anteriormente, tinha um dinheiro lá que inclusive não acabava, quer dizer, de um ano para outro. Não sei como é que eles fizeram, um negócio até que eu preciso averiguar, o dinheiro passava de um ano para outro com uma facilidade extraordinária, bom, eram outros tempos, também. De fato, essa coisa toda. Mas estava passando o período de euforia, de crescimento, do milagre, e o dinheiro estava ficando escasso. Não foi renovado esse financiamento do projeto. Então a quantidade de outras coisas que começam a pressionar foi sendo posta de lado. Lembre-se também que por essa época o movimento social de redemocratização adquiriu muita força. E, então, a discussão no nível do país está noutro nível também. Já se abrandaram muito as pressões policiais de vigilância. Já tem muitas outras preocupações. Então, ainda, por isso é que tem, aquele substituto do PREV-SAÚDE, para ver se com os recursos existentes, da Previdência Social e do Ministério da Saúde, na área de serviços, eu poderia avançar... Só que eu não podia continuar avançando no processo de transformação no fundo que é do PPREPS.

GH – Agora, tem esse processo de um fim do milagre, mudança também do ponto de vista político. O senhor, como representante, no caso da OPAS no projeto, percebe mudança na organização ao longo de sua trajetória no período entre 75 e 82?

CM – Mas, veja bem, eu acho que não. A OPAS praticamente, tinha um diretor débil. Nós tínhamos lá o José Roberto [Ferreira], que mudou, pois ele era um tipo muito autêntico, muito legítimo. Mas como eu disse a vocês, a OPAS não teve uma influência muito grande. Essa era uma criação mais local. Então também não estava comprometida com algo que não lhes pertencia. Nem a OPAS podia substituir, em termos de origem de fundos, porque não tem a diminuição dos fundos nacionais, do financiamento nacional. Não houve mudança da parte da OPAS. O problema é mesmo do momento, que é diferente. Vão surgindo outras coisas, outras preocupações, e aquela idéia grande começa não se realizar, porque inclusive uma das razões de não se realizar foi o fato de que era grande demais para a realidade do país naquele momento. Então o entusiasmo vai diminuindo também por isso.

GH – Ainda que o senhor tenha insistido um pouco no caráter [..] de invenção local, e me parece que isso tem razão pelo que a gente está entendendo, enfim, de uma coisa autenticamente brasileira, essa experiência de cooperação nesses anos, o acordo etc, em nenhum momento foi tentado coisa semelhante em outro país latino-americano. Essa experiência naquele momento foi observada...?

CM – Não.

GH – Não há nenhuma repercussão para fora do país? No ambiente regional?

CM – Eu estou tentando ver na minha memória, inclusive depois que eu sai do PPREPS e do PREV-SAÚDE diretamente para ser diretor da Organização [Pan-americana da Saúde], se lá eu encontrei alguma coisa parecida com isso. E não me lembro, acho que não. Acho que essa foi não só uma idéia local, mas que ficou aqui. Não é que não tenha havido outras idéias, mas similares ao PPREPS, não. Já o PREV-SAÙDE, como era uma idéia, perdão para que eu não misture, você ficou mais interessada na parte como...

JC – Não.

CM – Mas como o PREV-SAÚDE era um projeto, uma idéia, de promoção da atenção básica, isso sim, teve muitas coisas que podem ser parecidas, em muitos outros países, que tiveram substrato comum [..]. Mas o PPREPS mesmo, tal como era, eu não consigo, nem mesmo como diretor da OPS levar essa experiência para outro país.

FA – Por algum motivo particular?

CM – Não, simplesmente porque talvez não tenha encontrado oportunidade para fazê-lo.

JC – Contextos...

CM – Nacionais apropriados para fazê-lo.

FA – Nessa linha, pensando um pouco nos seus primeiros anos como diretor da OPAS, nos anos 60, pelo menos, a OPS tem um papel importante na constituição de associações dedicadas à discussão em torno da formação do médico. Associações nacionais de escolas de medicina, federações latino-americanas, enfim, a gente percebe uma atuação da organização no sentido de, pelo menos, estimular que essas organizações se conformem pelo continente. No momento em que essa discussão do PPREPS e a ação do PPREPS estão andando em torno de recursos humanos, ou nos seus anos de direção da OPAS, muda esse papel da organização do ponto de vista do movimento associativo dos profissionais e das escolas, das profissões de saúde?

CM – Quando eu chego na OPS essa expansão das associações do ensino médico já, mais ou menos, chegou ao seu clímax e já não era uma preocupação assim tão marcante da Organização Mundial da Saúde ou da Organização Pan-Americana da Saúde. Eu também não levei uma preocupação particular nesse aspecto. Mas não é mérito meu ou demérito de havê-lo, não interrompido, mas pelo menos não promovido, não estimulado a parte médica das associações de ensino médico. E na minha interpretação, inclusive porque a expansão da atenção médica tinha chegado mais ou menos a um certo platô. Quer dizer, na época, década de 70, 60, 70, a expansão da atenção médica foi brutal no Brasil e no resto dos países da América Central. O que explica muito esse interesse por expandir associações de instituições de ensino, essa coisa toda. A partir desse momento, quando chego na OPS, a preocupação já é outra. É mais de organizar os sistemas para que essa atenção seja alcançada, que já vinha de antes, do chamado Expansão de Cobertura. Mas adquire mais força por aí, mais racionalidade etc. Então nossa preocupação em uma linha diferente. Continuamos interessados em ensino médico, essa coisa toda, mas já não é a coisa tão somente. Passamos a ter muito mais interesse na expansão do ensino da saúde pública do que propriamente no ensino da medicina, e não saúde pública só no sentido convencional das coisas, mas saúde pública no sentido muito mais amplo, como incorporar a economia, como incorporar a sociologia dentro do pessoal de saúde, na administração dos serviços de saúde, essa coisa toda. Com o ambiente, como é que se trabalha, como é que faz esse tipo de coisa. Então a nossa preocupação passa, já não é tanto a outra, a outra ficou. Eu não me lembro, durante os doze anos que fui diretor da organização, que tenhamos patrocinado a criação de nenhuma entidade de ensino médico, associação de ensino médico.

FA – E na área de saúde coletiva?

CM – Em saúde coletiva, sim. Além do fortalecimento da AESP [Associação dos Educadores em Saúde Pública], trabalhar com eles, essa coisa toda, em uma expansão grande de escolas, de centros de formação, que não é mérito só da OPS, pois ela também ajudou. Multiplicaram-se essas instituições, nesse período de 80, 90, aumenta muito, centros de saúde pública, no sentido amplo, saúde coletiva.

FA – Essa orientação se deu no sentido de fortalecimento do ensino de saúde pública, era um dos eixos centrais do desenvolvimento da cooperação técnica?

CM – Eu não diria que seja eixo central. Eu acho que sempre a parte de recursos humanos, com todo o discurso que a gente tenha dado, os recursos humanos sempre foi mais visto como instrumento do que como objetivo final. Então a preocupação fundamental era transformar sistemas de serviços de atenção, de serviços de saúde.

FA – Mas era pelo menos uma estratégia?

CM – Era uma estratégia fundamental para outra. Eu não posso transformar o sistema se eu continuo a trabalhar com o mesmo tipo de pessoal, com o mesmo tipo de formação. Então eu tenho que pensar os recursos humanos visto como um estudo, uma coisa central do processo de transformação, isso sim, que é desejado.

CH – A minha questão é a seguinte: o senhor falou sobre o Andrômeda e sobre a criação da ABRASCO, na verdade, como é que o senhor se aproxima da área, não sei nem se a palavra é apropriada; se aproximar da área de saúde coletiva, que na verdade ela está sendo criada, parece que inclusive, a palavra, a terminologia saúde coletiva, é genuinamente nacional, pois não tem saúde coletiva em outro lugar.

CM – Foi criada aqui numa reunião da ABRASCO, não é isso, doutor?

CH – Como é que se dá a construção desse campo e a sua inserção nele?

CM – A ABRASCO surgiu de uma reunião que não foi a reunião para criar a ABRASCO, foi uma reunião para discutir... A gente promoveu essa reunião, já pensando na criação dessa coisa que a gente pensava que existia. Existia uma associação de saúde pública, como era o nome mesmo do...? Mas era aquela coisa burocrática, de gente muito boa, mas era aquele rame-rame, aquele negócio. A gente pensava uma outra coisa. Então quando nos reunimos aqui para essa reunião de formação em saúde pública, coisa e tal etc, o ponto central era a criação dessa nova, e que nome vai ter? Higiene não podia ser, já tínhamos passado a época da parte da higiene. Saúde pública estava um pouco desgastado, porque inclusive a acepção era um pouco limitada. Se bem que nós estávamos nos prelúdios do movimento sanitário, que é muito mais amplo, apesar de ser sanitário, na realidade é um movimento social amplo, político. Então nós estávamos já sentindo esses termômetros. Então a palavra veio, o negócio, eu não sei mesmo quem foi que propôs concretamente, mas surgiu nessa reunião, saúde coletiva parece ser, o que nós queremos é a saúde do povo. Até antecipamos um pouco o conceito de saúde pública moderno, atual, que é saúde da população, no sentido amplo. Então a palavra que veio é essa aí, coletiva, saúde da coletividade. Então surgiu daí essa, essa idéia.

GH – Agora, eu tinha interesse em saber sobre o PPREPS. Não a sua avaliação hoje, mas no momento do final do PPREPS, na sua saída daí pra Washington. Qual era a avaliação que o senhor tinha naquele momento sobre o trabalho realizado? Enfim, do resultado do acordo de cooperação enquanto o senhor coordenou? Quer dizer, onde é que algumas coisas avançaram? Qual era aquela sensação naquele momento?

CM – Vamos botar dois momentos. No primeiro momento, nós estávamos envolvidos com a coisa. Eu acho que já tínhamos consciência de que não íamos chegar a realizar. Acho que não tínhamos consciência de que o que estávamos propondo era muito mais do que era possível realizar, mas estávamos muito entusiasmados. Achávamos de que a idéia iria ser sementes que iam germinar. Uma das partes que nós pensávamos que realmente ia ter muito progresso, dos que eu me lembre, entre outros, era formação de ensino médio, sobretudo o pessoal de enfermagem, os cursos. Essa parte liderada pela Izabel [dos Santos]. Nós tínhamos esperança de que isso realmente era uma das áreas que ia adquirir quase auto-sustentação ao longo do tempo, e alimentávamos de certa maneira a esperança da dúvida de que o processo de integração docente-assistêncial, como eixo na definição dos currículos e das escolas de medicina, ia pegar. Convencidos de que não estávamos sozinho, tanto assim que a [Fundação] Kellog depois tomou isso e continuou trabalhando aí com negócio o tempo todo. Agora, quando nós já estávamos no final, quando já me afastava, já depois do PREV-SAÚDE, essa coisa toda, tinha um gostinho amargo de que tinha ficado muito longe e que nunca ia ocorrer, que a universidade talvez fosse a instituição mais conservadora da sociedade. Ela apresentava-se muito liberal para fora. Mas para dentro, extraordinariamente conservadora. E talvez seja bom que seja assim. Hoje eu sou mais tolerante com minhas atividades nas universidades. Acho inclusive de que esse conservadorismo extremo das universidades, das instituições docentes em geral, é bom, porque ajuda a preservar uma memória, e evita saltos, que podem ser destrutivos, num mundo em que já não há revoluções. Talvez num mundo em que as revoluções eram possíveis, isso foi ruim. Mas no mundo de hoje em que as revoluções são simplesmente utopia, o conservadorismo talvez seja bom. Então, naquela época nós sabíamos que tínhamos fracassado em termos da conseguir metas, mas que tínhamos tido sucesso em termos de plantar idéias, sementes e coisas, que depois foram elaboradas noutro contexto, com outros nomes, e que iam dar algum tipo de resultado. Que, aliás, é sempre o que acontece.

CH – Bem, que tal falarmos um pouquinho ainda sobre a história do PPREPS. A gente tem periodizado essa história da seguinte maneira, considerando os marcos institucionais; o PPREPS é feito em 75, previsto até 78, quando no ano seguinte vai ter a renovação, e vai até 82, não é? Tem uma primeira fase do PPREPS 75-78; e 79 até 82-83. Essas passagens, quando se dá a assinatura de novos contratos, significam mudanças importantes dentro do acordo de cooperação internacional OPAS-Brasil? Por exemplo, a passagem 78-79, quando se assina o novo [acordo], se retoma o PPREPS, se operam mudanças importantes aí?

CM – Que eu me lembre, não.

CH – Há um aumento de equipe, o GT , o GTC...

CM – Incorporam outras atividades também, consideração de serviços, essa coisa toda. Eu acho que as mudanças foram maiores no Ministério da Saúde, porque ainda que o Ministério continuou transferindo recursos para OPS para manter o grupo e, portanto, virtualmente, vivo, o projeto, no Ministério da Saúde o financiamento do projeto se desfazia.

FA – Isso, quando?

CM – Não sei precisar datas, agora eu teria de verificar, mas, mais ou menos, depois do terceiro, quarto ano do projeto.

FA – Ou seja, os três últimos anos da década de 70? Eu tenho uma pergunta que pode ser um pouco lateral, mas eu acho que ela é importante. Quando o senhor comentou até com uma certa dose, digamos assim, uma certa avaliação um pouco triste, mesmo, a não possibilidade de levar à frente a perspectiva da integração docente-assistencial, o senhor comentou que a Kellog teria mantido esse interesse? Qual era a posição da Fundação e de que maneira ela se articulava na condução das linhas de orientação da própria OPS?

CM – Não havia relacionamento direto. Nosso grupo, por exemplo, do PPREPS não tinha relação nenhuma, nunca teve nenhuma relação formal com a Kellog. Mas lá, em Washington, sim. Lá havia uma associação, havia convênios de cooperação entre as duas instituições e um dos objetivos era de promover as experiências de integração docente-assistencial.

FA – E essa presença dela, por exemplo, na experiência provavelmente norte-americana, ela repercutia na orientação brasileira?

CM – Não, eu pelo menos não percebi durante o período que estava aqui, o pouco que a gente conseguia avançar, nunca...

FIM DA FITA 2/LADO A

FITA 2/LADO B

[Não há registro]

Entrevista 3

Início da página

PROJETO:
HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

Data:
1º de Março 2005

Depoente:
CM - Carlyle Guerra de Macedo

Entrevistadores:
CH – Carlos Henrique Assunção Paiva
FA – Fernando Pires Alves
GH – Gilberto Hochman
JC - Janete Lima de Castro

N° da Entrevista:

Código: 3 / 5

Transcrito por:
Annabella Blyth - Agosto 2005

FITA 3/LADO A

JC – Como o senhor avalia a política de recursos humanos preconizada pelo PPREPS? O senhor identifica alguma relação com alguma política hoje, mais contemporânea?

CM – Onde? Na OPAS?

JC – Não, no Ministério da Saúde.

CM – No Ministério da Saúde, eu não estou bem informado hoje do que está passando no Ministério da Saúde, sei que tem uma secretaria...

JC – E na OPS?

CM – Recursos humanos foi elevado à condição de Secretaria, mas não sei bem o que eles tão fazendo. Não sei se estão fazendo alguma coisa nesse sentido. Na OPS, eu também estou sem saber. Pois estou muito distante. E tenho contato com [Edvaldo Carlos?] Brito [Loureiro?], uma pessoa brilhante, mas não sei exatamente como é que eles estão conseguindo levar adiante.

JC – Eu queria fazer uma pergunta, mas saindo do PPREPS, se a gente já encerrou? Também a gente pode ir e voltar. Tem problema? Carlyle, uma coisa que eu sempre quis esclarecer, já que não está muito claro isso para mim. Como é que se dá a relação entre OPAS, sede em Washington, com a OPAS nos países, em especial no Brasil? Qual a autonomia que têm essas representações? Como é que elas seguem as diretrizes? Como se dá isso? Em especial, gostaria que senhor falasse sobre a cooperação técnica em recursos humanos?

CM – A OPAS é, ao mesmo tempo, uma das organizações mais centralizadas e mais descentralizadas. Parece um paradoxo, mas é verdade. Ela é centralizada no sentido de que todo o poder, pelo menos formal, depende do diretor. Ele é a única autoridade eleita, teoricamente, tem todas as faculdades de organizar a Organização, a secretaria, da maneira como mais lhe convier. Posto isso em termos de autoridade formal, tem todas as limitações da realidade. Para você entender essas relações entre OPAS e países, os programas da OPAS-central e os programas de países apoiados pela OPAS, é preciso sempre lembrar de que há diferença entre a Organização e a secretaria. A secretaria é contratada para fazer as coisas na OPAS, que é dirigida pelo diretor. A Organização são os países. Ela é na prática, as pessoas estão se recordando dessa diferença, mas é importante do ponto de vista de filosofia da Organização e do ponto de vista da ação também. Então, a secretaria deve, em princípio, responder às decisões da Organização, que são tomadas pelos países. Tanto do ponto de vista coletivo, dos Conselhos, como dos chamados corpos Diretores da organização, como em cada país individualmente em seu território. Daí que a organização se autodefine, sempre: não somos uma organização internacional, isso durante o meu período eu insistia com meu pessoal, não somos nem pretendemos ser uma organização internacional, nós somos uma organização inter-governamental. É uma diferença imensa. As organizações internacionais, quando elas respondem às nações, elas estão sobre os governos. A reunião das nações dá um poder que é extraterritorial, superior ao governo. Mas isso não existe. Não sei se alguma vez existiu em algumas das organizações do sistema Nações Unidas. Mas, na realidade, não existe. Então, o que é a OPAS, é uma organização intergovernamental, que responde a governos. E no caso da OPAS, representados pelos Ministérios da Saúde. Porque são os Ministros da Saúde que são os delegados do governo nos corpos diretivos, ou diretores, da OPAS. A OPAS é muito cuidadosa e não tem programas próprios no país. Os programas, não são como a UNICEF [The United Nations Children's Fund]. O programa da UNICEF é feito por ela e ela mesma se empenha diretamente. No caso da OPAS sempre deve ser o programa do país, com o qual a OPAS coopera. Então ela não deve ter programas no país. Em nenhum país. E muito menos num país da dimensão e poder que tem o Brasil. Não, ela tem, de acordo com os interesses do país, o diagnóstico que o país faz, conjuntamente ou sozinho. Geralmente conjuntamente, com a OPAS, sobre os seus programas. Quais são os programas nos quais o país sente que precisa de uma cooperação externa? E de que natureza é essa cooperação? Essa é a filosofia. Lógico que isso tem limitações enormes. Primeiro, o corpo permanente. Então, você não pode jogar com cooperação de acordo com as mudanças do tempo, porque as pessoas são as mesmas, fixas. Elas têm determinado perfil, sabem fazer determinadas coisas e não sabem outras. Então, isso já é uma grande limitação. Mas enfrentando essa limitação, o princípio é esse. A Organização não tem programas nos países. Tem atividades de cooperação aos programas do país, quem tem programa é o país. Isso define primeiro a natureza do programa local. Os programas do país têm uma liberdade relativamente grande, que se expressa, inclusive, na maneira como a Organização organiza seu orçamento. Quando se vai organizar o orçamento, que é bi-anual, a organização separa os recursos que correspondem a cada país. Esses recursos totais, tanto os financeiros como os reais, quer dizer, pessoas do quadro etc, esse tanto cabe ao Brasil, esse tanto cabe... Os programas são definidos aqui; as programações são feitas aqui. Isso não significa que o diretor não tem influência, é outra coisa. O princípio é esse. Tem a outra parte de recursos que é destinada aos chamados programas regionais. Quer dizer, aqueles programas que atendem mais do que um país, que tenham sede. Washington tem a sede em país, mas são de natureza regional ou sub-regional. A organização desses programas tem um pouco mais, quer dizer, a secretaria lá em Washington. Tem um pouco mais de liberdade de definir. Mas, outra vez, em princípio, esses programas chamados regionais não podem atuar nos países onde eles devem atuar, a não ser como complemento das atividades de cooperação local. Nem sempre acontece assim. Você vai encontrar aí, coisas, rixas, intrigas, as limitações que toda organização tem. Mas este é o princípio fundamental. Depende muito do diretor de que isso ocorra mais, um pouco mais, um pouco menos, com todas as dificuldades. Se o diretor é forte, tem liderança etc, as coisas mais ou menos se equilibram. Se um diretor omisso, não trabalha muito, como ele é o dono do poder, pelo menos em princípio, então as coisas se misturam, brigam, aquela coisa toda. Mas o princípio é esse. O programa de cooperação nacional é, em princípio, definido de acordo com as necessidades que o próprio país define. Agora, isso também não é uma coisa de o país chegar e pedir qualquer coisa. Por que não é assim? Porque tem decisões coletivas tomadas pelos próprios governos que dizem que esses programas devem estar dentro de determinados âmbitos. São áreas que a OPAS pode atuar ou não pode. De acordo com o que os governos decidirem nos corpos diretores. Então se um governo diz: “não, eu não quero saber nada do que foi decidido lá em Washington”, ele mesmo decidiu porque participou, e quero outra coisa, aí tem dificuldades, entende? Mas dentro do que os governos coletivamente decidiram, cada país define o seu... e a OPAS deve ajustar, pois grupos humanos têm de fazer para poder conviver...

CH –O senhor até já falou um pouco sobre como se deu o seu ingresso na OPAS, como diretor, com sua eleição, em 82. Talvez o senhor pudesse falar um pouco mais como é que se dá esse processo de eleição para direção da Organização. Mas a minha questão é a seguinte: quando o senhor sai do PPREPS e segue para a cúpula da Organização em Washington, o que era o PPREPS naquele momento? E o que ele vai se tornar na sua direção, a partir de 83, nos anos 80, no que a cooperação técnica OPAS-Brasil vai exatamente se transformar?

CM – Olha, naquela época, como eu já lhe disse, o PPREPS estava em fase de raquitismo progressivo. Já não era mais o programa. O grupo técnico de coordenação já tinha muitas outras responsabilidades que estavam fora das propostas do PPREPS, já fazíamos outras coisas também, uma quantidade de outras coisas. Eu não levei do PPREPS, como eu já disse também a vocês, a não ser o que eu aprendi aqui, que me serviu para fazer entender outras coisas, mas não levei experiência do PPREPS para ação da Organização sob minha direção. Não utilizei essa experiência para transferir para outros países ou coisa desse tipo. Insisto, o que eu aprendi, lógico, me serviu, mas não fiz transferência de nada dessa experiência aqui, de nada, ou dessa experiência como um todo, para outros contextos, nem tentei fazer. Umas das razões, aquela que não acho que encontrei, nas realidades eram diferentes. Além do fato de que o PPREPS aqui já estava naquela fase quase de desaparição. Quanto à eleição, a OPAS é uma coisa interessante. Cada país é um voto. São trinta e sete, dos quais existem três europeus que são membros associados da OPAS e que votam. Não podem ser votados. Não há uma regra para apresentação de candidatos. Candidatos são apresentados do ponto de vista formal na hora da votação. Na prática, cada país apresenta um candidato muito antes e faz sua campanha. Existe todo um jogo político de convencimento dos outros governos para votarem no seu candidato, é uma questão de governo, mais do que de pessoa. Lógico, a pessoa tem influência. Na minha eleição existiam vários candidatos. O próprio David Tejada, que não quis ser candidato sugeriu a Waldyr [Pires] que me indicasse ou que me propusesse. Depois se apresentou candidato, porque os Estados Unidos, que não me queria, achava que ele era o candidato para me bater, o que tinha certa lógica. Existia um candidato colombiano e existia um candidato venezuelano. Além do diretor da época, que não era candidato, porque não tinha tido apoio do seu governo, se não tiver apoio de governo não pode ser candidato, então estava esperando um impasse em que ele então pudesse entrar numa segunda votação. Um candidato colombiano desistiu a meu favor, o Presidente da Colômbia pré-decidiu apoiar o Brasil, então se retirou a candidatura colombiana na véspera do dia da votação. O candidato venezuelano ficou, mas teve praticamente pouco voto. Eu ganhei na primeira votação, não deu chance para nenhuma outra articulação. Para isso foi muito importante, um parêntese interessante; os Estados Unidos tem uma influência brutal, e naquela época ainda era maior talvez a influência do que é hoje. E como eles se opuseram e fizeram campanha contra mim, eu acho que fui eleito, sobretudo pelo apoio do Canadá, que contrabalançou um pouco a influência norte-americana, sobretudo no Caribe, onde o Brasil não tem influência. E o voto do Caribe, apesar de ser país pequeno, é igual ao voto dos Estados Unidos, do Brasil, ou da Argentina. E eu tive a maioria dos votos no Caribe.

FA - Nesse ponto, de que maneira a sua posição como coordenador do PPREPS informava a sua própria candidatura, que papel isso jogou na composição?

CM – Vocês estão nos recursos humanos e parece que eu estou contra o PPREPS, quando na realidade acho que o PPREPS é a raiz. Mas nesse caso, o PREV-SAÚDE me ajudou muito mais. Nós trouxemos pelo menos três desses ministros do Caribe para visitar o Pará, inclusive, a experiência que estava começando em saúde. Em relação ao PREV-SAÚDE, eles ficaram entusiasmados com aquele negócio e a própria formulação do PREV-SAÚDE, como documento, era mais do que a proposição. Então, acho que consegui uns três ou quatro votos no Caribe pelo PREV-SAÚDE e não pelo PPREPS.

JC – Quando o senhor foi para Washington, foi logo em seguida ao PPREPS, PREV-SAUDE, digamos assim, era o programa de cooperação técnica da OPAS, que parece está fazendo trinta anos agora e estava engatinhando? Vá me corrigindo se eu estiver errada.

CM – Em recursos humanos.

JC – Cooperação técnica em recursos humanos na OPAS-Brasil. O diretor da OPAS, neste caso o senhor, neste momento do engatinhar do programa, teve algum olhar especial para a construção desse programa no Brasil? Quero entender qual foi o papel da OPAS de Washington na sua gestão?

CM – Acho que era uma continuidade, porque o ministro era muito meu amigo e eu era o pai da criança, em sentido figurado, não é? Então como diretor, isso era como dar chancela de que essa cooperação tinha de continuar. E de fato continuou. Agora, minha interferência direta não é tão forte, por causa dessa, dessa relativa autonomia que o programa tem, apesar de que o ministro era meu amigo, o secretário do ministério, o [?] Gonzaga, mais amigo ainda, quase irmão, então todo mundo era, minha interferência era relativamente pequena, direta.

JC - Era mais uma influência.

CM – Era mais uma influência de ser eu o criador, de ser aquela coisa de estar por lá, então sob essa égide, aquelas coisas podiam ser feitas, e continuadas. Uma das coisas que eu disse, três coisas de êxito do PPREPS, apesar de que não foi muito enfatizado no documento de atividade, mas era uma preocupação constante nossa da equipe, era o problema da educação continuada e um dos instrumentos pra dizer que eu não levei alguma coisa daqui... É um dos instrumentos da educação continuada, pra que a educação continuada pudesse se materializar era necessária a criação de centros de documentação. Então, que eu vi aí em documentação, e isso sim é uma coisa que eu levei, porque, não somente porque isso era realmente importante, se você não tem documentação, como forma de difundir informação e conhecimento, você não faz educação continuada nunca como ela deve ser feita, mas é porque uma das vigas mestras da minha proposta para a OPS, quando fui eleito diretor, era o que eu chamei naquele momento de administração do conhecimento. As que as atividades da OPAS devia girar ao redor disso. A OPAS não tinha recursos financeiros para apoiar financeiramente, então a grande vantagem que a OPAS poderia adquirir seria administrar bem o conhecimento, facilitar o acesso, difundir o acesso, a geração de conhecimento, mais do que geração, porque geração tem um custo, e alguns centros que geram, era capacidade de coletar, de apropriar-se, de transformar e de difundir e ajudar a aplicação desse conhecimento. Esse é todo um programa que nós tínhamos. E isso foi um dos discursos o tempo todo. Ficou muito o discurso, mas acho que muita coisa saiu. Uma das coisas que saíram foram esses centros de documentação. A OPS não tinham nada disso, nem os países tinham, na maioria.

FA – Mas de que maneira a criação, como é que era, a gestão pelo menos da documentação foi contemplada na formatação desse conjunto de ações do PPREPS e o PREV-SAÚDE, como é que isso apareceu na experiência brasileira.

CM – Não, isso apareceu porque na hora que a gente ia fazer o negócio, não basta o convencimento, todos nós já sabíamos, mas na experiência prática descobrimos ainda mais que era verdade. Não basta formar a pessoa. Isso é válido pra desde a atendente, o desde o servente até o médico especialista. Você tem que mantê-lo, de acordo com a evolução das coisas. Então nessa época já tinha uma estatística sobre a transformação do ensino médico, do conhecimento médico, por exemplo. Aquela coisa de que cada oito, nove anos o conhecimento se modifica, se renova completamente. Um médico, dez anos formado, dez anos atrás, que não se atualizou em nada, está absolutamente defasado depois de dez anos. Então, você tem de pensar isso, quando você pensa recursos humanos, senão você não tem, não vai ter recursos humanos, do ponto de vista daquilo que é essencial saber fazer. Saber entender, primeiro, compreender, e saber fazer em segundo. Então, o centro de documentação começou a ver isso. Como é que a gente faz isso? É lógico, tem que fazer através de cursos, tem muitas técnicas de educação continuada, muitos métodos. Mas, o mais importante, e cada dia se torna mais importante, agora com a revolução das comunicações, é a difusão do conhecimento que vem da documentação. E documentação de toda espécie. Esse programa, esse saiu.

FA – À luz da experiência anterior? Que a essa altura já devia ter talvez quinze ou mais anos, da OPAS na constituição da BIREME...

CM – Não a... isso sempre...

FA – Isso se articulou?

CM – Se articulou com isso. Só que antes a BIREME, tinha a BIREME. E não tinha mais nada. E a BIREME ficava enclausurada recebendo consulta daqueles que eventualmente sabiam da existência e sabiam como acessar a BIREME. Que normalmente é a comunidade cientifica, não o trabalhador de saúde, ninguém trabalhador de saúde acessa a BIREME, nunca. Tava no papel. Tem dúvida nenhuma desse negócio. Então nossa idéia era, não, BIREME importar disco, vamos promover, assegurar, vamos fazer esse sistema, vamos expandir isso. A OPAS tem de ter pra seu próprio pessoal, pra educação continuada inclusive, tem de continuar internamente, eles têm de ter acesso, têm de ter facilidade, têm de ter, mesmo que não usem. Cheguei, lamentavelmente ocorre muito que não usa, esta aí, centro de documentação você vai ver que não, às vezes ninguém, ninguém vê. Mas tem de ter, isso tem de ter, em todo o país, em cada, nos ministérios, tem de se criar sistemas, tem de se desenvolver redes que, até um dia chegar lá no mais alto ponto. Isso hoje em dia é possível, é perfeitamente possível. Nós estamos ainda nesse processo, mas do ponto de vista da OPAS foi um progresso muito grande. E creio que vamos continuar avançando muito nessa área, e isso é importantíssimo numa área de recursos humanos, na cooperação de recursos humanos. Expandi muito os programas de livro texto, a mente, a formação médicos, instrumental, esse negócio todo, tudo com base nessa filosofia, conhecimento, conhecimento é a mola da coisa, é o motor da história numa organização como a nossa.

CH – Nós tratamos, muitas vezes, a cooperação técnica em formação de recursos humanos em saúde como sinônimo do PPREPS. Mas chega um momento que não se fala mais do PPREPS, a cooperação é maior que o PPREPS . Esse momento que o PPREPS assim, digamos, se dilui, desaparece, embora continue o GAP, o senhor poderia explorar um pouco mais? Essa virada, quer dizer, esse finalzinho do PPREPS, o que está acontecendo?

CM – É pouco que tenho de acrescentar ao que eu já disse, porque é realmente não tem muito mais. A coisa foi-se acontecendo. Dada a circunstância de que o PPREPS, como projeto nacional, começou a ser desinflado, não ter meios de ser implementado, o grupo que continuava, porque o financiamento do grupo continuou, então começou a adquirir outras funções. Aí vem o PREV-SAÚDE, aquela coisa, negócio etc, até se transformar como [José] Paranaguá [de Santana] estava dizendo, muito depois, num grupo de infra-estrutura. Então isso foi uma coisa que ocorreu, sem muito trauma. E a cooperação de recursos humanos também continuou, mas também sem muito trauma, não se sentiu, era época também que o grupo tinha se renovado. Roberto [Nogueira], não é? É que depois foi pro Ministério, quer dizer, daqui o Paranaguá também passou pelo ministério, quer dizer, houve essa diversificação dessa continuidade da cooperação, quase que a morte do PPREPS não afetou substancialmente.

FA – Talvez é porque eu não tenha o domínio, enfim, dessa discussão aí. Isso significa o deslocamento da importância do tema dos recursos humanos?

CM – Não, acho que não. Eu quase diria que talvez significou a ampliação.

FA – Qual era a pauta de recursos humanos no PREV-SAÚDE, como é que isso se articulava?

CM – É que o PPREPS era muito, tinha metas quantitativas muito precisas. Então, como ele é um projeto nacional, não um projeto de cooperação, mas o plano é uma importância de negócio. O PPREPS é um projeto nacional, ele foi elaborado aqui, mas por um grupo nacional para o país. Ele tem um conteúdo muito executivo de fazer coisa, de produzir coisas, com metas muito quantitativas. Que não é próprio da cooperação. A cooperação não tem, per se, metas quantitativas a alcançar. O que ela tem são transformações na máquina, na institucionalidade nacional, pra que eles, para que a nação, o país, produza, o país tem, sim, essa meta. Essa é uma diferença muito importante. E isso foi mudando. À medida que o PPREPS, como, como um projeto nacional, foi desinflando, e já foi perdendo o contorno pelo menos das metas quantitativas, a cooperação começou a existir como tal, puramente cooperação. Então, cooperar com o Ministério pra que o Ministério faça, cooperar com a Secretaria para que a Secretaria faça, cooperar com a Fundação Oswaldo Cruz para que a Fundação Oswaldo Cruz faça. Então começou a adquirir, a entrar no eixo próprio do que é a cooperação propriamente dita. Eu acho que se perdeu, por um ponto de vista, porque já não tinha mais aquela coisa executiva de executar ações de produção propriamente dita, mas se ganhou, em termos de assumir o que é o papel da cooperação.

FA - Mas nessa linha, nessa promoção de uma transformação na institucionalidade, foi a expressão que o senhor usou, qual era a agenda para recursos humanos?

CM – A agenda aqui, no Brasil? Bom, a primeira agenda que nós tínhamos do ponto de vista da instituição era criar um órgão dentro do Ministério que se responsabilizasse por essa coordenação, tal como fizemos, tal como também era para os estados [federados]. Que esse órgão seria o que ia responsabilizar-se por coordenar dentro das instituições, Ministérios e Secretarias, a execução dessas atividades de produção propriamente dita formação, condições de emprego, essa coisa toda, educação continuada, essa coisa toda. Essa era a grande meta, o grande centro da atividade da cooperação. E isso se conseguiu. Depois fazer com que isso funcionasse. Aí já foi mais difícil. Porque esses órgãos, essas secretarias, esses núcleos, o nome que bem recebesse, tivessem capacidade operacional de realmente exercer a sua função. Aí nem sempre se conseguiu. Mas por aí anda a coisa. E acho que não mudou, continua sendo a coisa por aí. Tem outras, não é? Cooperação pra facilitar o ensino, a integração docente-assistencial continua sendo, mas grosso mesmo é essa, o centro da coisa, o núcleo, como você diz, o foco da coisa, é esse. Assegurar uma institucionalidade que seja capaz de operar na realização dessas atividades de recursos humanos.

FA – É nessa linha de tentar fortalecer essa institucionalidade, a criação desse núcleo central pra produção para o tema de recursos humanos, que tipo de estratégias a organização adotou? Por exemplo, programas de bolsas especialmente dedicado a isso...

CM – Tem várias, várias coisas. Primeiro a aproximação política direta com os responsáveis: senhor Ministro, o senhor precisa de algo assim, senão não vai funcionar. E vê bem, não é que essa seja unidade, cria aquela coisa, diz, eles têm que fazer. Não! É um núcleo de coordenação, um motor, estimulador, pra mobilizar. Então esse é o primeiro approach estratégico.

FIM DA FITA 3/LADO A

FITA 3/LADO B

CM – É algum tipo de programa de formar gente, criou um sistema de bolsas lá, de residência em saúde pública, mas, sobretudo a aliança com as escolas de saúde pública que têm também uma coisa desse tipo, aliança é muito forte entre a OPS, a LAESP [Associação Latino-americana de Escolas de Saúde Pública] e a todas as escolas individualmente pra ajudar nesse processo de formação de gente que seja capaz de desenvolver as atividades. A gente tem um pouco de estimulo de créditos, de subvenções específicas, cursos específicos, depende muito do país e da realidade de cada país, das necessidades de cada país. Além dessa coisa de caráter regional.

JC – Dr. Carlyle em um daqueles diagnósticos do PPREPS vocês identificaram um número grande de atendentes, não é? Bem, em pleno desenvolvimento dos programas de extensão...

CM – Tivemos a ousadia de mensurar...

JC – De mensurar, em pleno desenvolvimento desses programas de ampliação de cobertura. Então a ampliação da cobertura e a quantidade incrível, é a grande crítica do planejamento na época. Mas vocês chegaram a ousadia de mensurar e diagnosticaram um buraco, inclusive, eu tenho um texto seu que fala sobre isso e fala sobre essa necessidade de qualificar. Bem mais tarde já surge o que a gente chama hoje, apelido, o projeto Formação em Larga Escala, no sentido da articulação, mesmo, de formação do auxiliar. Eu gostaria de entender como se deu a cooperação técnica de recursos humanos neste projeto. Eu sei que esse projeto tem a figura central da Izabel [dos Santos], não é? E tão central que às vezes a gente fica com dificuldade de institucionalizar o projeto.

CM – Eu não tenho muita coisa a acrescentar ao que você já disse. Essa era uma das áreas que nós pensávamos que tinha mais probabilidade de ser realizada, eu disse isso antes, a área de menor resistência à mudança, porque, aliás, beneficiava em certo ponto o problema da necessidade da modificação das condições de emprego depois da titulação, você não podia esperar que as pessoas tituladas continuassem nas mesmas condições de emprego, de fato lamentavelmente em muitos casos ocorreu, mas teria de esperar um pouco de que essa coisa significasse também uma melhoria das condições de emprego para esse pessoal, nós não esperávamos muita resistência ao desenvolvimento desse projeto. Era de interesse mais ou menos, primeiro, de aceitação unânime, no discurso, e de aceitação institucional, com todas as instituições, mais ou menos, unânime também. A dificuldade era mais de caráter operativo, operacional. Aí teve esse motor Izabel, empurrando pra lá e pra cá. A grande coisa era a lentidão na mudança das regras que regem a formação de pessoal no Brasil. Esse foi o grande entrave. Até chegar a dizer isso, não se pode titular de tal e tal maneira, fazer com tal e tal maneira, é uma discussão imensa. Talvez seja bom mesmo, mas isso demorou muito. Ainda hoje, acho que ainda tem uns vazios aí, como definir essa história não é?

JC – Mas durante todo o projeto que começa em 1981 e vai minguando mais em 86, 87, até a década de 80 toda, início de 90, Izabel estava na OPAS.

CM – É... Continua aqui.

JC – Carlyle, ela era representante da OPAS no projeto?

CM – Era, e ao mesmo tempo, como eu no negócio, Izabel é nacional.

JC – Ah, sim. Certo.

CM – Era esse misto de coisas, ela nunca foi realmente OPAS. Eu tentei levar Izabel daqui, porque aí era uma forma de levar a experiência concretamente, pelo menos nessa área do PPREPS, para outros países. Tentei levar Izabel pra ser consultora da OPAS. Nunca quis sair desse negócio. Se existe um nacional, um funcionário da OPAS mais nacional, é a Izabel.

FA – O senhor chegou a pensar em um campo, um país específico onde ela...

CM – Não, eu queria que Izabel fosse para Washington em princípio, e essa era a dificuldade imensa, porque ela não queria: “não, eu não vou lá pra negócio de idiota, ficam discutindo a vida inteira aí [risos], esse negócio, não comigo não”. Então você escolhe um país e eu te mando para o país, como regional, pra não ficar subordinada àquele estresse. Sendo regional, mesmo estando em país, tem um pouco mais de liberdade, a pessoa viaja, vai em outro país, ainda volta, não está subordinada. Mas é ela nunca quis sair, o negócio dela era Brasil, Brasil, Brasil, Brasil, Brasil, está certo.

FA - E como que o senhor imagina Izabel funcionando num ambiente, por exemplo, de um país, tudo bem que não fosse um gelado e grande país do norte, mas um país mais amenizado por essas....?

CM – Ah, ela faria uma revolução, imagina, fico imaginando Izabel, por exemplo, num país da América Central, Nicarágua, por exemplo. Recém-saído de um governo ditatorial e passando para um governo sandinista e mudando, tudo por mudar, tudo por criar. Teria sido maravilhoso. Sinceramente, teria sido maravilhoso, teria ajudado, muito, muitíssimo.

JC – É. Agora, seria demais pedir, hoje, como é que o senhor faz a avaliação desse projeto Larga Escala?

CM – Eu, na realidade, não tive tanta intimidade com ele, ele foi criado, formulado, quando eu já estava praticamente com o pé fora, 81, 82, então eu já tava, 82, sobretudo, eu já tava fazendo a campanha pra ser diretor, viajando por aí. Só em 81 que eu fui saber mais da formulação de princípios, de idéias, essa coisa toda. Não tenho, hoje não tenho forma de avaliar. Eu acho que é algo necessário, foi algo necessário, mas não tenho uma idéia muito precisa sobre o desenvolvimento do projeto.

CH – Na verdade, o senhor falou há pouco sobre alguma possibilidade da Izabel trabalhar na Nicarágua, já em um contexto de abertura política no Brasil. Aí eu queria retomar o nosso caso, quer dizer, nos anos 70, vocês operaram, pelo menos uma parte do período sob um regime ditatorial. É como era a relação dos gestores do PPREPS, do GTC, com o governo central, sobretudo se a gente quiser ressaltar que o PPREPS, ele representava uma agenda importante de descentralização.

CM – Olha, até aí... a coisa que permitiu a existência do PPREPS. É que tinha como Ministro o Waldyr Arcoverde, que era muito amigo meu. Eu já disse a vocês que ele queria que eu fosse Secretário-Geral. Eu não pude ser e fui eu quem, quem indicou o Mozart [de Abreu e Lima]. O Mozart, além disso, desde que fomos para o Maranhão, o Mozart foi comigo, com aquele projeto no Maranhão quando nós saímos da universidade. O Mozart foi um daqueles, desde aquela época, que trabalha junto. Então no Ministério da Saúde nós tínhamos completo, pelo menos, a liberdade de entrar, sair, conversar com quem quiséssemos, é mobilizar quem quer que fosse, o que fosse necessário. No Ministério da Previdência nós tínhamos Jair Soares, mas tinha um bocado de rio-grandenses do sul, que é desse mesmo grupo, gente que estava no negócio. Então com todas as limitações do Jair, também, tinha menos facilidade do que no Ministério da Saúde, mas estávamos mais ou menos bem servidos. A dificuldade maior estava no MEC, onde a pessoa que estava aqui era de nível relativamente baixo, não abria portas com facilidade, então nosso trabalho com o MEC era muito mais difícil. Sempre foi muito mais difícil. E por isso também atrasou muito também, até o Larga Escala poderia ter saído muito antes, mas demorou muito por isso. Fora dessas três grandes instituições, nós praticamente não tínhamos relação com o resto do governo. Que também pouco se preocupava muito conosco. A não ser comigo. Eu sei que minha caderneta lá no SNI continuou sendo engordada até que fui candidato à direção da OPS, aí, que pra isso, o Golbery [do Couto e Silva] me achava certo [risos].

FA – O que que o Golbery quis dizer com isso?

CM – É que eu tinha um perfil, vamos dizer, visto como esquerdista, que para o exterior podia ser simpático. Para o Brasil, como regime de fato ditatorial, não tinha simpatia para emplacar uma candidatura, de princípio não teria muita simpatia, mas uma pessoa que fosse visto como um pouco antítese do regime, então talvez facilitasse. O que de fato facilitou. O velho era inteligente. Sabia das coisas.

GH – Na sua gestão, por doze anos, como diretor da OPAS, teve grande importância a administração da gestão do conhecimento. Mas como o tema recursos humanos estava colocado?

CM – Tive a sorte de encontrar, quando cheguei na OPAS, talvez a pessoa mais importante, que tinha na região, na área de recursos humanos, que é José Roberto [Ferreira], e eu o mantive. Ele já estava lá e eu o mantive como diretor dessa área. E fiz dessa área uma espécie de departamento, não chamávamos assim, mas era o segundo nível da administração da organização, quer dizer, ele respondia diretamente a mim. E o trabalho dele foi prestigiado tanto quanto a gente podia fazer desse negócio. E o José Roberto é um tipo muito criativo. Então, recursos humanos foi importante na minha gestão, nos doze anos como diretor.

GH – Programas, idéias, alguma inovação em relação à gestão anterior?

CM – Eu acho que teve várias inovações. Primeiro o fortalecimento dessa união com as escolas de saúde pública e completar a mudança do centro da área médica, propriamente dito, para área da saúde coletiva. Esse shift, essa mudança, acho que foi importantíssimo. Depois tivemos algumas coisas menores, mas também indicativas. Por exemplo, o programa de residência lá na OPAS é pequenininho, nunca pudemos expandi-lo muito, mas eu acho que foi uma coisa que teve muita importância para os países, de ver que a OPAS estava interessada em levar pessoas nacionais para passar um ano na oficina central, vendo, aprendendo e voltar depois para o seu país, sem ser funcionário, sem adquirir os vícios da burocracia internacional. Simplesmente como observador, um tipo sem responsabilidade nenhuma. Então creio que isso, uma coisa pequena... Depois, como nós tivemos algumas iniciativas muito importantes do ponto de vista político, por exemplo, o que a gente chamou 'Saúde, uma ponte para a paz', na América Central, dar à saúde essa dimensão, isso influenciou muito como tratar recursos humanos em toda a área da Centro-América. Criamos, inclusive, um programa específico para isso, especificamente de recursos humanos, de recursos humanos nos países, que não tinham gente realmente pra botar as coisas pra frente.

GH - Agora, isso é interessante. Essa é uma experiência de montagem, estímulo à montagem de centros de recursos humanos nesses países, quer dizer, partia de que diagnóstico? É semelhante aos outros...?

CM – Semelhantes e com diferenças próprias. Não existe país igual, existe país parecido. Na América Latina, em geral, tem muitas similaridades e tem muitas diferenças. Na América Central tem, e naquela época mais ainda, coisas muito peculiares. Primeiro, países pequenininhos, comparado com o Brasil. Não tão pequenos como o Caribe, que também tinha um programa de recursos humanos específico criado paro o Caribe, dadas as dimensões dos países especificidade deles. São países pequenos, mas naquela época inclusive isolados, apesar de ter uma história de colonização e de formação única, ou parecida, eles se separaram e adquiriram rivalidades tremendas. Naquele momento, então, Costa Rica versus Nicarágua, Honduras versus Nicarágua, El Salvador versus Honduras, Guatemala versus..... Então era um mundo de coisas que não funcionavam, então, é uma realidade completamente diferente nesse sentido. Mas também, por outro lado, mais fácil, porque você pode causar um impacto no que acontece no país com relativamente pouca coisa. Um país como o Brasil, para você causar impacto, é preciso ser algo realmente, pelo menos ao nível de fricção atômica, um negócio que tem de ser uma coisa forte. Mas lá não, lá com poucas coisas. E como era o centro ainda da Guerra, da Guerra Fria, palco dessa Guerra fria crua, difícil, então, chegar com uma mensagem de que saúde podia significar paz, é sinônimo de paz é, foi uma coisa interessante. Pra mim, uma das experiências pessoais mais gratificantes que eu tive. E recursos humanos, aí fazia também um impacto interessante. Foi um programa, eu nem sei se ainda existe, mas foi um programa que teve um desenvolvimento bastante bom, foi bem financiado.

FA - O senhor poderia exemplificar, com um exemplo completo, da experiência tua, uma gestão do diretor da OPAS junto a um presidente de uma república centro-americana, como é que isso se desenvolvia, que tipo de...?

CM – Contatos, eu vou destacar uma não especificamente de recursos humanos, mas que eu acho que define perfeitamente qual é o valor da vida, que afinal de contas é o que informa tudo em recursos humanos. Lá com o presidente da Costa Rica e um grupo de gente, ministros, e ele era criador de gado. Nós estávamos calculando metas de mortalidade infantil pra região, adaptando as metas mundiais para a região. E a idéia era de que nenhum país podia ter mortalidade infantil superior a trinta por mil. Ele disse: Trinta por mil?! Eu digo, pois é. Ele disse: Mas é um absurdo. É lógico, a Costa Rica já tinha uma mortalidade inferior. A Costa Rica, essas diferenças dentro da América Central. Ele disse: Mas isso é um absurdo. Porque no meu gado, se eu tiver uma mortalidade infantil superior a vinte por mil, eu vou à falência. Eu digo: “É, presidente, me lembrei da história da canção brasileira que do... ´Disparada`”.

JC – É disparada, não é!

CM – É disparada era um negócio. O bezerro do senhor tem dono, e por isso tem valor. Os meninos pobres, às margens, marginais, não têm, não têm valor, então podem morrer. E aí todo mundo olha assim pra mim, essas eram uma das coisas que, olham assim pra mim, para o negócio.... eu disse: “mas vamos botar para a América Central pelo menos vinte por mil”. Costa Rica estava com quinze naquele momento, quinze, dezesseis. A Guatemala estava em cento e dez. Não tem possibilidade de chegar aí, homogeneizar essa diferença. Mas essa experiência de ver como a vida humana tem um valor, fortaleceu mais a minha convicção a respeito do valor muito relativo, que é inferior inclusive dos bezerros.

JC – Dr. Carlyle nessa, pegando carona na pergunta e na resposta, qual foi a atividade, projeto ou ação que mais deu, desculpando a expressão, 'tesão' no diretor da OPAS na sua gestão.

CM – Teve vários, vários, mas eu, sempre me vem à mente, talvez porque tenha sido dos mais exitosos e a gente sempre gosta de lembrar aquilo que teve mais sucesso. Um foi esse na América Central, 'Saúde, uma ponte para a paz', e durante o meu término eu consegui realmente mobilizar muito dinheiro pra isso, uns trezentos milhões de dólares, e fazer muito movimento, eu acho que a gente influiu inclusive na política regional. Os acordos estavam parados e depois que a gente começou, eles começaram a mover, ele deve ter aí, pelo menos eu penso, que a gente teve uma influência muito grande, inclusive fora do setor saúde, para a área política, ajudamos a estabelecer a paz, o entendimento nessa região. E isso é muito gratificante. O outro é a erradicação da poliomielite, também porque raras vezes você tem a oportunidade de formular um projeto, propô-lo e realizá-lo dentro estritamente dos períodos que você propõe. Esse foi o caso da erradicação da poliomielite nas Américas. Nós chegamos, eu cheguei em 83, a primeira reunião de análise de factibilidade, foi em julho de 83, aí tomamos a decisão de propor a erradicação no final de 83, em novembro, o Conselho da OPS aprovou em setembro de 84, e cumprimos, quando eu saí em 94, estava certificado, tinha três anos que a poliomielite tinha sido erradicada, tinha pouco, não é? E criamos toda uma metodologia que depois serviu de base pra um programa mundial, que ainda não completaram, mas foi daí que nossa experiência, que animou, que a OMS era contra. Depois que a gente fez, aí deu. Então isso é uma coisa que me, ainda hoje, sinto muito gratificante. E aí outra coisa, a felicidade de ter um tipo como Ciro de Quadros, que é uma máquina. Só que então, muito inteligente, mas sabe porque que saiu, disciplina, negócio que, realmente, conduzir esse programa, dele foi, durante todo o meu período, ele foi coordenador.

CH – Ele doou os arquivos pessoais dele pra Casa de Oswaldo Cruz.

CM – Ciro foi, realmente, não sei, ninguém o substituiu, mas tenho a impressão que se eu não tivesse tido o Ciro, eu não teria é celebrado essa façanha de, sendo diretor, de ter formulado um programa, ter proposto, apoiado e completado no período. E vê que foi um período de crise econômica, todo mundo dizia: não, quem é que vai vacinar? Ninguém tem dinheiro, coisa e tal. Nós gastamos setecentos milhões de dólares na erradicação da poliomielite nas Américas.

GH – Por que esse programa não foi abraçado inicialmente pela OMS?

CM – No começo, porque eles achavam que era impossível. Que nós iríamos fracassar, que não tínhamos negócio.

GH – Mesmo com a experiência da varíola, nesse sentido...

Cm – Mesmo. Até que a varíola tinha uma tecnologia bem mais simples, era um vírus muito mais civilizado do que a...

JC – Pólio.

CM – Do que a pólio, forma de transmissão também diferente, então era mais fácil. Para a pólio, eles achavam que não, naquele momento que era impossível. Depois se convenceram, três anos, que nós tínhamos avançado, e que a coisa cair assim é, chegaram à conclusão que sim. Agora, como experiência pessoal, você está falando em América Central. Uma das coisas que me marcou mais, isso não é de realização, é uma experiência pessoal, foi na Bolívia. Eu tava visitando a Bolívia com o Ministro de Saúde na época, e mais uma quantidade de gente, num barco, um barco grande, é um barco que faz atendimento itinerante de saúde dentro do Lago Titicaca, tem várias ilhas, ele sai de ilha em ilha. E por acaso, chegamos numa ilha que não estava no programa, que tem mais ou menos, um quilômetro de comprimento por cem metros de largura, uma porcaria perdida lá dentro do Lago Titicaca. Mas o pessoal soube, que quando o barco estava se aproximando, pegaram os alunozinhos da escola, uma dúzia de menino, e botaram na frente do cais, que não era cais, terra, para nos receber. E esses meninos começaram cantando coisas que falavam de justiça, de bem-estar, pé descalço, um frio terrível, o Titicaca está a três mil e quinhentos metros de altitude, frio, os meninos com a pele rachada, roupa estraçalhada, a imagem mais completa do isolamento e da exclusão, e cantando pra gente, que estava chegando, que o mundo é belo e que a vida é linda. Foi uma coisa que corta o coração, você ter de ver o quanto a vida, eu sou ruim de chorar, mas chorei um pouco.

JC – Deixa só eu terminar, explorar um pouquinho esses dois programas, tanto a erradicação da pólio como esse que o senhor falou da América Central. O senhor colocou no início da entrevista que os recursos humanos nesses projetos, perfeitamente compreensível, ele nunca foi destinado na cooperação como fim, mas como meio. E, logicamente, ele é um meio estratégico, como o senhor muito bem colocou, pra chegar a um determinado fim, como a erradicação da pólio. A minha pergunta é, como é que se davam as políticas de recursos humanos dentro desses programas?

CM – Ah, essa é uma das coisas que eu mencionei aqui de passagem, cada programa, nesse caso particularmente um programa de vacina em geral, não somente de erradicação da pólio, mas particularmente vacina da pólio, que era uma espécie de força-tarefa, tinha seu programa de formação de gente pra cumprir aquele objetivo. Não tava na área de José Roberto [Ferreira]. José Roberto cooperava com, mas era Ciro que tinha de implementar, dentro do seu programa, essa coisa. E era uma tarefa extraordinária, porque, não é só preparar o pessoal do serviço de saúde, essas campanhas foram feitas, a erradicação foi feita na base de campanha de massas. Nós levamos inclusive daqui, nas primeiras campanhas fizemos aqui, antes de eu ser eleito diretor, contra a pólio. Não tínhamos metas de erradicação naquele momento, mas no fundo a gente falava entre nós, vamos erradicar a poliomielite aqui. Então, tinha de preparar não só o pessoal do serviço de saúde pra isso, mas preparar, sobretudo, os agentes comunitários. Centenas de milhares de pessoas. Foi, foi um trabalho hercúleo, hercúleo realmente, hercúleo.

FA – E a experiência brasileira na formação de auxiliares e técnicos eventualmente contribuiu na modelagem?

CM – Toda ela, por exemplo, Ciro se formou aqui, o Ciro é do Rio Grande do Sul, começou trabalhando em vacina aqui, depois ele participou de todo o esforço de erradicação da varíola no mundo, terminou, ele foi testemunha do último caso de varíola do mundo, na Etiópia, ele estava lá. O negócio, então, o Ciro com essa experiência, ele levou toda essa experiência. E eu que vinha daqui, tinha começado, antes de se erradicar, eu vou contar pra vocês, quando eu era Secretário de Saúde, uma das coisas que encontrei no Piauí, era gente morrendo de varíola. Veio o Ministério, disse: eu vou começar..... Não pode ser, nós temos vacina que protege, por que esse pessoal está morrendo de vacina, tem centenas de casos..., nem sabíamos quanto tinha. Mas a vez que nós contamos, num ano contamos novecentos e tantos casos no Piauí. Aí, o Ministério, 'Não, porque não sei o quê, coisa e tal', eu fiz a vacinação no Piauí, antes da campanha brasileira. Quando o pessoal da vacina, depois se criou a campanha aqui, que chegou no Piauí, já não tinha mais varíola, eles tiveram que vacinar de novo, porque minha documentação estava um desastre. Eu não tinha nenhuma técnica, eu tinha vacinado. Vacinamos, acabamos com a varíola, mas documentamos mal, aí teve de fazer de novo. Então essa experiência brasileira na área da vacina foi importantíssima pra nós.

FA - Deixa eu precisar um pouco talvez a minha pergunta que é, com certeza a experiência brasileira na montagem do empreendimento da campanha de massa com certeza influiu. Eventualmente, experiências outras na formação de pessoal para, enfim, desempenhar as ações de campo na campanha, com certeza contribuíram, mas a experiência adquirida no desenvolvimento desse programa específico, ele alguma maneira se aproximou.....

CM – Não, não, não creio.

FA – ....... a formação de pessoal para campanha dos países centrais?

CM – Fernando, não digo que não tenha, mas não foi nada, nada similar, não, não foi nada similar. Mesmo porque era uma preparação em campanha, e esse programa era uma proposta de rotina, sistemático, não é?

FIM DA FITA 3/LADO B

Entrevista 4

Início da página

PROJETO:
HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

Data:
1 e 2 de Março 2005

Depoente:
CM - Carlyle Guerra de Macedo

Entrevistadores:
CH – Carlos Henrique Assunção Paiva
FA – Fernando Pires Alves
GH – Gilberto Hochman
JC - Janete Lima de Castro

N° da Entrevista: 1ª e 2ª

Código: 4 / 5

Transcrito por:
Annabella Blyth - agosto 2005


FITA 4/LADO A

FA – Eu tenho uma certa curiosidade, posso fazer uma pergunta pensando na temática de recursos humanos? De que maneira se constroem, no interior da oficina, os programas que depois vão ser objeto de deliberação nos colegiados da Organização Pan-Americana?

CM – É uma boa pergunta sobre a vida, a cozinha, né?

FA – Especificamente com relação a recursos humanos, qual o funcionamento dos conselhos. Como é que é isso? São conselhos consultivos na área de recursos humanos que tiveram alguma vigência no ciclo de duração? Como é que essa coisa é gestada dentro da organização?

CM – Esse é o grande papel dos chamados Programas Regionais.

FA? – Então vamos lá.

CM – O Programa Regional de Recursos Humanos, quando a gente estava lá com José Roberto [Ferreira] etc, um dos grandes papéis que ele tem, mais do que a cooperação direta, é estabelecer as bases para essa cooperação. Como é que vai ser tratado o problema, o que é que a organização pode fazer, de que maneira pode fazer. Como é que eles chegam até isso? Cada programa tem suas estratégias, dependendo das personalidades e do campo específico. Mas os instrumentos são mais ou menos, muda a maneira como se mistura, mas são comuns. Ter consultas técnicas, conselhos, ou reuniões de grupos técnicos, com grupos de estudos, no qual a gente reúne gente com experiência e com sapiência nessa área, de diversos países, não necessariamente funcionário da Organização, pode incluir, vão e discutem o tema na Organização. Através da participação de congressos, a gente recolhe todos os materiais que existem sobre a matéria, das escolas, das instituições, e analisa esse problema da administração de conhecimento, gestão de conhecimento, até formular uma proposta. Essa é a forma que devemos enfrentar a natureza do problema. O documento é discutido internamente, dentro do programa inicialmente. Depois ele é discutido pelo diretor com seus conselhos de negócio. Aprovado, às vezes, mas é nesse nível que se leva e se começa a participação dos governos. Já teve a participação indireta através dessas consultas etc. Os ministros também são consultados. Mas não teve um papel de decisão do governo. Aí começa o papel de decisão do governo. A Organização tem, para começar, uns comitês formados por representantes de governo, que lidam com isso. O principal deles é chamado Comitê de Planejamento. Na realidade, ele é chamado de subcomitê, porque o comitê ficou chamado Comitê Executivo. Eu falo sobre isso para vocês depois. Um Sub-comitê de Planejamento. Esse Subcomitê de Planejamento tem a responsabilidade de analisar essas propostas e adaptá-las, ajustá-las, negá-las ou rechaçá-las, para serem submetidas aos corpos, aos conselhos diretores da organização. Que são dois níveis. O primeiro é o chamado Comitê Executivo, que está composto por nove governos, eleitos por todos os demais, que analisa essas propostas e diz: “está certo, isso é bom, vai para frente, ou não vai, fica por aí”. Se achar que vai, ele não dá o resultado final. Geralmente vai, raramente ele dá o resultado final. Ele manda para o chamado Conselho Diretor, onde estão todos os países. Porque de quatro em quatro anos, agora de cinco em cinco, se transforma numa assembléia, mas é a mesma coisa, conselho, são todos os países. E aí se aprova ou não a política.

FA – Assembléia ou conferência?

CM – Conferência Pan-Americana de Saúde. Assembléia é lá na OMS. Mas é a mesma coisa, é o conselho, que são todos os países que discutem essa proposta, já encaminhada pelo Comitê Executivo, quando supera o negócio, e então aí se aprova. E isso volta aos países sob forma de programa de cooperação. É aquela limitação que eu lhe falei, dentro da qual a Organização teve que trabalhar. Mas ela não pode, simplesmente sempre fazer o que o governo, o ministro, do momento queira, dentro daquelas regras, tudo bem. Ainda tem vezes que tem diretores fracos que fazem besteira... Isso acontece nas melhores famílias. Então os programas regionais são muito importantes para isso, porque eles coordenam todo esse processo.

FA – Por exemplo, na área de recursos humanos funcionou, ou funciona, um conselho assessor para recursos humanos como instância permanente?

CM – [risos] Na minha época não era bem uma instância permanente. A gente convocava, eventualmente, quando queria etc, inclusive a formação variava dependendo do enfoque, eu não sei como é que está agora.

CH – Esse estilo é definido um pouco pela forma de gestão do próprio diretor ...

CM – De acordo com a proposta do coordenador do programa. Mas na nossa época eu preferia fazer consultas de acordo com a composição dos consultantes, de acordo com a temática. Não tínhamos um conselho permanente, fixo. Eu achava limitativo isso. Essa idéia foi proposta, outra maneira.

FA – O senhor preferiu esses conselhos móveis?

CM – ad hoc.

FA – O senhor se lembra como é que se deu a dinâmica de construção da opção ideológica do diretor ou de construção do consenso a ponto dele chegar a num determinado grau de maturação? Por exemplo, como ocorre a engenharia para o exame do comitê de planejamento ou de um órgão diretor?

CM – Eu acho que é muito pessoal. Eu deixava o pessoal discutir o mais possível, antes de chegar a uma discussão em nível decisório, mas dependendo do tema poderia ter prazos que deviam ser cumpridos. Então isso exigia que a discussão, no nível técnico, fosse mais ampla e profunda possível. José Roberto [Ferreira] era pessoa que coordenava a área de recursos humanos no meu tempo. Foi ele o único, durante doze anos, que geralmente me trazia as opções de uma determinada pauta quando um tema estava em debate. Ele dizia: 'Olha Carlyle, como é que a gente faz, aqui tem essa opção A que significa tal coisa, essa “opção B', para uma discussão prévia. Eu me lembro até de uma que ele dizia, 'Essa A é revolucionária e essa B não tinha nada de revolucionário, mas precisava de um pouco mais de coragem para decidir”. Então a “B” significa o meio termo e a “C” é o mínimo do negócio. Ele gostava muito de formular isso. Eu digo “não, vai por essa, vai pela A”, aí ele descia para fazer as suas e coordenar todo o processo de discussão etc, ou seja, se preparar para levar... Mas isso é muito pessoal. Tenho a impressão, não sei como é que Mirta [Periago] está fazendo. Eu tinha um Conselho permanente de funcionários da Organização, que era chamado Conselho. Como é?

FA – Associação?

CM – De Ministerial. Era uma reunião ministerial para decidir em última instância. Sei que a Mirta fez isso também, uma coisa permanente. O meu também era variável, porque eu nunca acreditei em conselho muito grande. Então tinha um núcleo fixo com poucas pessoas. Convidavam-se as pessoas interessadas no tema. Mas sei que Mirta fez uma coisa mais ou menos fixa, em número e negócio.

GH – Nessa linha, eu, também, gostaria de lhe perguntar sobre sua gestão, não necessariamente em recursos humanos, mas sobre as relações do diretor da OPAS com a Organização Mundial da Saúde e com outras instâncias, e também sobre as deliberações nas Assembléia ou até mesmo as recomendações para os países etc. Eu, por acaso, estudo uma campanha fracassada que foi a erradicação da malária ao longo dos anos 50, momento em que a OPAS antecipou, em 54, uma decisão de 55 da OMS. Mas enfim, isso é só um detalhe. Mas na sua gestão, como é que se dava? O [Halfdan] Mahler... já tinha saído?

CM – Não. Eu tive com o Mahler ainda...

GH – ... um ou dois anos...

CM – ... três anos...

GH – Três anos. Como era essa relação entre na Organização.....

CM – Um pouco mais, cinco anos.

GH – ... essa organização intergovernamental e a OMS, sendo que a OMS tem outra lógica.

CM – As relações são pautadas por esse convênio, chamado de acordo, entre a OMS e a OPS. Esse acordo define duas coisas importantes: o primeiro, que a OPS representa a OMS na região das Américas, mas mantém sua individualidade. Então na realidade temos, na região das Américas, duas organizações atuando unificadamente: a OMS e a OPS. Então, em teoria, a OMS não deve ter nunca nenhuma atividade nas Américas que não seja através da OPS. Isto é uma parte desse acordo. Em função desse acordo, uma parte do orçamento da OMS é transferido à OPS para as atividades da OMS na região das Américas. Por outro lado, a OPS se obriga a seguir as deliberações realizadas pela Assembléia Mundial da Saúde e pelo Conselho Executivo da OMS, não das diretivas do diretor geral da OMS. Isso aí já é outra coisa. Mas o que a Assembléia aprova e o que o Conselho aprova são mandatos para Organização aqui, da mesma forma que nosso conselho é. O nosso conselho atua como Conselho Regional da OMS, nosso Conselho Diretor da OPAS, quando ele faz uma reunião no encabeçamento dos papéis, tem as duas coisas. Reunião tal do Conselho Diretor da OPS e reunião tal, que é outro número, do Comitê Regional da OMS para as Américas. Nós atuamos ao mesmo tempo. O diretor da OPS é eleito pelo Conselho Diretor da OPS, nesse caso não é o Comitê Regional da OMS. Aí vem a segunda coisa que é importante nesse acordo: esse diretor eleito pelo conselho da OPS é automaticamente o diretor regional da OMS para a Região das Américas, que o Conselho Executivo da OMS tem de referendar. Ele só pode referendar, mas não pode mudar as coisas, não vai à Assembléia, fica... E o diretor da OMS não tem nada que ver com isso, ele não pode dizer nem sim nem não, nem que gostou ou que não gostou. Pode até dizer, mas não tem influência nenhuma nesse negócio [riso]. Bom, feito isso, o que é que acontece? O Programa da OMS, sendo aprovado pela Assembléia, pelo Conselho, então ele é automaticamente adaptado e aplicado na região das Américas. A OPS tem essa obrigação. Mas se ele não é aprovado pelo Conselho Diretor, nem pela Assembléia, passa a depender da química entre os dois diretores. Ou seja, do diretor geral da OMS e do diretor da OPS, ou em nível menor, porque isso vai numa espécie de indagação, no caso dos recursos humanos. O diretor de recursos humanos de Genebra tem que se entender com o diretor de recursos humanos da OPS. Quando os dois se associam não precisam nem ir os diretores. No meu tempo, como diretor da OPS, tive com o Mahler uma relação com um início um pouco tenso. Mas depois nos entendemos bem, porque o Mahler era um tipo extraordinário. Então quando você trabalha com gente inteligente é outra coisa. É uma maravilha. Foram cinco anos bastante bons, tinha uma dificuldade, telefone, conversa, resolve, tudo bem. Ele reunia os diretores regionais, ouvia, tinha uma relação boa. Eu fui candidato contra Nakajima para a eleição do diretor da OMS. Ele me ganhou na terceira votação, representando o Japão. Nakajima tinha um tipo de inteligência diferente da de Mahler. Tinha uma memória fantástica, elefante, mas uma incapacidade total de articular. É um cara que pode falar sobre a estrutura desse plástico aqui com profundidade, eu estou dizendo por um absurdo, mas pode falar sobre o bacilo de Koch, e dizer que tal ponto, tópicos, num sei o que, com profundidade. Mas na hora de articular as coisas, o bacilo de Koch com uma campanha de controle da tuberculose, não dava. Então, a relação com Nakajima foi muito difícil, a tal ponto que uma vez eu chego para ele, lá em Genebra, eu digo: 'Olha, vamos sentar aqui, e vamos resolver umas coisas. Você não pode me impor uma coisa, e eu, lógico, muito menos posso lhe impor algo. Então, a única maneira que nós temos de trabalhar, de fazer as coisas operarem melhor, é de nós nos entendermos. Se você quer algo lá na região das Américas, fala comigo. Você tentar me sobrepassar, não vai conseguir. E se eu quero alguma coisa aqui, eu venho falar com você, não tem outro caminho, eu não devo fazer de outra maneira, não é?'. Sabe o que ele me disse? Isso é interessante. O problema cultural o quanto é importante. Ele disse, 'Olha Carlyle, no meu país, na minha cultura, ele nem falou país, é o subordinado quem tem de prestar homenagens, a palavra em inglês eu não me lembro agora, mas a tradução é mais ou menos isso, homenagens ao superior'. Eu digo, 'É lamentável, mas você não é diretor de uma Organização de sua cultura. Você está numa cultura universal. E, em segundo, eu não sou seu subordinado. Por aí nós não podemos caminhar.' Aí ele disse: 'mas além disso, na minha cultura, quem foi adversário, será sempre inimigo.' [risos] Veja, está realmente difícil. Mas aí a gente... terminava trabalhando a parte com os diretores de outro nível, mas com ele mesmo foi sempre muito difícil. Ele tinha um ciúme violento. Foi uma coisa muito difícil; seis anos muito difíceis.

GH – Sua candidatura a OMS foi gestada pelo trabalho na OPS em uma candidatura do continente?

CM – Foi candidatura do continente. Eu tinha seis... Cada região do mundo tem um número de votos no Conselho Executivo. Essa é decidida praticamente no Conselho Executivo. O Conselho Executivo tem trinta e um membros, sendo que a região das Américas tem seis representantes nesse Conselho. Eu era candidato dos seis países, ou seja, candidato de todos os países. Mas esses seis representavam os outros.

CH – Os Estados Unidos estava... votou?

CM – Ah, essa época, não. Eu já tinha boas relações com os Estados Unidos, pois já tínhamos acertado os ponteiros. Eu não poderia administrar a Organização tendo os Estados Unidos como opositor. Os Estados Unidos eram entusiasmados, me ajudou muito, mais do que o Brasil. O Brasil fez uma campanha péssima, inclusive por ignorância. Tanto assim que não consegui um voto na África. A África tem sete votos. Eu não tive um voto na África.

FA – Como é que se desenvolve essa campanha, por exemplo, a quem caberia e com que recursos diplomáticos ou de relações exteriores você dialogou? Fez uma campanha, por exemplo, em países africanos ou no sub-continente asiático? Sei lá. Como é que isso se desenrola no mundo inteiro?

CM – No mundo inteiro, tem que ser o país, o governo, com seus embaixadores, com suas delegações. Um pobre candidato, o que ia fazer?

FA – Sim. Mas digamos, a comunidade especificamente no domínio da saúde e da medicina, não tem canais próprios para chegar?

CM – Não. Pois quem decide esses votos geralmente é no nível de Ministério de relações Exteriores ou o Presidente.

FA – Ministro de Estado?

CM – Não, o Ministro de Estado da Saúde. A saúde pesa, mas, geralmente, não é o decisivo. O decisivo é o Ministério das Relações Exteriores e que vá até o Presidente. No final é uma decisão do Presidente do país ou do Primeiro-Ministro, dependendo do regime de governo.

JC – A cooperação técnica da OPAS tem uma longa vida para a frente?

CM – Tem.

GH – Aproveitando e sabendo que tem negociações de mudanças pela qual a OPAS pode vir a funcionar, em relação aos países, qual é o futuro já que a gente está falando de história da cooperação?

CM – Então vou fazer uma digressão específica em saúde, mas dentro do contexto global. A diminuição da importância da cooperação multilateral não implica o desaparecimento de todo esses aparatos institucionais criado nas Nações Unidas e no sistema interamericano. Isso vai continuar, o mundo não pode mais prescindir disso. Dadas as realidades políticas atuais, ainda que seja inoperante e tenha pouca coisa, ela pelo menos compõe a coisa do mundo. Então, essas organizações vão continuar nas Nações Unidas, uma mudança aqui, uma mudança acolá, mas não vão mudar. Não antecipo a incorporação, aquela integração que eu falei da OPAS à OMS, completamente, num futuro previsível. Não há vontade para isso. Bem, ainda que o atual Estados Unidos gostaria que isso acontecesse, porque para eles significaria pagar uma cota só. Então eles vivem querendo cortar essas cotas e como eles pagam 61% da cota do orçamento próprio da OPS, então se a OPS se integra na OMS eles cortariam isso aí duma vez por todas.

JC – Um negócio financeiro.

CM – É. Isso é muito pouco para eles, apesar de que eles gostariam de não pagar, mas é muito pouco para eles fazerem caso desse problema. Então, a Organização vai continuar como está. O problema é quanto tempo o orçamento vai durar, pelo fato dele manter a capacidade de atuação da Organização. A Organização tem três orçamentos. Um orçamento próprio, da contribuição dos países para ela, que representa mais ou menos dois terços do orçamento regular da organização; o que ela recebe da OMS, que é o outro terço desse orçamento regular; agora, sobre isso, que é uma quantidade mais ou menos, não sei quanto exatamente está agora. Mas deve ser aproximadamente, uns cento e dez, cento e vinte milhões de dólares por ano. Sobre isso está a possibilidade dela mobilizar recursos de governos, de instituições financeiras, de organizações não-governamentais e etc, que venham complementar esse orçamento. Ou passando através dela ou indo diretamente aos países. Às vezes ela mobiliza o recurso e passa diretamente para os países, não tem que passar por ela, inclusive é bom até que não passe, porque essas passagens burocráticas são custosas. Isso é o que está diminuindo mais, porque o orçamento interno da OPAS não aumentou mais depois que eu saí, acho que permanece a mesma coisa, mas continua, o orçamento regular. O da OMS diminuiu, porque com a modificação da União Soviética e a incorporação de vários países do leste europeu, pobres, teve que aumentar o orçamento. E isso foi aumentado, sobretudo, à custa das América. Além disso, a África continua como a prioridade número um. Então todo o orçamento da África na OMS é sacrossanto, independentemente de que seja bem ou mal utilizado. Mas, o que mais afeta é essa capacidade dela mobilizar recursos. Na minha época, eu fazia com recursos extras, o extra-orçamentário, que na realidade não são extras, entram no orçamento também, mas não são regulares. Nós tínhamos mais recursos extras do que do orçamento regular. Todas coisas, na Centro-América, eram feitas com recursos extras. Agora a organização disso está cada vez mais muito limitada. Os governos já não estão querendo dar e as grandes Fundações também já estão cada vez menos americanas, a maioria delas cada vez mais. Por outro lado, e aí vai a observação de caráter mais genérico, o mundo está passando por, uma interpretação pessoal minha, que não tem nada que ver com minha experiência nem com coisa nenhuma, é simplesmente como observador do mundo, um estágio de uma consciência cada vez mais precisa de que tem um bocado de bens comuns que devem ser de toda a humanidade, para o qual a humanidade vai ter que estabelecer mecanismos de administração desses bens, diferentes dos mecanismos de administração nacional, ainda que sejam compatíveis com eles, mas também diferentes dos que nós temos hoje. Esses bens comuns, vocês sabem tanto quanto eu, bens de ambiente e bens da tecnologia. Agora até um cara da França disse, que estava sendo candidato à OMC e que a riqueza da floresta amazônica ou a biodiversidade amazônica também devia ser considerada um bem de caráter comum para humanidade [risos]. O que ofendeu muita gente aí. Mas isso precisa também ser modificado. Então, eu antecipo, lento, vai demorar, porque os interesses são muito grandes, antecipo de que vai voltar um outro ciclo de prestígio para as instituições multilaterais. Se não para todos, para aqueles que estão vinculados à administração desses bens comuns. E a saúde tem alguns desses bens. Toda a parte de epidemias tem seu caráter universal. Toda a parte de ambiente como fator de risco, a saúde é um desses bens, ou tem muitos desses bens. Isso pode ser um campo para aumentar o prestígio da OMS, em primeiro lugar, e através disso, da própria OPS. Depende muito das nossas lideranças também, de como evoluir, mas depende muito de como nós trabalhamos dentro da saúde.

[INTERRUPÇÂO NA GRAVAÇÃO]

FIM DA FITA 4/LADO A

FITA 4/LADO B

GH – Dia 2 de março 2005, entrevista com o Dr. Carlyle na OPAS, estão presentes Fernando Pires Alves, Janete Castro, Carlos Henrique Paiva e Gilberto Hochman.

FA – Dr Carlyle, nós queríamos retomar um pouco a sua experiência no Chile. Na altura dos anos 60, a outra sensação que a gente tem é que de alguma maneira, Santiago do Chile funcionava como uma certa idéia de uma Meca para o pensamento desenvolvimentista. É lógico que a CEPAL tinha muita importância nisso. Mas existem outras iniciativas. O senhor ontem chamou de sistema interamericano, que é o ILPES [Instituto Latino-americano e do Caribe de Planejamento Econômico e Social], que é o Centro Latino-Americano de Demografia, que é o Centro de Planejamento em Saúde. A pergunta é: como é que era esse ambiente intelectual em Santiago do Chile assim no início dos anos 60? E como o senhor teve uma experiência bastante longa em termos de anos lá, como foi o diálogo dessa experiência, desses organismos internacionais com a evolução dos acontecimentos políticos chilenos? Temos o governo da Democracia Cristã, depois, o de [Salvador] Allende e, enfim, o regime autoritário de [Augusto] Pinochet, como que isso foi sentido por esse ambiente nas organizações internacionais em Santiago?

CM – Você fez uma pergunta que tem um significado muito particular para mim, porque eu tive uma relação não duradoura, mas longa com o Chile. E vou atrás, ainda, da Democracia Cristã. A primeira vez que estive no Chile para fazer o curso de planejamento, governava o Chile um senhor chamado [Jorge] Alessandri, que era representante da direita chilena, da direita mais direita. Então foi meu primeiro contato com o Chile. Vi esse país mudar num período de vinte anos, tão radicalmente. Foi uma experiência única na vida em minha vida. Quando eu voltei depois, já era Eduardo Frei [Montalva], da Democracia Cristã. O país estava muito mais aberto, começava aquela efervescência da candidatura de [Salvador] Allende, a disputa eleitoral da esquerda com a Democracia Cristã. A direita já tinha ficado bem mais atrás. Já não tinha possibilidades reais. Então, ver toda a efervescência política da eleição de Allende, e depois os conturbados anos da administração dele; a queda, o golpe, a direita chegar ao poder através dos militares, com [Augusto] Pinochet, a repressão, a violência. Tudo isso foi durante esse período em que eu estive no Chile. No começo o Chile sempre foi muito agradável, um país que eu adoro. É um povo que tem uma tradição européia muito forte, inclusive, o clima ajuda, mais na maneira de comportar-se, são formais etc. Mas era naquela época realmente uma ilha em termos da capacidade de criação, em relação à teoria do desenvolvimento pela presença da CEPAL, mas também, sobretudo, as duas universidades ajudavam bem. A Universidade de Chile e a Universidade Católica, hoje em dia tem várias outras, mas naquela época eram praticamente essas duas. Combinavam bem com a existência da CEPAL e a criação da FLACSO, a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Começou aí realmente o desenvolvimento do estudo da Sociologia, Antropologia Cultural e Sociologia Política. A criação do ILPES aumentou, inclusive, essa capacidade de formulação. Eu estudei no CELAD [Centro Latino-americano de Demografia] e um dos meus estudos foi sobre demografia.Tudo isso fazia do Chile uma coisa bonita da gente conviver. Tava realmente muito efervescente. Nesse começo, era quase único na América Latina, então havia muita entrada por conta dos vários cursos de desenvolvimento e planejamento do desenvolvimento, planejamento de saúde e educação. Por isso, havia um fluxo muito grande de gente de outros países, além do pessoal do Chile. Aliás, meu primeiro contato com o Chile foi através da Saúde Pública na Universidade do Chile. Já o segundo foi quando eu voltei para trabalhar. Trata-se de uma experiência única. Então esse período bonito e tranqüilo é estimulante intelectualmente, diferente do período de conturbação política, você vê como a história pode ser manipulada, dependendo da intensidade da força que se põe em determinadas circunstâncias. O golpe que derrubou Allende foi uma coisa única, de uma violência extraordinária. O nosso aqui foi uma maravilha, comparado com o que foi o Chile. É, pra dizer a vocês: as pessoas pensam que pode ser negócio de folclore político de esquerdista, não, eu vi cadáveres na rua, deixados propositadamente, matavam durante a noite, deixavam um dia inteiro expostos na rua, como lição pra que as pessoas se sentissem intimidadas, não é? E não era escondido não, era às claras, matavam mesmo e deixavam aí, e ninguém podia recolher, ficava ali como punição até o período suficiente, para que não começasse a feder muito. Foi, foi realmente uma experiência única. Essa, de minha vida, acho que o período mais instrutivo, que me ensinou mais.

FA – E as organizações internacionais ficaram intimidadas?

CM – Ah, ah, lógico! Muito, porque havia muita gente que era considerada, brasileiros, por exemplo,havia muitos que tinham imigrado, para o Chile, fugindo daqui e que tinham recebido no Chile a oportunidade de continuar vivendo. Essa gente foi toda massacrada, perseguida, e teve de desaparecer, ou fugia ou morria. A CEPAL, é lógico, que ela não foi invadida. Ela foi cercada praticamente, o prédio da CEPAL no Chile fica numa zona chamada Vitacura, numa zona muito nobre da cidade e é muito isolada, quer dizer, ela não tem um acesso, só tem um acesso, praticamente, ou quase, dois, porque tem um por detrás, mas muito fácil de isolar. Foi realmente uma pressão muito grande. A gente continuou trabalhando, mas continuou trabalhando com muito cuidado, os cuidados de ir pro trabalho, o que dizer no trabalho, o que fazer, o que escrever [riso]? Os cuidados na vida particular dentro da cidade. Já era muito difícil na época do Allende, porque o boicote econômico foi violento, então a escassez de tudo, o mercado fechado. Ele adotou políticas econômicas também para responder a isso, então o Chile ficou uma coisa, eu vou dar dois exemplos pra vocês. Você podia ir a um bom sapateiro e mandar fazer um sapato sob-medida e pagava o equivalente hoje, aqui pro exemplo, no Brasil, de uma sandália Grendene, um negócio desses, pagava uma ninharia. Você ia num restaurante e comia do bom e do melhor, com vinho, com tudo, e pagava o equivalente a um dólar. É, e eu deixei de comprar uma casa, eu morava num apartamento, mas nessa época, os ricos começaram a se apavorar, na época de Allende, e começavam a sair, queriam vender tudo. Me ofereceram, uma vez, uma casa por doze mil dólares, com piscina, com pátio, um negócio fantástico, quase mil metros quadrados de área construída, numa das áreas mais nobres, para ver como foi a coisa. Mas também você não encontrava nada para comer, pão era difícil, leite, foi uma pressão muito grande, realmente muito grande. Até o golpe.

FA – Agora, do ponto de vista do sistema interamericano, e da OPAS, isso implicou em eles investirem...

GH – De mobilizar.

FA – ... de mobilizar manter essas instituições?

CM – Não, as instituições continuaram funcionando, no ILPES, na OPAS, CEPAL, FLACSO, é, todas essas organizações internacionais tinham proteção de status diplomático. Então o governo foi cuidadoso, de não invadí-las, de não invadir fisicamente, fazia coerção aos funcionários fora, como cidadãos etc. Os que eram funcionários chilenos, esses tiveram de desaparecer, os que eram imigrados políticos de outros países, que trabalhavam, também tiveram que desaparecer, mas não por uma pressão feita dentro das instituições, senão uma pressão fora, na maneira de viver, as pessoas tinham que sair de lá pra vir pra casa, ter suas famílias, essa coisa. Então esse pessoal todo. Diminuiu, eu acho, a produção intelectual, a criatividade, mas não houve uma interrupção da atividade institucional. E nenhuma dessas organizações saiu ou mudou-se do Chile durante esse período. Continuaram lá e, depois que passou, continuaram trabalhando fazendo o que podiam. Mas mudou a capacidade de criação e até talvez a natureza da criação. Ontem não me lembrei o nome do diretor da CEPAL, cujos trabalhos tiveram uma certa importância pra mim, Raúl Prebisch. A herança de Prebisch, nessa época, ainda era muito visível na CEPAL, o pensamento cepaliano tinha feito caminho, e com base fundamentalmente no que ele criou e no que ele estimulou a criar, de gente como [Enzo] Faletto, como Celso Furtado. Essa gente, depois, à medida que foi tendo oportunidade, foi saindo do Chile, porque não se sentia bem em continuar trabalhando, ainda que não estivessem submetidos a risco de serem presos, de serem torturados, ou qualquer coisa desse tipo, uma ameaça física direta, mas não se sentiam bem de estar trabalhando num ambiente, de repressão muito forte. Então foram saindo e foi chegando outra gente que tinha outras visões, pra melhor ou pior, mas outra coisa. Então começou a mudança na maneira como a CEPAL, o mundo também estava mudando. Como sempre acontece. Mas essa foi a influência maior, não houve uma coerção física.

FA – Uma última pergunta nessa linha. A OPAS teve um papel importante na recepção de refugiados chilenos nesse período?

CM – Não.

FA – E pensando num período um pouco mais longo, com a sua presença na direção do Organismo, ela tem esse papel do ponto de vista de...

CM – Não, não, não. Até eventualmente, uma coisa ou outra, se faz um contrato, pra ajudar uma pessoa por um período curto. Mas o papel da OPAS, nesse sentido, não é significativo. Eu acho que do ponto de vista político a OPAS teve muita importância em três ou quatro..., pelo menos no tempo que eu conheço melhor. Nessa época a OPAS é dirigida por um chileno, o Abraham Horwitz, que era um tipo conservador, eu disse que era brilhante, mas era muito conservador. Ele não estava ideologicamente contrário ao que se passava no Chile. Eu nunca conversei com ele sobre isso, mas posso supor pela maneira dele pensar e essa coisa, que não estava. Era um homem correto, ele não expulsou ninguém, isso sim, a OPAS nunca fez, a OPAS nesse sentido é quase neutra, tem sido quase neutra. Agora, durante meu período nós tivemos três ou quatro situações nas quais, a posição, a função política da OPAS foi mais importante do que a de cooperação técnica. O primeiro foi com relação a Cuba. Isso já vem desde Horwitz também. Os Estados Unidos fizeram uma pressão muito grande pra Cuba ser expulsa da OPAS, assim como foi expulsa da OEA. Então, o normal seria, foi expulsa do BID, foi expulsa de todos os outros organismos interamericanos. Todos. Só não foi expulsa da OPAS. E essa é uma resistência que a OPAS, é um papel que realmente importante que a OPAS cumpriu. O segundo foi na Nicarágua. Na época do começo do regime sandinista, os EUA fez uma pressão terrível, vocês se lembram os Contras, armados, invadindo, fazendo negócio, e a OPAS teve ali, junto com o governo, assistindo, inclusive nós assumimos responsabilidade da prestação de serviço nas áreas de conflito, com risco, gente, era trabalho, gente que aceitava voluntariamente, nós aceitamos isso. Em, em El Salvador também, dentro da coisa da 'Saúde, uma Ponte para a Paz'. Em El Salvador, nós aceitamos responsabilidade de ir às áreas onde as guerrilhas tinham controle, para vacinar, para dar atenção etc, porque o governo não podia entrar. Então, essa coisa. E no Haiti, também, em duas situações, a OPAS durante o meu período, a OPAS foi administradora, praticamente assumiu a responsabilidade da administração dos serviços de saúde. Porque não havia governo, praticamente. Então nós tínhamos de fazer alguma coisa. Saindo do que era, isso com muita resistência, inclusive dos Estados Unidos, porque essa não era função da OPAS, que a OPAS, eles tinham razão, mas era uma situação de emergência, no qual a situação política era um risco fundamental para saúde da população. Então havia uma justificativa. E a maioria dos países entendeu isso. A grande maioria nos deu apoio. Mas do ponto de vista de gente, não, a OPAS contratava gente, eventualmente, gente que tava em situação de perigo, a gente podia dar um contrato de uns três meses para a pessoa, mas a entrada na OPAS não estava influenciada por isso. O sistema é bastante bom no sentido de ser neutro com relação a ideologia, de validar da capacidade.

CH – Minha questão vai retomar alguns aspectos da nossa conversa de ontem. Tentar explorar um pouco mais alguns temas que o senhor já abordou. Primeiro, é o curso de planificação em saúde no Chile, o Fernando falou um pouco agora, o senhor chegou a comentar que foi um curso público, o senhor comentou sobre as leituras que nortearam aquele curso, o senhor tem ainda alguma referência importante a fazer sobre ele? Professores? Parece-me que esse curso estava ligado à formação de, vou chamar, uma espécie de elite, que depois iria voltar pra seus países de origem. Estava ligado também à aplicação dos planos decenais. Então qual a relação que tinha esse curso com os planos decenais? Como é que funcionava o plano decenal? Como meta. Na verdade, são várias questões que eu coloco.

CM – Os cursos eram curtos no sentido de que duravam, mais ou menos, quatro meses, quatro meses e meio, uma coisa desse tipo. E o centro deles era aprender a manipular a Metodologia CENDES-OPS de Planificação, tal como se chamava. E era realmente planificação local, essa era uma das vantagens que tinha a metodologia, ela partia do planejamento em áreas, dentro do conceito de regionalização do serviço, essa área de saúde, distrito de saúde, o nome, chamavam-se áreas, na metodologia. E esse era o centro. Agora, foi dado às pessoas, no contexto do esforço de desenvolvimento que veio depois da Conferência de Punta Del Este e da Aliança para o Progresso. Então, dava um conteúdo preliminar de contexto que não era utilizado de apoio muito no planejamento, era mais ou menos, ficava como referencial apenas, na cabeça das pessoas, sobre o desenvolvimento econômico. E daí um pouco a idéia de economia, de economia política, sobretudo de macro-economia. Saber como é que possibilidades de crescimento, possibilidades de financiamento, essa coisa toda. E depois isso na metodologia mesmo não tinha cabida, porque a metodologia era muito, muito, mais restrita. Mas ficava como um background na cabeça das pessoas. A idéia era de, no curso em Santiago, formar multiplicadores, que voltassem para os países não somente para elaborar planos, mas para multiplicar a formação. Então o curso começou a ser reproduzido em muitos países, aqui mesmo no Brasil foi reproduzido duas vezes. O daqui, [David] Tejada [de Rivero] inclusive veio pra aqui um pouco para isso, no Nordeste, em vários outros lugares. E tinha cursos na Colômbia, no México, na América Central com sede na Costa Rica; no Caribe inglês, acho que nunca houve nenhum não, na Colômbia, na América, Brasil, se fez na Argentina, não ficou estabelecido, não se reproduziu, mas se fez, se fez no Paraguai, se fez no Peru, aliás o Peru ficou como um curso repetitivo também, na Escola de Saúde Pública, então, tinham em vários lugares, Venezuela também, e foi multiplicado, quer dizer, não era só o curso em Santiago, ele foi multiplicado, se formaram muita, muita gente nesse metodologia. Alguns produziram planos que ficaram na maioria dos casos como grandes documentos, grandes ou pequenos documentos, que tiveram pouca repercussão. Inclusive porque os serviços de saúde não estavam organizados em termos locais, então havia uma primeira contradição entre a metodologia e a organização dos serviços de saúde. O curso, como ele tomou por base a Venezuela e o Chile, os formuladores, partiu de realidades que não se reproduziam com muita freqüência no resto dos países. Por exemplo, o Chile tinha naquela época já um serviço nacional de saúde muito forte. Quer dizer, um setor público muito forte e bem organizado, relativamente aos outros. A Venezuela também tinha um setor público de saúde muito forte. Então o curso pressupunha que nessas áreas locais, primeiro, que havia áreas de saúde descentralizada, e que nessas áreas o setor público era dominante, quer dizer, o curso estava dirigido ao setor público. Praticamente não consideraram o setor privado. Então havia inclusive uma ideologia contrabandeada, acho que foi um contrabando que se fez, de que os serviços de saúde deveriam ser eminentemente públicos. E naquela época os Estados Unidos, não, não eram tão contrários, eram respostas que eles estavam dando, às propostas do sistema comunista, de que também podiam atender à população num regime capitalista. Então não estavam muito preocupados com essa ideologia, com esse contraponto ideológico da metodologia. Ah, isso foi a coisa. O Plano Decenal, inclusive, foi armado sem uma base muito forte nos países, quer dizer, não partiu de planos nacionais pra se armar o Plano Decenal. Foi um grupo de gente que foi reunida, e elaborou um plano de metas para a região, mas sem muita base no que estava acontecendo nos países, daí o fato de ter fracassado, ficou como referência que nunca, nunca se pôs. Mas foi uma boa, eu acho que teve seu papel, e um papel muito importante no processo de desenvolvimento dos serviços de saúde da região.

GH – Tenho uma questão, e também pegando, esse período dos anos 60, o senhor vai fazer o primeiro curso de planificação em saúde e depois vai ser professor de planejamento em saúde durante muitos anos. Quer dizer, qual era o debate naquele momento? E o que teria a ver o debate dos anos 60 com a teoria do desenvolvimento? Já estava nos anos 50, no pós-guerra sendo colocados, e, enfim, estou me lembrando aqui da Conferência do [Gunnar] Myrdal em 52, lá na Assembléia Mundial da Saúde, falando de saúde como um bem econômico. O que estava mudando nos anos 60 quando o senhor não só fez o curso, como também como professor, nessa relação entre saúde e desenvolvimento?

CM – Uma pergunta muito interessante, porque eu acho que estava acontecendo realmente uma mudança muito fundamental... Eu tinha que ensinar primeiro leitura dinâmica, não é fácil ler mil páginas por dia, não. Bom, é, é, bom se... A teoria de desenvolvimento vigente então, inclusive, a parte do discurso, na prática, como eu disse pra vocês, era muito econométrica, era economicista e econométrica. Então essa foi uma das contribuições, com todas, com todas as limitações que a gente pode falar, fazer pra Conferência de Punta Del Este, de ter posto os setores sociais como ingredientes básicos do processo de desenvolvimento. E começar a diferenciar crescimento econômico de desenvolvimento nacional. Não desenvolvimento econômico de desenvolvimento nacional. Acho que aí foi que começou realmente a discussão de diferenciar essas duas coisas. Crescimento é uma coisa, pode até ser econométrico, outra coisa, crescimento da produção física, da produção... E outra coisa é o desenvolvimento, o desenvolvimento precisa de muito outros ingredientes, que o crescimento econômico per se, sozinho, não necessariamente dá. Então começou a cair a famosa técnica do tripledown, quer dizer, digo: você cresce e automaticamente depois disso, começa a ser redistribuído, os frutos do crescimento, e então melhoram as condições de vida sem você precisar se preocupar com isso. Esta era a tese dominante até então, então começa a cair essa tese, ou pelo menos ser contestada com elementos muito firmes, quer dizer, essa coisa não ocorre, redistribuição não ocorre automaticamente, aliás a experiência histórica vem demonstrar que isso é verdade, não ocorre automaticamente, as melhorias das condições de vida da população não ocorrem automaticamente, ainda com taxas de crescimento grande, é necessário intervenções específicas, dirigidas, e o grande instrumento pra isso tem de ser o Estado. Então, essa é uma mudança grande na teoria do desenvolvimento. Nesse período se recuperou a importância do Estado, e foi talvez a época áurea do crescimento na América Latina, do desenvolvimento da América Latina, porque o reconhecimento da importância do Estado como instrumento promotor de desenvolvimento, não bastava o mercado, até que o Consenso de Washington veio e diz: “não é por aí, tem que mudar tudo”. Vamos voltar atrás nas crises de 80, que já são outras coisas. Mas esse período foi muito particular dessa discussão. E a saúde entrou nisso, então a saúde entrou nisso. Então, até então se via a saúde como um, ou uma conseqüência automática que viria do processo de crescimento, de aumento da riqueza, ou como uma atenção, como uma atividade de caráter assistencial, beneficente, que se fazia com considerações de caráter ético, porque as pessoas tinham alma, e representavam seres de Deus, uma coisa desse tipo. A partir daí começou a idéia de que não, a saúde não era simplesmente um resultado de um processo de desenvolvimento, senão que era um dos fatores necessários para que esse mesmo processo ocorresse. Então, isso foi rebatido, rebatido nos cursos nossos, essa era a tese da parte de desenvolvimento que a gente tinha, era fundamentalmente demonstrar essa tese, que é verdadeira, de que tinha de existir uma ação destinada, direta, efetiva, e não simplesmente conseqüente do resto da política econômica. Eu acho que nessa época estavam mais certos do que nós estamos hoje com respeito, pelo menos, à discussão teórica do processo de desenvolvimento. Isso, pra isso [Abraham] Horwitz foi muito importante na OPAS, porque ele defendia. Lamentavelmente, nos oito anos [Héctor] Acuña isso caiu porque não tinha altura para desenvolver esse tipo de discussão que nós retomamos depois. Aí já noutro contexto, inclusive, porque já estava começando o processo do neoliberalismo, então nós tínhamos que enfrentar. A discussão teórica era mais dura ainda, tínhamos que enfrentar os bancos, essa coisa toda. Por falar nisso, tem até um documento interessante de um colega nosso da Universidade de Campinas, que ele faz uma comparação entre as políticas defendidas pela OPAS e as do Banco Mundial, um estudo muito interessante.

GH – De quem é?

CM – Não me recordo o nome dele, eu sei que é de Campinas...

GH – Essa discussão, qual o impacto que ela teve no Brasil?

CH – Complementando, fala-se em escolas sanitárias no Brasil - campanhistas, desenvolvimentistas, sespianos -, como é que essas escolas, na verdade, interagiam com essa pauta de saúde e desenvolvimento?

CM – Nessa época já a teoria de desenvolvimento puramente cepaliana estava sendo ajustada a essas novas visões, aliás o Prebisch tinha uma visão muito próxima a isso, de forma que nós não tivemos nenhum problema de conflito entre essas tendências, não. Na OPAS como um todo, eu não saberia dizer, se eles tiveram de enfrentar problemas. Quando eu cheguei à OPAS como diretor, sim. Aí o mundo já estava mudando, já estava chegando perto a crise dos 80, tinha levado um pouco ao fracasso dos Estados, endividamento, todos esses problemas que vocês conhecem, e então já estavam sendo formuladas as novas teorias neoliberais, o Banco estava promovendo isso, então aí o conflito era evidente. Nós tínhamos que enfrentar essas coisas já de uma maneira muito direta.

FIM DA FITA 4/LADO B



Entrevista 5

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PROJETO:
HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

Data:
2 de Março 2005

Depoente:
CM - Carlyle Guerra de Macedo

Entrevistadores:
CH – Carlos Henrique Assunção Paiva
FA – Fernando Pires Alves
GH – Gilberto Hochman
JC - Janete Lima de Castro

N° da Entrevista:

Código: 5 / 5

Transcrito por:
Annabella Blyth - agosto 2005

FITA 5/LADO A

CM – A repercussão no Brasil dessa discussão teórica, é um pouco prática no início. Ela foi muito boa porque coincidiu mais ou menos com o governo [João] Goulart e Celso Furtado saía da SUDENE [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste] para ser Ministro do Planejamento. Então a idéia do Planejamento era muito forte nos planos de desenvolvimento. Isso vinha depois também de um período de crescimento áureo do Brasil com Juscelino [Kubitschek], também o planejamento era uma idéia forte, ainda que o fosse um planejamento parcial com o Plano de Metas. Mas tinha a noção de planejamento, ainda que o pensamento jusceliniano, se é que existe um pensamento, ele representou a idéia muito mais física de desenvolvimento do que qualquer outra coisa. Ele aproximava-se muito mais da preocupação com o crescimento do que com o desenvolvimento. O Celso Furtado e Goulart ficaram por um período curto. Quando entrou o Jânio [Quadros], mudaram os personagens, mas não mudou muitas as coisas. O problema é que no Brasil, por natureza, eu acho, analisando um pouco pelo conceito antropológico cultural e nós gostamos muito da polêmica, então para avançar a coisa tem que realmente adquirir uma força muito grande, passar um rolo compressor, ou ter numa visão carlyliana, não minha, mas de Thomas Carlyle, [risos] ter um herói que realmente assuma esse tipo de coisa e busque ser um super-homem de Nietzsche. Uma coisa desse tipo assim, coisa que complica com muita dificuldade, com muita raridade na história ocorre. Eu sou partidário de que isso pode ocorrer, ainda dado pelas condições históricas, mas pode ocorrer. Então as coisas vão e voltam, nós vivemos mais ou menos uma coisa assim, um movimento browniano muito acentuado, quer dizer não é um browniano suave, é um browniano que vai e sobe, fazemos tudo assim. Então as coisas não avançaram tanto no Brasil, na minha opinião. Mas a discussão sim, a discussão foi muito forte, aliás, ainda continua. Afinal, é uma coisa que nós sabemos fazer bem e que nós discutimos bem, porque somos grandes pensadores.

FA – Como essa idéia geral do planejamento é adaptada no contexto dos regimes militares? Porque eles vão fazer os planos nacionais de desenvolvimento?

CM – Isso foi uma coisa que favoreceu. Quando entram os militares, sobretudo com [João Paulo dos Reis] Velloso, um homem que acreditava no planejamento, pois eu o conheci com certa intimidade. Ainda hoje estava dizendo que ele não era um liberal típico como [Antônio] Delfim Neto. Depois veio simultaneamente com ele, o [Mario Henrique] Simonsen, um liberal muito mais... Já o Velloso era um tipo que acreditava num papel importante do Estado. Isso respondia de certo modo à ideologia militar e nacionalista do Estado brasileiro grande e forte, tal como uma potência. Então, durante um período isso teve boa recepção. Contanto que não se falasse em comunidade, participação comunitária e coisa desse tipo. Com esse governo radical não se devia dizer nada. Eles sentiam a necessidade de um Brasil potência, mas também tinham suas ideológicas. O comunismo era uma coisa rejeitada. Mas em geral, pelo menos no período de Velloso, eu acho que no Brasil se teve a oportunidade de fazer alguma coisa importante sem falar. Foi um período em que do ponto de vista da saúde, por exemplo, começou todo esse processo de transformação, que o [José] Paranaguá [de Santana] falava ontem. Isso é um pouco antes da unificação das Caixas de Assistência, depois veio o problema das Ações institucionais de saúde, o SUDS [Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde], até chegar a unificação no regime militar. Quer dizer, coisa que se pôde avançar apesar da ideologia política... Mas se você, aproveitasse as brechas nessa ideologia ou de suas razões, poderia fazer.

FA – O senhor comentou que durante a sua gestão na OPAS, os temas de saúde e desenvolvimento enfrentaram dificuldades no contexto da presença dos agentes financeiros das teorias neoliberais. Seria possível avançar um pouco mais nisso? Porque numa oportunidade o senhor comentou que saúde e o desenvolvimento eram temas estruturantes na sua gestão.

CM – Foram temas estruturantes. E mais ainda, saúde e desenvolvimento com equidade. Então a discussão sobre a equidade foi posta no centro dessa coisa. Tínhamos que enfrentarmos uma diferença fundamental com a visão do Banco Mundial. O Banco Mundial acreditava de que a saúde é importante, inclusive nessa época foi que a saúde se tornou importante para o Banco Mundial, pois era importante como uma espécie de compensação dos problemas da má distribuição da renda gerada pelo crescimento. Então eles achavam que se devia intervir para compensar as populações pobres pela exclusão que estava sendo determinadas pelas forças de mercado na geração do crescimento econômico. Então, o programa de focalização específica para compensar aquelas populações diminuía o sofrimento delas porque elas se faziam mais pobres, pelo menos relativamente, na medida em que o crescimento se dava de acordo com as regras neoliberais. Então nós enfrentávamos um problema muito forte, uma divergência ideológica que perturbava todo o tipo de cooperação que a gente podia ter. Esses programas de focalização eram feitos com uma desconfiança tremenda quanto à ação do Estado. Acreditava-se que o Estado devia se afastar dessas atividades, só devia intervir quando o setor privado e o mercado não pudessem resolver. Então, como a tese era de que o mercado ia resolver esses problemas, os programas de focalização eram promovidos fora da institucionalidade do Estado, contribuindo para que se diminuísse ou fragilizasse ainda mais os Ministérios da Saúde. Nós vínhamos da ponta da visão institucional, exatamente do lado contrário. Para gente poder fazer qualquer coisa desse tipo, nós temos que fortalecer essas instituições, independentemente de que elas tenham sido ruins, corruptas, frágeis. Sendo assim, faz–se necessário que a gente fortaleça essa arma do Estado, em representação da sociedade para poder fazer a correção desses problemas. O Banco Mundial foi muito duro. Partindo da tese fundamental, saúde não é simplesmente um produto do processo, senão que é um fator necessário para promovê-lo. Nessa época ainda estava muito recente a teoria sobre o capital social, mas sem ter a noção teórica do que é capital social. É um pouco, nesse sentido, que vai nossa tese. Não há desenvolvimento se a gente não desenvolve uma capacidade das comunidades, das sociedades articular-se perfeito, independente das forças do mercado para conduzir esse processo, inclusive em saúde. Então a saúde pode ser, inclusive, uma das nossas teses fundamentais para valorizá-la, melhor dizendo, a saúde pode ser instrumento fundamental de promover isso, quando percebida como forma de promoção de cidadania e de desenvolvimento social.

FA - O senhor saberia dizer se a tendência hoje é de superar esse embate ou de aprofundar essa divisão?

CM – Eu acho que nós estamos chegando a um outro momento de inflexão. Não no Brasil, mas em termo mundial e regionais das Américas. Estamos chegando a um momento de outra inflexão. Está provado que o neoliberalismo, a teoria neoliberal per se não vai responder todos os problemas. Não temos uma formulação substitutiva ainda. A terceira via não foi uma resposta, ainda, pelo menos não demonstrou ser uma resposta. Então, estamos naquele momento de reconhecer que há insuficiência na proposta de desenvolvimento neoliberal, macroeconômica ou nas relações comerciais e de como promover o outro. No Brasil eu acho que nós estamos no caminho de dar uma resposta melhor, pelo menos com relação à saúde na criação do SUS [Sistema Único de Saúde]. Se não mudarmos os princípios do SUS, como responsabilidade social, exercida através do Estado, na perspectiva da universalização, ainda que você admita como medidas estratégicas, em nome da equidade, determinadas focalizações, ou melhor, dizendo, tratamentos desiguais, quer dizer, dar preferência, por exemplo, aos mais expostos. Esse poderia ser talvez um caminho no Brasil. Acho que nós estamos, de todos os países, em termos de reforma sanitária, de acordo, com meu conhecimento profundo, na melhor proposta até agora. Tomando como um exemplo específico, a Colômbia nesse período de neoliberalismo é realmente um desastre. Chile também errou o caminho. Ele acabou saindo e entrando por um outro caminho. Nesse momento, ele está procurando voltar atrás. Entretanto, acho que o Brasil é quem melhor propôs, do ponto de vista da saúde, uma resposta para esse dilema. Do ponto de vista macroeconômico, ainda estamos longe de encontrar uma fórmula. Por isso, eu acho que Argentina está na frente, em certo sentido, pois permanece longe de encontrar uma resposta que não reproduza a receita neoliberal. Ou seja, que não negue a importância dos mercados, mas que assuma a importância do Estado, do setor público e da economia social. Apesar dessa dificuldade, eu acho que a Argentina está mais próxima e tomara que seja mais do que o Brasil nesse momento. Percebo que a Argentina de [Nestor] Kirchner está melhor do que o Brasil de Lula ou de [Antônio] Pallocci.

JC – Dr. Carlyle ao lado da saúde, ensino médico, o senhor comentou ontem que um outro ponto importante na sua gestão foi a gestão do conhecimento. Como é que isso se transformou em política na sua gestão?

CM – A gestão do conhecimento em si mesma é difícil de ser transformada em um programa. Em política sim, mas em um programa muito difícil. Uma vez que, ela tem que permeabilizar todas as ações de uma organização. Pois é um substrato sobre o qual você planta as outras atividades, quer dizer, a política. O objetivo era fazer com que toda a gente compreendesse que se nós não sabermos utilizar bem, não saberemos administrar corretamente o conhecimento: ou seja, é necessário que ele passe pelo processo de geração, adaptação, transformação e divisão das práticas, para que, enfim, possa ser aplicado. Se não procedermos desta forma, não realizaremos as coisas bem. Então, toda nossa iniciativa era para criarmos mecanismo, dentro de cada programa para que isso fosse realizado. Além de fortalecer, no caso da OPS, os chamados programas de ciências, de desenvolvimento científico na OPS, que sempre foram muito débeis porque a capacidade da organização é relativamente pequena. Mas a gente tentou fortalecer bastante tais programas. Nessa época havia também uma discussão muito grande sobre tecnologia apropriada, vocês se lembram? Ela vem de antes, mas era importante nesse momento. A tecnologia apropriada é uma maneira de ver a administração de conhecimento. Trata-se da forma pela qual a gente utiliza o conhecimento para responder às condições de subdesenvolvimento ou de desenvolvimento incipiente na área da saúde e em outras áreas. Então a gente abraçou essa idéia, apesar de não ter esse nome. Na verdade tivemos que renunciar um pouco. Falamos, mas não tanto de tecnologia apropriada, devido à dificuldade de definirmos o termo adequadamente; de selecionar o que é apropriado, como é e quando é. Mas é tomando as idéias básicas do poder de instrumentar, dentro de cada programa a política geral de que conhecimento é o cérebro, que procuramos transferir a tecnologia apropriada para os países. Isso é muito mais difícil, porque é realmente uma indigência o problema de desenvolvimento científico na maior parte da área da saúde na região das Américas, sobretudo na América Latina. Vocês lembram de um documentozinho do [Alberto] Pellegrini [Filho], sobre como é o não-sei-quê da ciência, pró-ciência, em prol da ciência? É um documento interessante. Ele está na Fundação Oswaldo Cruz?

GH – Está, embora eu não o tenha visto no campus.

CM – Eu tenho a impressão de que ele estava voltando para se integrar a vocês? O Pellegrini escreveu esse documento que reflete um pouco essas preocupações. Foi bem depois de minha saída. Quando eu levei o Pelé [Alberto Pellegrini Filho] para lá, a idéia era de que ajudasse nessa coisa. Ele põe, um pouco nesse documento, o resultado da experiência, não somente a constatação da situação que a gente encontrou e o que ainda existe, senão como eram os caminhos pra sair nessa coisa do desenvolvimento da capacidade de criação científica nos países da América Latina. No conjunto, a proposição era administrar bem o conhecimento, de forma que ele fosse permeabilizado em todas ações da organização. Cada vez que a gente fosse formular um programa, pensa nisso, tal como o problema de gênero, do direito da mulher, eu transformava, de modo direto, num problema de gênero, e não numa bandeira de libertação feminina. Você pode ver que as condições de gênero estão facilitando, dificultando ou tendo conseqüências que você não quer. Tenta-se resolver o problema botando mais mulher aqui, acolá, bota não sei quê, bota negócio, faça isso. No final das contas, isso vai resolver o problema de uma, duas, três, cinco ou dez mulheres, mas não vai resolver o problema do gênero feminino como um todo e nem das diferenças de gênero que temos na sociedade.

JC – Só para esclarecer um pouco essa questão, o senhor falou em tecnologia apropriada, quais eram as bases dessa discussão?

CM – Esse era um projeto que saiu muito das Nações Unidas, pelo PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], fez primeiro, e a OMS [Organização Mundial de Saúde] comprou. Teve muitos outros textos importantes. Nessa época se escreveu bastante sobre isso. A idéia era de que a tecnologia, a ciência aplicada à prática como tecnologia, tinha de ser adequada às condições na qual se aplicava, quer dizer, adequar-se a realidades de insuficiência de recurso, de pobreza, de condições culturais e de distâncias. Então você não podia transferir uma tecnologia de não sei aonde e simplesmente implantá-la aqui, até se podia fazer, mas ciente de que isso poderia ter resultados negativos muito maiores do que positivos. Então é daí que provinha a idéia de buscar de tecnologia apropriada. Depois abandonamos um pouco esse discurso porque começou a ter uma conotação do apropriado como simples. Então a tecnologia apropriada era a tecnologia simplificada, passava-se a falar no problema de uma tecnologia para pobre. Isso começou a ser muito feio, ao contrário da idéia de equidade, porque começou a ser discriminatório, tal como estava acontecendo, de certa maneira, com a atenção primária. Por isso a gente renunciou um pouco à linguagem da tecnologia apropriada para falar mais em administração de conhecimento, de uma maneira geral. Dessa forma, percebia-se que em determinados momentos você precisava adaptar, mas isso não significava que você vai querer, para os povos pobres, as tecnologias mais simples só porque são baratas. Isso não significa discriminá-las.


FA – Em relação aos programas editoriais envoltos nessa discussão. Eu estava pensando no que o senhor falou, num certo sentido, sobre a idéia do conhecimento na sua complexidade atualizada. Vejo que essa discussão, na verdade, recupera um pouco a direção quase que central da própria missão da OPAS diante da idéia de cooperação técnica, em sua essência, na construção do organismo na sua versão dos anos 60. Esse tema também estava aparecendo como um dos temas em que a diferença entre os países desenvolvidos e não desenvolvidos precisava ser.... Os gaps precisavam ser preenchidos exatamente com a possibilidade de melhorar o fluxo e a produção de conhecimento, não é isso? E a Organização teve ações importantes nessa época, uma delas era, por exemplo, no que concerne à comunicação científica, a exemplo da ação da BIREME, como a geração de programas de livros-textos e do próprio programa editorial da OPAS. Então, gostaria que o senhor comentasse, a luz de sua experiência como diretor da OPAS, sobre esses programas editoriais nos quais a OPAS já tem uma tradição de algumas décadas de desenvolvimento?

CM – Não tenho muito a comentar além do que você já disse. Você resumiu bem a visão que a gente tinha da gestão do conhecimento como cerne da própria missão da Organização, mas mais do que isso, como estratégia fundamental para que essa missão pudesse ser cumprida, e podia ser cumprida através desse tipo de programa. Mas isso é uma parte do programa, você faz aquela parte da difusão do conhecimento mais do que da criação e da aplicação do conhecimento, mas é uma parte importante. Eu quero insistir na idéia da administração do conhecimento como base sobre o qual podemos programar todas as atividades dos programas. Eu vou dar dois exemplos, de coisas que aconteceram e que creio que foram importantes durante esse período. Uma delas, eu adiciono àquelas duas que eu mencionei a vez passada como muito importantes na minha gestão: como você vê e utiliza a tecnologia? Até o começo da década de 80, você tinha, e não é de agora, alguém do final do século passado, de todas as escolas americanas, você tinha um conhecimento epidemiológico, o método epidemiológico muito desenvolvido, mas você utilizava a epidemiologia como uma coisa muito pouco, para conter enfermidade, ver distribuição de enfermidade, estudar isso, e sobretudo enfermidades transmissíveis, como base isso. Então quando a gente propõe o conhecimento como central na reformulação ou formulação dos programas de cooperação da Organização, uma área que eu chamo atenção para isso, é o que estão fazendo com a tecnologia? A tecnologia não pode ser uma coisa pobre, de simplesmente vigiar a ocorrência de enfermidades e vacinar de alerta. Ela precisa ser uma coisa mais ampla, de utilização de método epidemiológico para administração dos serviços de saúde, planejamento e etc. E a gente convoca uma Conferência em Buenos Aires na qual se faz uma discussão muito crítica dos usos da epidemiologia e terminando com a publicação de um livro que eu creio que é realmente importantíssimo sobre a epidemiologia e como utilizá-la. Isso mostra como essa tese da administração do conhecimento, pode ser que muita gente que participou desse esforço de revisão dos usos da epidemiologia em saúde não tenha percebido, não, mas foi fruto desse tipo de proposição. Você modifica a maneira de como você vê tudo que você tem que fazer numa área fundamental para a saúde pública como é a epidemiologia. Porque a epidemiologia é central, a ciência ou a disciplina central para a saúde pública. Outra coisa que nós não chegamos a completar, mas continuando essa discussão, revisar o próprio conceito e a própria prática da saúde pública. O que é a saúde pública, como é que ela se expressa, como ela pode ser desenvolvida, dentro dessa discussão, nas duas vertentes inclusive, tanto do conhecimento como da saúde no desenvolvimento. Se nossa tese de que o Estado tem uma posição importante no processo de desenvolvimento e a saúde é uma das áreas fundamentais, inclusive porque a natureza dos bens da saúde não respondem tão bem às condições de mercado, sabe todas aquelas coisas, então nós tínhamos que revisar o que entendemos por saúde pública, pra poder trabalhar com a saúde pública. E essa foi uma discussão importante que a gente conduziu e que depois, inclusive continuou. Recentemente se publicou um livro, participei dele, sobre saúde pública nas Américas, mas essa é uma coisa importante. Então esse é um exemplo de como essa tese central de conhecimento é muito importante junto com a de saúde e desenvolvimento.

CH – Há poucos trabalhos produzidos sobre a relação entre as chamadas escolas sanitárias brasileiras: campanhistas, sespianos, desenvolvimentistas. Penso na trajetória de um Mario Magalhães, por exemplo, e outras figuras atuantes nos anos 50 e 60. Enfim, para um observador pouco íntimo com o tema, campanhistas, desenvolvimentistas e sespianos parecem estar falando, sem muitas diferenças, sobre a relação entre desenvolvimento e saúde. Mas esses diferentes atores estão falando de forma não consensual, embora, aparentemente, estejam falando a mesma coisa. Me parece que a saúde é, neste momento, um campo marcado por ideologias, paixões ideológicas, embora sob um verniz tecnicista. Até que ponto essa premissa “saúde e desenvolvimento” ela foi ponto de rupturas e dissensos? De que forma foi resignificada ou conduzida por estes diferentes grupos?

CM – Eu acho que não tem muito para chegar a consenso. Consenso não existe. E nem vai existir nunca, na minha opinião. Não acredito que tenha sido motivo de dissenso, mas foi um tanto pra que esse dissenso se manifestasse. Tem muitas interpretações de saúde no desenvolvimento. Não há dúvida nenhuma. E boa parte desse dissenso, dessas diferentes interpretações, vêm disso que você falou, eu quero utilizar a palavra, porque tem que ela tem um significado importantíssimo, ideologismos. Não ideologia. Ideologismos. Tem um livro de um senhor chamado Clodomiro de Almeida, chileno também, foi um dos ministros de [Salvador] Allende, que ele fala sobre ideologismos e elabora sobre a diferença disso. O ideologismo é um encasilhamento, encasilhamento é uma palavra espanhola, um fechamento da idéia dentro de determinadas concepções apriorísticas que não foram demonstradas e nem precisam, de acordo com os que defendem, serem demonstradas. E aquilo passa a ser uma verdade pra cada pessoa ainda que seja a maior falsidade do mundo. Por exemplo, leva a discussões estéreis. Por exemplo, de quando se trata de focalização. Como focalização foi promovida pelo Banco Mundial, inclusive como um ideologismo, um mecanismo de compensação para essa discussão, passou a ser uma coisa ruim. Então quando você fala em focalização: “não, uma porcaria, esse negócio!” E, não necessariamente é assim, você pode ter, a focalização, pode ser muito boa, se ela é feita com o intuito de equidade, como caminho pra isso. Essa discussão toda sobre saúde e desenvolvimento está padecendo desse tipo de visão. E a ideologia pode vir de muita coisa, já é outra discussão. Eu nunca pessoalmente dei muita importância a essas escolas, nunca me senti filiado a nenhuma delas. Coisa de caráter pessoal, de procurar ter uma mente mais livre possível, lógico que nunca ninguém tem uma mente completamente livre, nós somos nós, nossa circunstância, já dizia nosso amigo espanhol, mas procurar ser o mais livre possível, e de cada uma dessas formulações ver o que elas têm de verdade, que cada uma tem mais, menos etc, tem alguma coisa de verdade. E conduzir uma discussão dessa coisa. Minha contribuição nesse sentido para o bem da OPS, eu acho, que se expressou, fundamente, do ponto de vista teórico, do ponto de vista político, nos pequenos artigos que eu escrevia no boletim da Organização, em cada volume, em cada boletim, eu escrevia uma coisa sobre um tema qualquer. “Saúde e desenvolvimento” mereceu bastante minha atenção. Eu achava que era uma forma, depois Allende deixou de fazer isso e, aliás, teve condições de fazê-lo, e eu acho que era importante, porque ali se refletia o pensamento do diretor, na função de diretor, que a gente pensava sobre um tema atual naquele momento. São textos curtos, mas repetidos, que queriam, durante quantos anos, durante oito anos, todo mês tinha, tem uns cem desses artigos aí. Se eu tenho a coletânea, eu vou passar pra vocês, emprestado [risos] Ainda não vou doar (risos). Ontem eu estava procurando...

FA – O discurso.

CM – O discurso, que eu não encontrei ainda, mas vi esse volume, desses textos, que era uma espécie de... não era bem um editorial, mas era uma posição, a posição do diretor da Organização com respeito a um tema do momento, utilizando principalmente a revista da Organização pra difundir isso. Acho que esse era um papel que a gente tinha que cumprir. Mas é, isso vai continuar existindo. Às vezes chega a constituir o que se chama escola, outras vezes não. Com o SESP [Serviço Especial de Saúde Pública] eu tive uma relação propriamente histórica. Primeiro...

FIM DA FITA 5/LADO A

FITA 5/LADO B

CM – E eles, como eu disse antes, eles tentaram me levar pra lá, no começo, não sei se para me deixar lá numa cidadezinha do interior [riso], mas de qualquer maneira, tentaram. Mas quando eu me fiz Secretário de Saúde do Estado do Piauí encontrei o SESP atuando lá. Aliás, no interior eram praticamente os dois únicos serviços que existiam. Tinham dezesseis unidades, entre unidades mistas e unidades ambulatórias. Minha relação com eles toda, apesar de achar que eles estavam fazendo um trabalho muito bom, mas era um trabalho que tinha, por sua formulação, por sua ideologia, um defeito básico. Ele era restritivo em termos de cobertura. Eles tinham normas de atendimento que restringiam o acesso e restringiam o que eles tinham que fazer. Então, entravam numa discussão, eu disse: “não, nós pensamos que todo mundo tem direito”. O problema, que é o direito à saúde, um direito essencial do ser humano que está também nessa discussão do desenvolvimento. Se a gente não parte desse tipo de coisa, termina se perdendo. Nós não podemos fazer isso. Nós temos, ainda que diminua algo da qualidade, o que não é desejado, mas aí está tudo, inclusive assume essa possibilidade, eu tenho de fazer que esse acesso seja livre, seja com fundo universal, ainda que não tenha capacidade de atender, mas pelo menos em termos de direito, temos que fazer isso. E resultado: o Estado do Piauí, pobre como era, começando com a Secretaria, que era uma porcaria, no final de minha administração nós tínhamos tomado todas as unidades do SESP. E o SESP estava fora do Estado. Porque era incompatível, uma filosofia de atuação que eles tinham com a filosofia de que nós queríamos implantar, ainda que não podíamos, não tínhamos meio, mas vamos fazer tanto quanto a gente possa.

GH – Como é que o senhor identifica a sobrevivência - o SESP é de 42, o Acordo do Departamento de Estado - como é que sobreviveu tanto tempo com tantos problemas, até 1970?

CM – Eu acho, pela ausência de outra...

GH – De outras.

GH – De ouras coisas, então eles eram, não existia outra coisa, eles eram o que existia, e um financiamento mais ou menos seguro. Então eles lá fazendo aquelas coisinhas, mas não, eram os únicos, não tinha outra coisa, o resto do Estado, ou o Estado mesmo, porque o SESP mesmo nem se podia dizer que era o Estado, o Estado estava ausente, então foi sobrevivendo. Até que chegou uma concepção, de um movimento de que não dá pra continuar. Então você tem que terminar. Lá no Piauí nós terminamos, tranqüilamente, com toda coisa. Ah! Vai perder o dinheiro do SESP! O que é que eu vou fazer? Realmente, eles retiraram o dinheiro, quando eu assumi as unidades, eles retiraram tudo, não davam nada, o Estado tinha de assumir com o pouquinho que tinha da maneira que pudesse. Eu tenho que chegar, naquela época era cento e catorze município no Piauí, eu tenho que chegar a todos os cento e catorze. Com o que seja, tenho que chegar. Cheguei.

JC – Preferiu ser Secretário do Piauí ou...

CM – Ou diretor da OPAS?

JC – Ou diretor da OPAS?

FA – Ótima pergunta.

CM – Não, não, é coisa diferente. Secretário do Piauí, sobretudo naquela época, as funções políticas eram relativamente pequenas. Primeiro, estava num regime de força, governo ditatorial, essa coisa toda, então a política tinha uma vigência relativamente pequena. Então, a grande coisa era como fazer, como levar o pouquinho que o Estado pudesse ter, até as pessoas. Então era muito estimulante, porque você não estava parado tempo nenhum, você estava lá de camisa, não tinha tênis naquela época, de alpercata mesmo, trabalhando, botando, fazendo, adulando, discutindo, era um negócio de dezoito horas por dia, coisa desse tipo, sete dias da semana. Na OPAS eu trabalhei, eu sempre fui um trabalhador, a contra gosto, porque realmente o que eu gosto é de não fazer nada, [risos] não vou fazer somente o que eu gosto, cuidar de flor, ler, ouvir música, essas coisas todas, até televisão, mas sempre fui visto como um tipo viciado em trabalho, que na realidade não era. O que era é um... sempre fui muito disciplinado, forçado em indolência natural, na OPAS também trabalhava oitenta horas por semana, mas é outra coisa, longe da realidade, outra coisa, já muito diferente. Muito mais gratificante do Piauí, não é? E antes do Piauí, essa experiência do Maranhão. Aquilo era pioneiro, fazer, nada, jovem, também tinha toda, toda, a energia da juventude. Mas você também, um lugar onde não tinha nada, nada, nada, nada, nada, nada, chegar com alguma coisa, não é? Isso é uma maravilha. É uma oportunidade única.

CH – Dr. Carlyle, há pouco o senhor estava falando que, no final dos anos 60, vocês estavam se perguntando ou reformulando o que é a saúde publica. Mas ao mesmo tempo, eu acho que já estava se...

CM – Não, isso foi um pouco mais adiante. Já nos anos 90, ou a partir de 80, segunda metade dos 80.

CH – Muito bem, então pari passu a tudo isso, surgiu um novo campo que é a saúde coletiva, não é?. Algo, em certo sentido, em oposição à Saúde Pública clássica. O que seria a Saúde Coletiva? Naquela época, o que vocês imaginavam, idealizavam, como um campo...

CM – Eu retiro a expressão em oposição, a oposição era só no nome, na realidade a saúde pública tal como ela é conceitualizada depois se identifica com a saúde coletiva. O problema de saúde coletiva mais era só de nome naquele momento pra expressar algo que a saúde pública convencional não, não, expressava. Então o problema é todo esse, a saúde coletiva é a saúde da população, a saúde das comunidades, é você ver o ser como indivíduo, você não ignora o indivíduo, mas vê o indivíduo imerso no seu contexto, no seu meio e como parte de uma comunidade à qual ele pertence. Então você não pensa somente na saúde individual, nunca, você pensa, ainda quando você faça uma coisa individual típica de pessoal, você está pensando na saúde de toda a comunidade, de toda a coletividade, no final, na saúde da população. Essa é grande, a grande coisa. E não existe oposição, porque como se sabe, uma das discussões estéreis que durante muito tempo se teve, e que ainda hoje, é a oposição entre saúde pública e saúde individual, atenção médica, não é? Então é uma discussão besta, porque não, não por isso, a partir dessa concepção, você tem atenção médica como parte da saúde pública, você tem que ter atenção médica, é necessária, é absolutamente necessária, então, essas coisas que a gente tentava ver que não é assim, essas falsas oposições não conduzem a nada. Então o termo saúde coletiva surgiu exatamente pra preencher uma tecnologia que na época era insatisfatória. Mas se você recupera o conceito de saúde pública, no sentido da saúde das populações, ela passa a ser sinônimo da saúde coletiva.

JC - E aí, trazendo um pouco para área que nos interessa, o que significou essa mudança do ponto de vista da formação de recursos humanos?

CM – Ah, muito. Você trazer a visão da saúde pública como saúde das populações, essencialmente isso, isto tem uma quantidade de repercussões. Uma das mais importantes, aliás, duas das mais importantes, é reconhecer a importância da responsabilidade do Estado com a saúde, de maneira geral, não da saúde pública tradicional, mas da saúde como uma maneira geral, e segundo, que a saúde pública somente se realiza em sua plenitude quando ela é assumida pela própria população. E aí significa participação, cidadania, capital social. Então você passa a ter um trabalhador de saúde que ele tem que ser excelente em termos de exercício de suas atividades técnicas específicas, mas ele tem que saber entender o papel dessas atividades típicas, técnicas específicas, num contexto bem maior, se não ele não chega lá. Ele pode fazer tudo muito bem, e terminar não produzindo o que poderia produzir. Sempre vai ter algum benefício, mas não vai ter produzido tudo o que poderia ter produzido. Então, a formação de recursos humanos, inclusive em saúde pública, passa a ser uma coisa muito diferente, multidisciplinar, todas essas coisas que a gente tem, adquire sentido. Você parte de um conceito que dá sentido a formulações que antes você fazia talvez até por sentido, bom senso, mas sem ter a base conceitual justificativa, conceitual pra justificá-las.

JC – Em 98, o senhor estava na OPAS...

CM – Estava cuidando de rosas...

JC – Cuidando de rosas, em 98 tem uma reunião novamente em Santiago do Chile, onde foi criada a rede de observatórios de recursos humanos.

CM – Recursos Humanos.

JC – A gente, identificando nos documentos, observou que Santiago do Chile aparece muito, pra gente pensar que ele aparece mais do que outros países....

CM – Não, tem uma razão histórica, Janete. O Chile foi o primeiro país da América Latina que realmente organizou um serviço nacional de saúde integrado, não era único no mundo, mas é de lá pra cá. Isso foi na época, no começo, acho que no final da década de 30, 38, 39, não me lembro bem a data, mas por aí, antes da Guerra. Inclusive com Allende, Allende era Ministro da Saúde nessa época. Então se criou, depois não se criou, nesse momento, o serviço já com o nome, veio um pouco mais tarde, depois da Guerra, mas aí vem essa experiência, essa de saúde foi apanágio durante muito tempo, foi uma espécie de modelo que a gente olhava e ficava com inveja, o resto dos países, porque ninguém tinha, até a revolução cubana que criaram, mas já noutro contexto, num processo revolucionário, essa coisa toda. Então o Chile criou a Escola de Salubridade do Chile, também foi uma das pioneiras como escola de saúde pública. Durante muito tempo, praticamente era ela e a de São Paulo, a do México, a do México era pobre, a de Porto Rico é que teve alguma importância, praticamente eram as únicas que existiam, e a de salubridade do Chile com muito mais prestígio. Então, por essas razões históricas, o Chile acumulou uma quantidade de coisas, que ainda depois que se mudou, que o sistema nacional de saúde foi subvertido, foi feita uma quantidade de mudanças não sempre muito adequadas. O Chile continuou tendo assim uma certa simpatia pelos trabalhadores de saúde pública regionais. Então sempre se pensa lá, agora muito menos, porque muitos outros países cresceram, criaram coisas, então já se distribui melhor. Mas antes Chile era, não só a CEPAL, também lá criando o pensamento Cepaliano. Conduziu, isso tudo na época que não existia, se lembra que nessa época praticamente as Universidades Latino-Americanas, Economia era um negócio, não existia instituto de estudo, não existia nada. O Chile praticamente tinha o monopólio dessas coisas. Hoje já está mais, está melhor.

JC – A segunda pergunta é o senhor tem acompanhado esse processo da construção daquele observatório na OPAS, o que representa pra OPAS...?

CM – Muito superficialmente, confesso, né, eu disse ontem, eu gosto muito do [Pedro] Brito, aquele que está assumindo, acho o Brito um cara muito capaz, muito criativo, mas eu tenho acompanhado muito superficialmente. De vez em quando recebo um papelzinho, leio algo, mas não tenho informação detalhada sobre isso.

GH – É uma questão que fiquei pensando em relação à Alma Ata, “Saúde para Todos no Ano 2000”. Quem sabe o Brasil não compareceu à Conferência, ela é um marco importante, a idéia de saúde pra todos. O senhor vai pegar exatamente, em sua gestão na OPAS, esse movimento. Qual foi o impacto? Nós entrevistamos há um ano e meio o [Halfdan] Mahler, quando ele veio aqui por conta exatamente dos vinte e cinco anos de Alma Ata. Qual foi o impacto da Declaração, quer dizer, dessa proposição de Saúde para Todos, como é que isso movimentou a sua administração?

CM – Isso foi um pouco antes de eu chegar como diretor, um tanto antes. Mas teve um impacto muito grande mundial, e lógico na região das Américas também muito grande. Nós nas Américas sempre pensamos de que nós fomos pioneiros nesse tipo de formulação, inclusive na prática concreta, não na discussão teórica somente. Venezuela teve um serviço de atenção primária, ainda que não usasse esse nome, muitos anos antes de Alma Ata. E bem organizado, de certa maneira, bem regulamentado. O próprio Chile com o Sistema Nacional de Saúde tinha uma rede básica de atenção bem desenvolvida, então tinha uma experiência na região das Américas interessante. De certa maneira fomos... David Tejada, inclusive, que foi o homem de Mahler na organização de Alma Ata, levou esse tipo de experiência. A região das Américas influiu muito nessa coisa. Mas tanto a “Saúde para Todos” e Alma Ata, digo, são duas coisas que se complementam, “Saúde para Todos” é objetivo, enquanto Alma Ata é estratégia pra alcançar o objetivo, tiveram impacto fundamental. Agora, eu penso que de uma maneira geral, e aí vou dizer uma coisa que sei que muitos amigos meu pensam, inclusive Mahler, que eu estou equivocado, de que certa maneira isso fracassou. Fracassou em termos relativos. Teve impacto muito grande, influenciou muito, ainda hoje tem impacto muito grande, influência muito na organização do serviço, mas fracassou porque começaram a ter interpretações, inclusive, da própria Organização Mundial da Saúde, e eventualmente de muita gente da própria OPAS, sobre o que significava atenção primária à saúde. Outra vez aquela coisa relativa à tecnologia apropriada. Começaram interpretações de que atenção primária era fazer serviços simples para atender os excluídos, os marginalizados, quer dizer, era uma coisa de pobre, para pobre. Quando na realidade talvez os países do centro tenham sido beneficiados mais dessa população do que os países da periferia. Porque no fundo a estratégia de atenção primária é um processo de estratégia de transformação do sistema de saúde. Já devia ter informado todas as reformas de sistema de saúde que se fizeram depois. A influência do Banco Mundial nesse sentido foi muito ruim, muito deletéria, muito nociva, porque eles abandonaram essa coisa, abandonaram o conceito de saúde pública, abandonaram o conceito, abandonaram não, eles nunca adotaram, apesar de haver um discurso do presidente de que eu assinaria embaixo. Mas fica no discurso dele, na execução cá embaixo... Tem um discurso mesmo que é ontológico, que ele diz a outra, como é que ele chama, “A outra”, 'O outro desafio', quando ele fala do problema do crescimento, e aí diz o grande desafio é a pobreza e a exclusão, então a gente tem que criar meios de incluir gente e de eliminar a pobreza. Mas isso nunca se transformou realmente em coisa concreta. E nesse caso da atenção primária eles nunca realmente adotaram a estratégia como ela deve. Então eu acho que de certa maneira houve um relativo fracasso. É uma estratégia ainda muito poderosa, eu ainda acredito na validade, se a gente entende bem, das coisas, mas, não teve a aplicação que poderia ter tido. Mahler, de certa maneira, eu disse pra ele aqui e tinha dito antes, foi responsável, porque ele não teve a grandeza, ou a sabedoria, melhor sabedoria que grandeza, a sabedoria de ter um sucessor que pudesse compreender essa proposição como ele compreendia. Mahler é brilhante, mas Nakajima teve muito, muito abaixo, nunca compreendeu isso, então a OMS perdeu liderança, não soube conduzir o processo depois de Mahler.

GH – Agora as ações da OPS, suas ações no sentido da atenção...

CM – Não, teve muitas, quando a atenção primária é aprovada pela Assembléia Mundial de Saúde, como estratégia pra Saúde para Todos, já na região das Américas tinha toda uma política definida em termos de extensão de cobertura. E, se você lê os documentos informativos, antes de mim, inclusive, sobre a extensão de cobertura, coincide muito com as propostas que depois vieram com “Saúde para Todos” e atenção primária de saúde. Então, na região das Américas isso vem exatamente fortalecer algo que já estava acontecendo. Então a Organização se esforçou, nem sempre teve êxito, nem sempre teve sucesso, mas se esforçou muito de conduzir esses processos, conduzir não, de influenciar os processos de reforma, tendo como base a atenção primária. Essa foi uma das lutas que nós tivemos com o Banco Mundial. Lógico que nós perdemos a maioria delas, sem dúvida nenhuma. Você chega com palavras...

GH – Deixa eu entender. Perder para o Banco Mundial é perder financiamento, é não ter financiamento.

CM – Não, perder as decisões dos governos, por causa do financiamento, não é? Que é das coisas mais absurdas do mundo, porque o financiamento do Banco Mundial não é nada grátis, é um empréstimo que os países têm que pagar. Então os países nunca entenderam isso. Pensam que ele ajuda, porque só vêem a coisa no curto prazo. Então recebem aquilo, usam...

GH – Quem paga é lá na frente...

CM – Quem paga lá na frente, essa é a deformação. Então o Banco Mundial chega oferecendo não sei quanto milhões, dezenas, centenas de milhões de dólares, e nós chegamos com a conversa, com o papo, então não tem pra onde. Mesmo quando alguns dos Ministérios da Saúde estavam do nosso lado, a área econômica forçava a adoção de outra coisa. Então na maioria dos casos nós perdemos. Perdemos pelo menos no tempo, não é? Ao longo do tempo vamos terminar ganhando, termina vendo a racionalidade das medidas tomadas.

GH – O senhor falou em equidade em função da pólio, o senhor falou sobre o programa de imunização, como é, de certa maneira, há a integração entre a idéia de atenção básica etc, e um programa de imunização? Tanto nacionais quanto internacionais...

CM – Campanha.

GH – Claro que a questão é mais complexa, mas como é que é viver exatamente, quer dizer, tentar horizontalizar, incluir etc, e um outro, que é muito importante também, entre aspas, separadamente, como campanha etc? Na verdade, Alma Ata era uma crítica exatamente ...

CM – Do ponto de vista, inclusive conceitual, isso nós discutimos, quando cheguei em 83 na Organização, essa discussão estava sobre a mesa. Eu cheguei já com uma daquelas verdades que você chega, então, [risos] mas era uma verdade que tinha alguns fundamentos. Eu digo, eu não tenho esse tipo de problema. Por exemplo, primeiro, se eu quero erradicar a poliomielite, eu não posso esperar que se faça através de vacinação de rotina, porque até que eu consiga uma cobertura adequada, útil, com vacinação de rotina, (riso) eu não tenho esse tempo. Então nós vamos ter que fazer em regime de campanha. Mas vamos fazer campanhas pensando de como as campanhas contribuem pra fortalecer a infra-estrutura pra vacinação de rotina. Então, essa é a formulação que tem que fazer. Não há incompatibilidade, fazemos campanha, campanha tem uma duração, tem um objetivo, uma duração determinada, mas ao mesmo tempo, entre os objetivos paralelos que ela tem, tem esse de buscar utilizar o esforço da campanha pra melhorar algumas coisas da infra-estrutura: rede de vigilância, coisas básicas. E realmente tivemos um êxito fantástico, porque, laboratórios de saúde pública, meteorologia no caso do negócio etc. Tivemos um êxito fantástico. O êxito da campanha, de resultado, de ter alcançado os objetivos, não somente da pólio, mas também em outras enfermidades, e uma infra-estrutura que saiu muito fortalecida. A quantidade de laboratórios que foram fortalecidos, para diagnóstico, para apoio à vigilância, o próprio sistema de vigilância que se criou, que depois se perdeu algo, o esforço de campanha nunca você consegue manter. Mas chegamos a ter trinta e três ou trinta e cinco mil locais de vigilância. Um esforço extraordinário. E isso ficou, quer dizer, aquela coisa de você ver e informar, notificar, e notificar tendo a capacidade de resposta para controlar as coisas. Isso ficou por aí. A rede de frio, que depois a manutenção começou a fracassar (riso), mas faz parte das coisas, dos avanços e retrocessos que um processo sempre implica. Mas, eu, fizemos até um estudo pra demonstrar isso, eu designei um grupo independente da OPS, independente das campanhas, de gente de universidade, eu digo, vamos estudar esse programa, quer dizer, se realmente as campanhas estão causando mal ao serviço em saúde. E o resultado dele é interessante, muito interessante, diz: “não, ao contrário”. Então, é daquelas coisas, que não tem... Eu não teria dúvida nenhuma tendo condições, inclusive porque no caso da pólio, minha convicção, depois os técnicos, é... mas eu com minha formação um tão pouco técnica, não há forma, do ponto de vista técnico mesmo, de você erradicar a pólio, um retrovírus que se transmite por via sobretudo de água, se você não tiver uma massa de gente imunizada, para que o vírus vacinal substitua o vírus..... Então, inclusive para, do ponto de vista técnico, de controle, você precisava campanha, você não ia conseguir isso com vacinação de rotina, você precisava vacinar em massa, para essa gente lançar contra esse vírus, esse negócio todinho. Depois a gente descobriu o mal disso, porque as vigilâncias começaram a diminuir e aí nós tivemos aparecimento do vírus derivado. Mas é problema de erro, mesmo, de eficiência. Que hoje é um dos problemas, não é? Eu faço parte ainda hoje da Comissão Global de Certificação da Erradicação da Poliomielite ao Nível Universal. [risos] Já teve não sei quantas metas e a gente, o certificado nunca, eu vou morrer e não consigo o certificado [risos] de que a coisa está acontecendo. E um dos problemas é esse do vírus derivado, como é que a gente vai tratar o problema da certificação da erradicação, enquanto a gente tiver o uso da vacina oral, produzindo o risco de que apareça vírus derivado, já apareceram vários, não é?

FA – O senhor comentou a questão da vigilância e me surgiu o tema da informação, estatísticas e informação, que de novo nos remete à discussão do planejamento e era um tema importante nos anos 60 do ponto de vista de gerar bases de informação para o planejamento a partir do investimento, inclusive treinamento e bolsas, na área de estatísticas e estatísticas vitais. Como é que para a OPAS tem sido, como um problema de infra-estrutura de informação pra gestão...?

CM – Isso sempre foi uma grande preocupação e uma grande dor de cabeça. Além de um problema difícil e quase nunca solucionado. Porque a partir do princípio de que com a administração do conhecimento era básica para a formulação de todos os programas da organização, uma das bases importantes, central para a organização, então você tinha que ter informação. Informação sobre a realidade. Se você não conhece a realidade, se você não administra conhecimento nunca, você não sabe o que você precisa, não sabe onde, como etc etc. Então uma das conseqüências, nós tínhamos que nos preocupar muito com a base de informação. A revisão da epidemiologia vem ajudar isso também, então unir o programa de informação com o uso da epidemiologia mais adequada, tudo isso do ponto de vista conceitual. Agora, como implantar, como fazer que funcione? Isso aí está ainda por ser respondido. Eu acho que melhoramos bastante no país, ainda tem realmente nos países, em cada um, chegar até lá, e esse é um. Nós temos esse processo e vai demorar ainda, vai demorar, lamentavelmente. Mas hoje estamos muito melhor do que antes, e amanhã provavelmente estaremos um pouquinho melhor do que hoje.

FA - O senhor lembra de alguma ação objetiva da OPAS pra tentar construir uma referência que encaminhasse a solução?

CM – Ah, muitas, lógico. Nós tínhamos uma unidade específica dessa área vinculada à área de informação geral, que foi dirigida pelo [?] Ferrero, no princípio, depois tiveram outra gente, [?] Castillo, tivemos gente muito boa formulando isso, há vários documentos de como deve isso funcionar, fizemos muitas reuniões sobre isso, apoiamos inclusive com recursos extras a implantação em vários países de sistemas informação básica, desde o registro até a análise, incluindo transmissão e todas essas coisas, mas a coisa é uma coisa que não aparece, é daquela coisa do trabalho que fica, que é fundamental mas fica escondida, é o alicerce que os Nayas da vida resolvem economizar nele, termina derrubando o edifício, né.

GH – Bom, queria agradecer mais uma vez a sua disponibilidade, a gente está completando cinco horas de fita...

CM – Foi um bom papo.

GH – Foi ótimo, muito bom, esperamos ter novos contatos.

FIM DA FITA 5/LADO B

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