Rede observatório. Recursos Humanos em Saúde

Estação de Trabalho OBSERVATÓRIO HISTÓRIA E SAÚDE

Entrevistas

 

CASA DE OSWALDO CRUZ

Departamento de Arq. e Documentação

Sub-setor de Arquivo Sonoro

 

SÉRIE PROGRAMAS E PROJETOS

HISTÓRIA DA COOPERAÇÃO TÉCNICA EM RECURSOS HUMANOS EM SAÚDE NO BRASIL

 

Data: 10 de março de 2010

Duração: 2h 56 min

Depoente: Tânia Celeste Matos Nunes (TC)

Entrevistadores:

Fernando A. Pires-Alves (FP)

Carlos Henrique Assunção Paiva (CH)

Transcrito por: Úrsula Farias – março 2010

 

FP- Bom, hoje é dez de março de 2010, nós estamos no Rio de Janeiro, nas dependências da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, campus de Manguinhos. Eu sou Fernando Pires-Alves. Carlos Henrique Paiva é o pesquisador que me acompanha. Nós vamos dar início a entrevista com Tânia, Tânia Celeste Nunes, no âmbito dos trabalhos do Observatório de História e Saúde. Também estão presentes Guilherme Torres, Rosana Arantes, Juliana Neves, Virginia Almeida e Luis Montenegro. Tânia, como eu havia comentado antes com você, vamos utilizar a metodologia de História Oral, História de Vida, o que envolve conversar um pouco com você e buscar as suas memórias, a partir das suas experiências familiares e aí a gente vai andando e eu acredito que a gente possa ir tornando mais viva e presentes as suas memórias profissionais, que são as que nos interessam mais diretamente. Então vamos começar, Tânia. Me fale um pouco das suas origens familiares.

 

TC- É, o que interessa mesmo, eu fico aqui procurando o foco de aproximação com isso. Eu sou de uma família de professores. Posso dizer professores porque o meu avô, que morreu muito cedo, ele era professor. Morreu quando minha mãe tinha quatro anos. Então foi realmente muito cedo, num povoado, numa cidade no interior da Bahia chamada Alagoinhas, não era uma cidade tão grande, e ele era professor nesse povoado. As filhas, minha mãe e minhas tias, também eram professoras, e professoras muito dedicadas. Então eu realmente fui educada, criada num ambiente muito propício, desde muito cedo interessada pelas questões da escola. A escola, num determinado momento, minha mãe foi trabalhar muito no interior, numa colônia de presos. E foi um sacrifício muito grande se deslocar para esse lugar, e levou a família inteira, meu pai só ia no final de semana. Nós íamos a cavalo, na época.

FP- Alagoinhas fica em que região da Bahia?

TC- Não, esse lugar era o lugar de trabalho depois de casados. Alagoinhas fica, não é litoral, é sertão, mas é norte. Já indo para o nordeste. Tudo é perto. Região de agropecuária, gado. Mas, enfim, essa foi uma primeira experiência, eu era bem pequeninha, eu tinha três anos de idade. Mas eu me lembro perfeitamente do ambiente escolar, da relação dela com aquelas crianças – na verdade não eram crianças, eram adolescentes, delinqüentes – e da relação deles com a gente, que éramos as filhas da professora. Eu e a minha irmã, um pouco mais velha.

FP – A profissão do seu pai, qual era?

TC- Meu pai era comerciante. Bom, daí nós tivemos outras experiências de convivência com esse lado professor de família. E sempre me encantou. A minha tia, irmã de minha mãe, era professora num outro povoado, de Alagoinhas, e também as férias inteiras eu passava lá com ela, porque a escola de lá parece que tinha um outro calendário. E lá eu me envolvia com a preparação de merenda escolar e algumas outras coisas. Então a minha família, quer dizer, foi muito, fui muito estimulada por essa convivência, por esse compartilhamento de idéias. Eu as via conversando, se encantando, preparando material. Coisa de preparar material, corrigir caderno. Enfim, daí seguiu.

FP- E seus estudos de primeiro e segundo grau, onde foram feitos?

TC - Então, fiz em Salvador, inicialmente num colégio privado de freiras. As freiras eram catequistas, o que significam que não eram aquelas freiras que ficam rezando, elas saiam muito pra comunidade, pra fazer trabalhos na comunidade. E eram também muito progressistas em relação à mulher, faziam festas, faziam desfile. Enfim as meninas não seriam... Era uma escola que talvez já ia absorvendo um pouco do escolanovismo, era uma escola alegre, não era uma escola chata onde só rezasse e visse negócio de pecado. Eram freiras bem …

CH- Progressistas.

TC - … interessantes. Progressistas pra época. Tinha também uma coisa de música, estimulava muito a música. Fizemos um coral e depois formamos um conjunto musical. Eu tocava violão e cantava. Eram umas sete ou oito…

CH- Sua formação é católica?

TC- É católica, é. Então o primeiro período aí vai até a segunda série do ginásio, que hoje deve corresponder à sétima série. Daí eu fui para um colégio público também muito agregador, muito festivo. Um início de uma leve decadência do ensino público, mas não era tanto, era um colégio razoável. Ainda preparava pro vestibular.

FP – A sua família toda tinha ido pra Salvador ou você foi só pra estudar?

TC- Não, nós sempre moramos em Salvador. A história de Alagoinhas foi na origem dos meus pais.

FP – Ah, tá.

TC - Do meu avô, essas coisas. Nós sempre moramos em Salvador. E aí eu estudei esse final do primeiro grau no colégio público, depois fui fazer o curso normal, que aí foi o segundo grau. Comecei ainda os dois. Eu tinha muita dúvida se eu queria só fazer o curso normal, porque o curso científico dava acesso a algumas profissões, inclusive na saúde. Mas eu optei por seguir a carreira de professora.

FP- Que era a vocação que você tinha identificado.

TC- Na verdade, Fernando, nessa idade a gente tem a vocação e tem os conselhos maternos e paternos. Nesse tempo a escola ainda possibilitava emprego imediato. Concursos públicos.... Um concurso exemplar que eu fiz, é pra ensinar em escolas públicas, mas era uma coisa que te dava uma certa segurança. A origem dos meus pais era professora primária, meu pai foi comerciante mas não dava muito dinheiro. O colégio privado que a gente estudou era um colégio razoavelmente barato, de muito boa qualidade, mas não era um colégio daqueles caríssimos, não era um Sion, então.

FP- Então você fez a escola normal aonde?

TC- Então, eu fiz a escola normal em Salvador. Em Salvador nós tínhamos duas escolas normais. Uma que é como o Instituto de Educação daqui, é uma escola muito estruturada, grande, exemplar; e a minha escola, que é da cidade baixa, digamos assim. Porque Salvador tinha, a cidade alta era até, numa escala social, tinha mais importância ainda que esse colégio ficasse no intermediário, num bairro chamado Barbalho, e fica entre os grã-finos e a cidade baixa que era onde eu morava, mais beira de praia. E nessa península de Catagipe que é onde eu morei e onde os colégios públicos que eu estudei se localizavam. Nessa península tinha também o colégio normal, excelente.

FP- Lembra do nome dessas duas escolas?

TC - Colégio Alípio Franca, claro Fernando, e o outro Colégio João Florêncio Gomes. E o primeiro, Colégio Bom Jesus, o outro que estudei desde o Jardim de Infância. Já naquela época. Mas era montessoriano, não sei. Então, tem uma raiz interessante que vai combinando com coisa que vai levando a uma certa vocação construída, eu diria assim, pela convivência e também pelas opções que fui fazendo na formação.

CH- Ainda a respeito da família, irmãos?

TC – É, meus irmãos , eu tinha quatro, eu tive cinco irmãos, uma morreu muito cedo, ela tinha um ano a menos que eu. A outra irmã também era professora, depois fez pedagogia, quis aprofundar um perfil pedagógico mesmo. Os irmãos, administradores, era o mais velho e o mais moço, e eu. Então na verdade somos cinco. Aí Leila, uma engenheira, que correu, correu e agora está fazendo doutorado. [risos] Está trabalhando com Educação à distância. Então assim, a família muito... E o administrador mais novo, o mais velho já faleceu, ele trabalha no SENAI [Serviço Nacional de Aprendizagem Nacional]. Então ele também é muito, muito encantado com as questões ligadas a educação, de formação profissional.

FP- Você conclui o normal e logo em seguida presta concurso pra professor, professora?

TC- Sim. Antes disso, Fernando, eu queria falar do curso normal. Esse contexto do curso normal, eu me formei em 1967. Então a gente convive no curso normal com o período da ditadura, onde a gente fazia algumas opções. E o meu colégio, esse colégio que eu fazia o segundo grau, era um colégio muito sociável internamente. Para vocês entenderem eram duas turmas de cada série, era tão pequeno que ele tinha duas turmas de primeiro anos, duas turmas de segundo anos, duas turmas de terceiro ano. E nós fazíamos muitos eventos entre nós. Nós mesmos que organizávamos. O único evento que tinha organizado pela própria escola, mesmo que era muito organizador de bons profissionais. E eu estou insistindo de falar nisso porque eu acho que tem bases dessa discussão que vale a pena a gente problematizar em projetos que a gente trabalha hoje reestruturando melhor as escolas ou as redes de escola. E nesse, era a semana do livro baiano. Na verdade já um certo sentimento de que os jovens precisavam se encantar mais pela leitura e o diretor da escola, esse diretor foi nosso paraninfo, então ele criou a Semana do Livro Baiano e criou primeiro no Colégio Alípio Franca, nosso pequenininho, não foi lá no grande, não foi no outro, foi nosso. E se espalhou depois para todas as escolas de Salvador. E nós, alunos, nos envolvemos com a montagem disso e inscrevemos trabalhos. Eu tenho dois títulos, dois prêmios desse período, faço questão de constar sempre no meu currículo, de contos que eu escrevi e espero em breve voltar a este lado, mas foi muito interessante. Também fizemos um outro evento muito marcante que foi o dia de Tiradentes e eram sempre textos que - você veja, nós tínhamos o quê, 16,17 anos? - nós fazíamos os textos da peça, treinávamos a peça e no dia 21 a gente apresentava . Eu tenho, inclusive, foto desse dia da apresentação para os professores. Também misturávamos com desfile de moda na primavera, fazíamos festa de São João, eu, por exemplo, marquei uma quadrilha de São João. Então era assim uma escola que tinha muitas oportunidades de agregação.

FP- O que significa marcar uma quadrilha de São João?

TC- É o comandante que diz os passos que os grupos devem seguir. É a grande roda, a grande roda concatenada com alguma coisa. Se você errar a sequência barafunda tudo. Mas aí era.

FP- É quadrilha mesmo?

TC – Quadrilha mesmo. [risos]

FP- Ensaiada mesmo.

TC- Ensaiada. E os ensaios é que eram bons, porque era com o Colégio Marcolino, que era um colégio da polícia que ficava perto da gente. Então foi um momento, era um colégio muito, eu acho que traduzia muito o que uma Escola Nova, aquela matéria da Escola Nova estava pregando. Eu acho que os professores estavam muito impregnados. Sem esquece de lembrar de que Anísio Teixeira era um contemporâneo desse período, ele estava jovem, ele estava implantando as escolas porque... que depois eu tive contato por outras oportunidades. Mas a Bahia, Salvador, estava impregnada por essa…

FP- Nós estamos falando de 75,76?

TC- 75 até 77.

FP- Isso incluía um movimento secundarista presente?

TC- Bom, e aí existia um engajamento dos estudantes secundaristas nas batalhas contra a ditadura. As passeatas começaram a se organizar e a gente tinha momento de pular o muro e sair, porque a escola trancava. E eu fui uma que pulei o muro para ir para a passeata. Era pesada. Teve um dia que eu passei por debaixo de uma carabina, era pequenininha, nos encurralaram atrás de um elevador, foi uma confusão. Daqui a pouco a gente já estava na região de meretriz, lá embaixo, lugar que a gente nunca entrava. Mas tinha que correr da polícia. Mas foram experiências muito estimulantes e eu tenho muita alegria de ter participado daquela forma. Também alguns castigos que, então como pulou o muro quando fui pra passeata, então não podia.

FP- Mas incluía uma militância organizada?

TC- Não tinha, Fernando, não. Nosso colégio … talvez tivesse alguém que eu não…mas a gente ia para as passeatas e em seguida veio o AI-5 [Ato Institucional número 5]. Também a gente se formou, né. Nós nos formamos e os secundaristas, professores, né, as alunas, as normalistas, tinham muitas tarefas no último ano. Então a gente tinha que fazer o flanelógrafo, a gente tinha que assumir uma turma toda nesse último ano por dois meses.

FP- Tinha que fazer o que?

TC - O flanelógrafo.

FP- Que vem a ser?

TC- Que vem a ser, para os comunicadores de grupo, vem a ser um… primeiro era o símbolo da normalista, você identificava na rua porque ele era muito grande, ou era amarelo claro, ou azul claro ou rosa claro. Por quê? Porque você preparava – nós que fazíamos - nós tínhamos aula para preparar o porta material. Na verdade era um instrumento de comunicação com os alunos e você contava a histórias, por exemplo, do Patinho Feio, e aí você tinha que colocar ali o pato grande, o Patinho Feio. As histórias projetadas ou qualquer coisa que você quisesse ensinar com conjunto ou alguma coisa assim, ela tinha flanela na imagem e o quadro era todo de flanela. Então quando você colava você ia fazendo a sequência da aula e ia evoluindo na exposição das imagens também. Isso vem antes do retroprojetor, do projetor de slides , o retroprojetor… mas era um símbolo do professor primário da década de sessenta. Para os comunicadores que são cheios de … flanelógrafo, é o nome. [risos]

(?) – Me lembra os contadores de história, mais ou menos isso, que eles vão utilizando num tapete e eles vão contando, desenvolvendo a história a partir desse momento, e vão colocando os personagens.

TC- E vai abrindo o tapete. Eu não conheço essa experiência, mas talvez seja um pouco dessa raiz. Na verdade, já era uma consciência de que a comunicação com as crianças pela exemplaridade da imagem era uma coisa importante. E era muito importante, muito. Os professores… não existia professor sem flanelógrafo. Não existia. Era como o chapeuzinho de formada que tinha aquela pontinha aqui. [risos]

FP- E o concurso? Como é que … a profissionalização como professora?

TC- Então. Nessa época as escolas públicas eram muito ascendentes, né. E se criavam, tinham uma política de expansão do ensino de primeiro grau. Segundo grau, eu não tenho conhecimento. Mas como eu disse a vocês, nós estávamos em um período de muita problematização da questão educacional. A educação na sociedade era um valor. Era um valor que, por esse caminho, se conseguiria a libertação, a estruturação de sua vida. Portanto, o professor tinha um peso, um valor e uma importância. E o estado não só reconhecia isso como induzia a valorização da escola e a contratação de professores sempre ao final do ano. As outras profissões até também faziam, esse era um tempo de que o estado estava se estruturando. Eu tinha muita convivência, por questões familiares. Meu marido era agrônomo e nesse mesmo período ele fez concurso, fez um, fez dois pro estado. Existiam concursos periódicos também para essa área. Tinha um movimento bastante interessante de ida ao campo que o Paulo Freire discute no livro “Comunicação e Extensão”. Que foi minha primeira leitura da relação, com relação com Paulo Freire, e que pra mim é um dos melhores livros dele. Mas eu faço… ele aborda a questão da agronomia, a relação do fazendo com o homem do campo e práticas e técnicas interativas, respeitando o menos educado de escola. Enfim, valorizando o trabalhador rural, o camponês. Enfim, a nossa área estruturava os concursos e teve um primeiro que eu não me lembro a dimensão, mas era para o interior. Foi o primeiro oferecido depois que eu me formei. Eu passei, mas passei com a nota baixa. Era logo após a formatura de professora.

FP- Você já estava casada?

TC- Não, nesse período não. E havia um apelo, eu me lembro que minha mãe botava um radinho do meu lado, eles tinham uma aula para o concurso no rádio. E ela vinha de manhã cedo e botava o rádio na minha cabeceira, e quando ela saia do quarto eu “tum”, desligava. [risos] Eu não estudei pro concurso, mas mesmo assim eu passei. Eu estava com as coisas meio fresquinhas e passei. Em seguida, logo em seguida, veio o concurso para Salvador, esse foi um concurso rigoroso. Eu acho que ele tinha oitocentas vagas, ele tinha oito mil candidatos. Aí eu me preparei um pouco mais, né, e foi um concurso exemplar. Acho que foi a melhor experiência de concurso que eu já vi, foi esse concurso, pelas técnicas que abordou, as práticas, quinze dias de prática dentro da sala de aula, com dois professores organizando, aí você podia se mostrar com suas qualidades, seus talentos.

FP – Quinze dias de prática pros candidatos?

TC – Dentro das provas. Foi uma prova escrita, aí peneirou, saíram muitos, mas ficaram dois mil. Depois a gente teve quinze dias de prática naquele colégio grande, no Isaías Alves, e você ficava numa sala. Era uns, não sei quantos, professorandos candidatos e dois professores como membros, como se fosse uma banca. E tinha uma série de atividades que você fazia ao longo daqueles quinze dias que culminavam com uma aula.

FP- Tinha aluninho também?

TC- Tinha… não, não. Você tinha que fazer como se tivesse. E a minha aula foi contar histórias, pra contar, dar uma aula de como contar histórias. E eu engendrei - como eu gostava muito de música e a minha mãe, que era professora, ela tinha uma banda em casa, tinha uma bandinha de criança: caxixi, reco-reco, tambor, aquelas coisas – eu aí fiz o roteiro de uma história que ensinava as crianças a utilizar a banda, e no fim a banda toda tocava. E foi um, eu mesmo me emocionei quando acabou a aula, porque foi realmente uma escolha ótima, aí minha média foi toda lá pra cima nesse concurso, eu fiz uma prova prática muito boa. Eu sempre fui muito mais de prática, gosto de aplicar aquilo que eu estudo, que eu… ali era o lugar que a gente tinha pra … e aí foi um trabalho muito interessante. Aí fui chamada para o do interior, porque era uma das últimas, e fui chamada entre as primeiras do outro concurso.Aí fiquei no septuagésimo oitavo, me parece, dos oito mil. E aí fui logo chamada na primeira turma, aí fui ensinar na escola pública.

CH- Do estado?

TC- Do estado.

CH- E fica quantos anos?

TC- Eu fico talvez dois anos ou três. Começo a ensinar criança pequena. Bom, queria dizer que antes disso eu entrei na escola privada, né, pra ser professora. Eu fui fazendo o pré –vestibular, porque a opção por um curso de saúde eu não tinha as matérias química, física e biologia. E as provas eram isso, Português e uma Língua. Eu não tinha dado isso no curso normal. Tive que fazer todo o curso normal e um cursinho vestibular. E eu fazia isso a tarde, quando passei no concurso fiquei a noite. Dava aula na escola privada de manhã, alunos de terceira série, a tarde eu ensinava na escola pública, alunos de sete anos, pequeninhas – era alfabetização, essas coisas – e a noite eu ia para o pré-vestibular. Na volta eu corrigia os cadernos dos meninos do terceiro ano. E às sete horas da manhã eu saía pra escola pra dar aula de novo. Era uma… nessa escola privada eu ensinei música quando eu ainda era aluna do curso normal, e logo em seguida a professora me contratou, a diretora lá, pra ser professora mesmo. Então foram experiências assim de recém-formada em professora, as pessoas confiaram muito em mim. Uma coisa que eu acho que aplico até hoje, você tem que dar vez à juventude, às pessoas e deixar que elas ousem, e você fica ali na retaguarda. Na minha experiência de vida isso foi muito importante, que as pessoas tenham chance de experimentar e eu tive. Tanto nessa escola privada, que era maravilhosa, tinha uma diretora excelente planejadora, excelente – uma vez por mês a gente tinha planejamento global , essa era uma fase de planejamento também , vocês falam isso no livro, se reportando à saúde. Mas foi uma fase que o planejamento foi tomando corpo e era uma ferramenta da ditadura, diziam que estavam organizando o país – então ela era muito bem formada nisso e eu me beneficiei dessa prática pedagógica.

FP- Mas, Tânia, enquanto você estava no normal, você já tinha a sua idéia de que, talvez, você pudesse ir para a área de saúde? Me parece que… logo, logo você entrou no pré-vestibular preparando pra isso. Como é que apareceu isso?

TC- Eu tinha, mas eu queria ser dentista. [risos] Eu não sei porque, eu tinha uma idéia de odontologia, eu queria, já não me lembro porque eu queria odontologia. E na verdade fiz uma opção muito maluca, eu acho que não conversei com ninguém, não sabia a regra do vestibular. Coloquei primeira opção odontologia, segunda , medicina – eu nunca seria chamada porque era o curso mais procurado da área de saúde – e terceiro, nutrição. Aí eu perdi o primeiro vestibular, continuei com meu cursinho vestibular e estudando e melhorando, aí passei pra nutrição no segundo ano. Onde já caí como professora, já levei minhas práticas, porque já trabalhava nessa época, daí na escola fui para merenda escolar. Então eu já caí no curso de nutrição como professora. Eu já era uma… aí eu já tinha feito, talvez, uma definição pela área da educação.

CH – Isso em que ano?

TC – Isso é 70, 1970.

FP- Quando você fala que você já tinha ido pra merenda escolar, essa experiência na CEASA [Central de Abastecimento], a presidência de lá, de educação alimentar.

TC- Sim, quer dizer, eu virei uma funcionária pública, né, do estado. E dentro do estado, eu passei no vestibular de nutrição – eu já estava casada, era recém casada – e comecei a achar que poderia fazer coisas no campo da... levar meu vínculo para uma área, e aí recebi uma sugestão “porque você não vai para a merenda escolar”. Então eu fui lá saber, e tinha mesmo a possibilidade, e consegui levar meu vínculo pra lá, pra essa instituição. Bom, essa instituição tem uma coisa que eu acho que gostaria mesmo de relatar, que é muito importante para o nosso projeto, talvez pensar um pouquinho o que é uma matriz, né. Ela foi a primeira instituição que eu convivi com a coisa de regionalização. Ela já tinha uma regionalização pra dentro do estado, era uma instituição federal…

FP- Está falando de merenda escolar. O que era merenda escolar?

TC- É uma autarquia federal, chamava CNAE, Campanha Nacional de Alimentação Escolar. Nessa época era uma política compensatória como é até hoje. E os militares na época investiram muito na merenda escolar, era uma política compensatória, então eles tinham essas coisas que faziam, pra se legitimar. Mas era um programa… tinha muito dinheiro, quer dizer, tinha muito alimento. Eles compravam ainda em Brasília, era centralizado. Eu tive uma luta no estado pra trazer a compra pro estado da Bahia, e que não precisava comprar a nível federal, enfim porque tinha mesmo visitas da Nutrimental, empresas visitavam a gente para insistir que comprasse as coisas.

FP- Estava ligado ao Ministério da Educação?

TC- Da Educação. Ao Ministério da Educação. Mas eu era uma professora a disposição. Mas tive uma relação interessante, porque quando… eu acho que ainda fui pra lá estudante, não me lembro. Mas eu me formei e passei a chefiar o setor. Ainda fui estudante de nutrição.

FP- Não é a CEASA então?

TC- Não, ainda não. Lá na merenda escolar eu fiquei muito tempo.

FP- Você estava querendo fazer um comentário sobre descentralização e regionalização.

TC- Regionalização. Então os trabalhos já eram assim quando eu cheguei, eles trabalhavam com regionais, cada município pólo tinha sua regional. E nesses municípios aconteciam ajuntamento de professores, diretores ou merendeiras, e nós fazíamos a discussão de alimentação escolar, o valor da alimentação, para que esses professores fossem multiplicadores. Depois disso, em um determinado momento, também veio a discussão das hortas, para estimular o consumo de alimentos saudáveis. E por dentro disso nós fomos implementando algumas coisas, investindo num certo padrão nacional de programas, porque tudo era pensado em Brasília. Era um programa acompanhado mesmo de perto pelos militares, eles faziam inclusive inspeções rigorosas. Eu ficava assustadíssima, porque eles tinham uns mapas de planejamento que iam de um até o quarenta e dois, e cada um daqueles mapas, se checado com outro, se você desviasse um alimento aparecia no relatório. Então era uma tensão violenta pra fazer aquilo com as professoras que trabalhavam comigo, que eram de nível médio, muito encantadoras, pessoas muito dedicadas e bem preparadas. E fizemos atividades bastante interessantes. Lá tentei fazer uma pesquisa, mas ainda não era preparada, então não me estruturei direito, depois desisti. Na época eu queria fazer uma pesquisa com todas as regionais pra entender do … e aí a outra nutricionista , que é a minha colega, também não ficou, era minha companheira nisso. A gente não avançou porque tinha muita atividade para fazer. Nesse trabalho eu fiz um contato com a Escola de Nutrição, formal, e ofereci aquele espaço como campo de estágio das alunas de nutrição. E aí pra essa viagem do interior nós fazíamos grupo de alunos e já levávamos pra aquela que estivesse encaminhando a aprendizagem para aquela atividade. Foi uma experiência muito interessante.

FP – Você tinha se formado em nutrição , já?

TC- Já. Já tinha me formado.

CH – Deixa eu perguntar um negócio: eu não me lembro em que ano foi publicado “Geografia da Fome”, mas de qualquer modo, desde os anos cinqüenta, fome e nutrição eram temas importantes nessa área.

TC- Desde Vargas, nos anos quarenta.

CH – Pois é. Você falou há pouco da importância que os militares atribuíam a essa temática, mas ao mesmo tempo também era um tema delicada, porque ele acabava por expor a imagem do país como um país marcado pela fome, pela miséria, alheio aos interesses dos governos militares. Como é que você tomou conhecimento desse panorama, se é que isso já estava claro à época? Como é que foi o seu contato com o trabalho “Geografia da Fome”, por exemplo, e toda essa discussão?

TC- Na Escola de Nutrição…

CH- É muito politizado, né?

TC - É, na Escola de Nutrição a gente teve acesso a discussões sobre Josué de Castro, Geografia da Fome, mas era um período dificílimo. Eu fiquei na graduação de 70 a 72, 70 e..., o curso foi reduzido para três anos e eu peguei a época da primeira reforma universitária. É o ano… o primeiro foi os institutos básicos, para desbaratar, eles faziam assim para poder desbaratar as turmas e … coisa que perdurou até hoje. Botaram os institutos básicos e eu peguei o primeiro ano disso, nós só fomos para as disciplinas profissionalizante no final de 71, eu acho.

FP- Era dentro do centro de saúde?

TC- Não.

FP- Não?

TC- Não. Aquilo passava longe. A integração docente-assistencial eu fiz no período escolar com atividades… eu já nutricionista, mas a Escola de Nutrição não ia ao centro de saúde, não existia o INAN [Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição]. No hospital universitário. Nós só tínhamos estágio hospitalar.

FP- Mas essa turma estava toda junto no ciclo básico, medicina, odontologia?

TC – Aí nos juntamos com os outros das outras profissões. Medicina quase nunca. Mas nos juntávamos com farmácia, algumas disciplinas eram dadas com odontologia. Enfim, mas é … então, Carlos, respondendo a tua pergunta, eu não acho que a gente juntava uma coisa com a outra. Havia um antônimo muito grande, ou você entrava para movimento e partia para qualquer disposição, né; ou você, dentro das instituições era tudo vigiado – porque enfim, você tinha colegas que eram do lado direito. Então era uma coisa muito delicada, a gente avançava o que se podia. Mas assim, tivemos essa discussão, tomamos o conhecimento de “Geografia da Fome”, mas não me lembro de nenhuma politização na época em tono disso. Eu também não acredito, porque mesmo os militares… eu não acho que eles tinham essa preocupação não, porque eram muito assistencialistas. Na verdade, o que eles queriam era mostrar, em toda a América Latina e para o mundo, que eles estavam preocupados com a desgraça da população. E é óbvio que quanto mais eles fizessem isso, mas eles revelavam que o período anterior não tinha feito, só tinha discutido, só tinha ficado no gogó. Só falavam “e população adoeceu de fome e nós chegamos para socorrer”. Então, eu acho que o limite, dos militares – eu intuo, não posso falar isso porque nunca li as coisas com esses olhos pra ver – mas eu acredito que eles se fizeram especialistas, pra mostrar que o país podia funcionar com ordem e progresso, digamos assim, que foi essa a questão.

FP- Que outras imagens você tem assim, do seu curso de Nutrição que você gostaria de destacar? Movimento estudantil, por exemplo, nos anos duros.

TC- Não fizemos. Para vocês terem a idéia, em 70, o ano que estive, era ano duro mesmo. Porque de 68 em diante, aí foi o endurecimento total. A minha escola não teve professores perdidos. Não teve, porque a matriz do curso de Nutrição é de donas de casa, é de mulheres muito dedicadas à culinária, algumas inteligentes, por exemplo, a minha diretora. Era uma diretora muito empreendedora, uma mulher muito especial, assim, mas organizadora de processos, não tinha nenhum discurso. O conjunto dos professores era um conjunto de muitas pessoas vindas dessa origem. Eu até um determinado momento preparei uma aula para uma mesa que eu participei na Bahia, e fui reconstituir essa história e não tinha quase nada escrito. Eu fui atrás, peguei as políticas de alimentação do SAPE [Secretaria de Estado da Agricultura, da Pecuária e da Pesca], da década de quarenta, de 42 em diante, daí estudei a origem da escola [Instituto de Nutrição] Annes Dias, que é aqui – acho que em Botafogo, essa escola – e como surgiu. E aí eu fui entrevistar as professoras, que na verdade eram as primeiras professoras que instituíram a Escola de Nutrição na Bahia. Então eu as entrevistei para pegar as raízes, e delas eu peguei a matriz para poder arrumar, e expor nessa mesa que foi coordenada por Ricardo Bruno Gonçalves, Mendes Gonçalves, e montada por Joenilson [?] com muita inteligência - esta estratégia foi ele quem montou. Inês Bravo era a …

FP- Foi quando isso?

TC -… Assistente Social, representante até hoje. Olha, deve ser aí em setenta e … final dos anos setenta.

CH- Você já tinha vindo a ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz] fazer o curso de especialização.

TC- Eu não fiz aqui, fiz na Bahia. Eu fiz na Bahia.

CH- Ah, tá.

TC- Eu fiz na Bahia. Primeiro curso descentralizado.

CH- Curso oferecido pela ENSP?

TC- É. Primeiro curso descentralizado, oferecido pela ENSP, em parceria com a secretaria de saúde.

CH- Fala um pouquinho como se deu a sua aproximação com a saúde pública.

TC- Bom, antes disso eu passei pela Central de Abastecimento. Registrando um pouquinho, porque eu acho que a coisa da integração docente-assistencial é importante, talvez, a gente marcar. No nosso projeto eu acho que é interessante. É, se fez na merenda escolar, naquela estratégia que eu coloquei, e desse tempo lá o projeto foi rendendo, né. A escola tomou o conhecimento daquela área e os alunos gostavam, a gente viajava pelo interior inteiro. Cada turma de professores - tinha até oitenta professores de uma vez - então cada turma de professores ela dava muito retorno e mobilizava os estudantes a pensar naquele município, na produção, enfim, era um trabalho bastante interessante, mesmo que rápido.

FP- Você está falando de professores da rede pública de ensino?

TC- Da rede pública, sempre da rede pública. Não existia privado nesse projeto, eram muitos, eram muitos ainda nesse período. Devo destacar que a escola de melhor participação, do ponto de vista da qualidade, era de Caetité, que era a escola de Anísio Teixeira. Era a cidade dele. E o melhor discurso na sala de aula era esse. E a de menos rendimento – porque a gente fazia essas comparações – era uma escola da região do feijão, onde as pessoas só queriam plantar, colher feijão e ganhar dinheiro. E era o boom naquela época, dessa coisa. Você vê que essas observações todas a gente fazia até muito intuitivamente. E nós tínhamos o quê? Dezoito anos, dezenove anos. Não tínhamos feito nem o mestrado, não tinha nem uma reflexão sociológica, a não ser a sociologia que se dava nos cursos. Enfim, a Escola de Nutrição foi chamada pela Central de Abastecimento para estruturar um programa de educação alimentar. E aí a Escola de Nutrição disse: “olha nós podíamos indicar uma aluna recém formada porque esse programa tem um escopo maior, então a gente tem um nome e a gente vai indicar a Tânia, que está na merenda escolar, mas ela tem um vínculo”. E aí começou a incomodar. Você trabalha tanto. Era professora primária, não tinha uma carreira estruturando na minha área, então fui vinculada à merenda escolar, que não abria concurso, não… enfim, era uma coisa de meio, né… e aí eu fiz o rompimento. Pedi uma licença sem vencimento e fui para a Central de Abastecimento. Claro que aos prantos, né, porque esse trabalho era encantador. Aos prantos literalmente, todas as regionais vieram para a despedida. E o comandante, o coordenador…

FP- Da sua despedida?

TC- É. Por que era um programa.

FP- Agora, vem cá, você era novinha?

TC- É.

FP- Você tinha uma aptidão para a liderança enorme, né?

TC- Talvez, não sei. Eu acho que essas experiências foram me levando. Eu devia ter algum traço, que eu até credito muito à formação daquele colégio de freiras. Outro também, tinha muita coisa pelo porte. Acho que os colégios, eu acredito muito na educação e nas experiências familiares também, de lugares que você mora. Eu morava em uma rua absolutamente alegre, organizávamos coisas. Eu tive muita sorte na vida. Mario [?] dizia isso. Em algum momento a gente conversou dessas histórias, e ele dizia: “Você teve muitas experiências, deu muita sorte de estruturar esse perfil que você tem - se referindo ao meu trabalho na Concurd [Coordenação dos Cursos Descentralizados] - vem muito dessas coisas que você me conta”. Porque ele ficava perguntando: “De onde você veio?” Essas coisas. Mario gostava dessas coisas. Mas enfim, voltando aqui a nossa linha de pensamento, eu acho que me perdi.

(?)- CEASA.

FP- Você estava na despedida.

TC – Aí, enfim, fui. Eu estava dizendo que os regionais vieram se despedir, e o coordenador da merenda escolar era um militar, médico militar. Me chamava de “minha filha”, a essa altura do campeonato, porque eu sempre fui assim, de fazer, brigar, ta-na-na… a história de … Você não pode continuar comprando alimentos, tem que reivindicar que se compre alimentos regionais, a gente tem tanta coisa…

FP- Você lembra o nome dele?

TC- Antônio de Caldas Rolim.

FP- Lembra mesmo. [risos]

TC- Antônio de Caldas Rolim. Telefonei pra ele, tem uns dois meses, se emocionou muito. Ele está cego hoje. Disse: “você está falando daqui?” Eu disse: “do Rio de Janeiro”. Ele: “do Rio de Janeiro”. Ele era Cearense, perto de Crato, aquela região. Mas enfim, ele sentiu, foi uma perda enorme, a filha que ele criou, aquela coisa. E realmente era um programa que rendeu. Mas aí foi, caminhou de outro jeito, caminhou. E eu fui para CEASA, onde foi um desafio. Porque lá não era pra trabalhar. Lá era… eu não vou detalhar isso porque não interessa pra aqui, mas lá era um esquema político, na verdade, que queriam agradar o governador, e a escola… a mulher do governador era uma nutricionista formada pela Escola de Nutrição, e não era pra fazer nada. [risos] Mas mesmo assim, lá a gente conseguiu.

FP- Só para datar, governo de quem mesmo?

TC – Era de Roberto Santos. Bom, e nesse grupo de trabalho, na verdade, eu experimentei uma coisa muito interessante também, porque nós todos trabalhávamos numa sala… tipo aquela da escola de governo [risos] que os grupinhos multiprofissionais trabalhavam ali. E todos eram sempre muito jovens e frustrados com essas coisas. Tinha, então, dois economistas, tinha um engenheiro agrônomo, uma jornalista chamada Azimozete [Santana Santos] – olha que nome. [risos] E quando a gente atendia o telefone e quando dizia Azimozete, eu dizia: quem? Era uma coisa muito lúdica, essa brincadeira do Azi. E eu e uma bibliotecária. Então como éramos muito tristes, a gente passava o dia fora da cidade. Eu quase perdi minha filha numa viagem de coisa, porque eu fui fechada por um carro e perseguida por ele muito tempo na estrada, e foi… era um lugar distante e perigoso. Então você tinha que ir. Ganhei um carro, nessa época, de presente do marido para ir para esse lugar. Mas muito mobilizador. E lá eu ficava o dia todo sem fazer nada, eu e todo mundo. Então nós nos juntamos muito entre nós. E me lembro que conseguimos fazer um programa, por nossa conta, com uma comunidade do entorno – era ali, perto do aeroporto de Salvador – e montamos com uma comunidade que tinha um padre muito mobilizado. Novamente os cerceadores da ditadura estavam ali agregados em algum lugar. E a noite nós fazíamos reuniões – engraçado que com muito frio, porque era perto da praia, e esse período do trabalho com a comunidade eu me lembro que estava de xale e grávida e tudo – mas a gente ia, eu e o Ney [?], que era o engenheiro agrônomo, fazendo essas coisas a noite, e dentro do conhecimento do presidente, que era uma pessoa encantadora. Na verdade, quem cerceava era o diretor técnico – que era um mineiro muito costurado – ele só pensava em economia. Ele queria contar as verduras que entravam, que saiam, queria fazer os galpões direitinhos. Aquela história, educação alimentar na feira livre, que era o projeto que me levou pra lá, não interessava. No projeto, fizemos um livro, porque aí eu fui fazer experimentação de receitas com frutas da época. E aí fui misturando um bocado de coisa, cocada com melancia, não sei o que nã-nã-nã. Fizemos um conjunto de receitas para compor um livro que foi o “Natal Tropical”, coisa que perdurou. Quer dizer, a introdução de frutas brasileiras na mesa lá, ela veio de um período assim. Nós aí, a intenção era essa, nós distribuímos nas feiras. É um livro bem bonitinho, eu acho até que eu tenho ele em casa ainda. E disso tem várias utilizações de frutas para um natal tropical. A capa era uma –aí novamente a questão da comunicação - a capa, o fotógrafo não sabia o que fazer, porque era uma cesta linda de frutas, em cima da mesa ficava uma coisa feia. E a jornalista dizia: “o que é que a gente vai fazer? Onde fica melhor?” Eu disse: “espera um pouco”. Peguei a cesta e fui caminhando. Disse : “vamos ali?” Saímos do prédio e chegamos no jardim, tinha uns pinheiros, muito verde, eu botei a cestinha ali e falei: “não fica legal com esse fundo verde?” É linda a casa. Ele falou: “porque eu não tive essa idéia”. A gente olhou lá de cima da janela. Falei: “vamos ali em baixo? Talvez ali fique bem.” E ficou bem legal a imagem que a gente queria passar. Porque os pinheiros são símbolos do natal, e os pinheiros existiam nos jardins do CEASA. Mas, enfim, lá fiquei por um período. E o próprio presidente vendo aquele grupo, ele criou um afeto pelo grupo, porque ele também estava amarrado. E o diretor técnico era indicado aí por algum caminho, né. Porque essas CEASAs foram implantadas no país inteiro, era uma proposta da economia para otimizar a produção e escoar direitinho. Tinha seus meios. Mas ele tinha outros sonhos, ele aí me disse que queria muito ajudar a gente, ajudar todos a encontrar seu caminho. E ele surgiu com o curso de Saúde Pública. E aí, respondendo a sua pergunta, fui fazer Saúde Pública.

FP- Como é que essa idéia apareceu pra você?

TC- Ah, Fernando. [risos] Foi também uma conquista, viu. Porque o curso, quando ele foi descentralizado, o primeiro ano, e foi o segundo ano de descentralização, eu era presidente da Associação de Nutrição da Bahia. [risos] E aí chegou na associação a idéia.

(?) – Depois diz que não tem militância.

[risos]

(?) – Era uma militância, mais estruturada.

TC – É, mas aí eu já tinha saído da escola, da universidade. E tinha a minha professora de Saúde Pública, né. Naquela época a gente fazia peso e altura, pouca coisa ela pode ensinar na ditadura. Também era uma burguesinha, não tinha nenhuma formação sociológica, né. Mas era uma pessoa interessada em que os alunos aprendessem e tal. E ela levou pra seção: “olha, Tânia tá saindo” … eu acho que nessa época surge o INAN também, né. Eu acho que nessa época surge o INAN também. Eu acho que surge o INAN, que é o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição.

FP – Eu ia te perguntar se você tinha notícia e contato com movimentos de nutrição, por exemplo da OPAS [Organização Pan-americana da Saúde], bem vigoroso nessa época.

TC- Não. Existia um movimento nacional de presidentes de associações de nutricionistas. A gente fazia uma reunião por ano do conjunto, tinha uma federação. Mas a gente, nos congressos, a gente fazia uma boa, uma boa aproximação. Tinha na Bahia…

FP- Na prática não tinha, sei lá, manuais de programas de trabalho que pudessem vir da OPAS.

TC- Se chegavam ficavam nas mãos das professoras, Fernando. Não foi trabalhado.

FP- E o INAN, você tinha referência, do INAN?

TC- Então, o INAN veio. Na associação nós discutimos como uma boa iniciativa e que nós devíamos então nos organizar para participar e ter vagas, né, de nutricionista. Não era uma coisa só de economista. Porque foi, na verdade, organizado por economistas, alguns até muito preciosos, com quem a gente construiu uma aproximação muito boa depois. Mas nós tínhamos um professor, na Escola de Nutrição, muito interessante, que era filho de Vital Brazil. E ele chamava Eno Vital Brazil, esse fez uma formação conseqüente. Elas não deixaram ele ser diretor, porque ele queria, os alunos adoravam. Não adoravam por concessão, por que era rigoroso, mas interagia, tinha práticas pedagógicas fantásticas , embora ele fosse professor de Tecnologia de Alimentos. Aí ele levou vários alunos, entre eles, eu, para CEASA e, quando eu me formei, ele disse assim: “eu queria lhe levar para o CEPED”. Era um centro de pesquisa e desenvolvimento muito importante na Bahia, do governo do estado, mas muito bem relacionado com o mundo inteiro até e o Brasil. E ele disse assim: “Eu queria lhe levar para o CEPED”. Esse cara foi vice-presidente da FIOCRUZ. Em um determinado período, eu o encontrei.

FP- O Eno Vital Brazil?

CH – É.

TC- Eno Vital Brazil. Eu o encontrei em Brasília, em algum momento. Foi uma emoção enorme. Eu entrei em uma exposição que ele estava fazendo lá e ele me contou essa história. Mas, ele disse assim: “Você tem… você é uma boa gerente. Eu vou lhe levar pra você ser gerente do projeto.” Mas não tinha nenhuma empresa, não sei o que. Gerente de projeto no CEPED era muito interessante. Meu marido já era, ele foi pelo caminho da agricultura. Eu já era…

FP- Qual é o nome do seu primeiro marido, Tânia?

TC- Eu só tenho um. [risos]

FP- É mesmo. É o Zé?

TC- É o Zé. José Augusto. Em agosto, ou em julho, eu faço quarenta anos de casada. [risos] Fique a vontade porque isso é coisa… [risos]

FP- Sem comentários, viu. O entrevistador está quieto [risos].

TC- Mas, enfim, é. O professor Vital Brazil, o professor Eno foi muito importante mesmo. E ele era muito bonito, então as alunas, além de tudo, ficavam horas ouvindo, inteligência rara. E ele instigava, trabalhava com perguntas, com questões, e ele não era um cara de dizer. Com ele aprendi muito. E pelo tipo de prova que ele fazia com a gente, que eu aplico em geral, quando eu tenho oportunidade eu aplico até hoje. Fazendo aula, que é o aluno se manifestar sobre dois tópicos daquele tema que eu vou ensinar em educação, em geral, em educação, em recursos humanos. E aí eu não deixo conversar, não pode conversar um com o outro porque tem que vir da experiência pessoal. Depois eu ponho no quadro o conjunto das idéias e desse conjunto eu faço um pacto com a turma, que aquilo ali são as questões mais fundamentais que aquela turma releve. Então eu dou a aula, mas vou voltando às demandas, com certo realce e relevando a demanda que os alunos trazem de… instigados por aquele tema. E foi com o professor Vital Brazil, fazendo prova, porque ele fazia isso nas provas, ensinou a fazer síntese – só pode escrever em tantas linhas – mas sempre com muito afeto. Foi uma experiência ótima. Então com ele, eu tive também uma experiência de relação com a didática e produção do conhecimento, exercício de liderança. Ele vinha de Mar Grande, de lancha, dar aulas todos os dias. Ele era queimado assim [risos]. Era o professor que chega na universidade de lancha. É muito de mais. [risos] É muito de mais. Isso para alunas de vinte anos, vinte um [risos], e ele era liderança na escola mesmo e enfim. Aí ele trouxe esse campo da Tecnologia de Alimentos também com algum vigor, que eu terminei aplicando na merenda escolar, porque eu, também, lá tinha mudado os programas, tinha incorporado tecnologias também. Então passaram a fazer pães, a muitos, iogurtes. Essas coisas de mudanças de…

FP – Mas aí a Saúde Pública chegou assim como uma oportunidade.

 

TC- Bom, voltando, então. Eu me desviei um pouquinho agora, mas fiz… eu já estava eleita, presidente da Associação de Nutrição da Bahia e lá chegou a história do curso de Saúde Pública. Nesse contexto, depois eu quero voltar um pouco pra falar do contexto da associação e da questão da militância, que eu acho que é importante aí falar, porque a gente teve mesmo oportunidade muito especial nesse momento. Mas, chegou no estado o curso de Saúde Pública e aí… eu era candidatíssima pra presidência, e aí eu fiz uma assembléia, chamei uma assembléia geral com todos. Foi uma assembléia grande, e eu disse: “olha, o edital está aqui, foi publicado no dia tal e as inscrições vão até o dia tal.” E todo mundo disse: “mas não tem nutricionista.” Porque preferencialmente médicos, enfermeiros e dentistas. Aí eu liguei para José Hermógenes. Nosso José Hermógenes que foi ex-ministro e secretário recente de Ciência e Tecnologia. Eu falei: “olha, doutor José Hermógenes, eu sou …” Que era o coordenador na Bahia, tinha vindo fazer o curso na ENSP, era essa a prática, trazia para fazer o curso mais avançado. Depois isso vai aparecer na história dos cursos, como falou aí. Eles traziam os meninos do… descentralizados, ou pessoas que tinham interesses de fazer o curso, viam possibilidades e depois voltavam para estruturar os cursos de Saúde Pública nos estados. O Hermógenes é um desses. E aí eu liguei pra ele e disse: “Eu sou Tânia Celeste, sou presidente da Associação” – bem petulante, eu era muito petulante, o nariz era lá em cima. - e falei assim: “estou lhe ligando porque acabei de fazer ontem a noite uma assembléia, tinha tantas nutricionistas. E a orientação é que todas que queiram entrar pra saúde pública se candidatem ao curso. A gente acha inadmissível que com a criação do INAN, a Escola Nacional de Saúde Pública continue fazendo um curso que exclua nutricionistas, e eu queria lhe dizer isso e nós vamos entregar a.....” Bem assim, só pra ele… Perfeitamente. Ele é um democrata. Aí ele: “Perfeitamente, nós vamos aceitar, mas eu tenho que consultar ainda isso, porque eu não tenho autonomia.” E não tinha mesmo. “Eu não tenho autonomia para acolher vocês, mas eu vou receber as inscrições.” E aí houve a seleção. E o recurso orientado pela ENSP foi o seguinte: se houver alguma desistência, as nutricionistas aprovadas podem entrar. Foi assim, e eu e Lécia Brás fomos as duas classificadas, porque era minha professora, e eu pelo currículo, porque foi só currículo – análise da banca. E ficamos na reserva. Por sorte dois desistiram e aí nós entramos. Não preciso dizer que foi um curso ótimo, que o José Hermógenes era realmente um democrata e depois, inclusive, até contou pra gente as brigas dele com a ENSP para poder conseguir colocar. E a partir de então isso foi absorvido e virou uma coisa aceita para todos os cursos descentralizados, que pudesse aceitar nutricionista no edital. E a partir daí passou a se explicitar que não era só aquele preferencialmente, porque as acanhadas podiam não fazer aquilo que a gente fez. Ao terminar o curso… esse Zé Hermógenes era… bom, o curso eu fiz ainda liberada do sistema CEASA, e fez parte desse pacto com aquele presidente que criou um respeito, uma afetividade. Eu ia uma vez por semana lá. Eles ainda pagavam minha gasolina pra ir lá pra CEASA, porque como era longe, eu tinha uma cota de gasolina no interior toda semana, olhava as coisas lá, alguma coisinha pra ver, e fazia o curso, então…

FP- Ele era ministrado aonde, o curso de especialização?

TC- Ele foi ministrado na Escola de Medicina, na Católica de Medicina, que era – como continua sendo – uma faculdade muito, diríamos, conservadora da Saúde Pública. Mas por alguma razão, que eu não sei até hoje, houve um acordo. Eles cederam as instalações, a Secretaria de Saúde cedeu, fez o contrato também, e o curso se realizou lá, nas dependências da Universidade Católica. A Universidade Federal, os professores foram convidados, o professor Sebastião Loureiro, professor Jairnilson Paim, professora Joselita Macedo. Todos eles davam aula nesse curso…

FP- Terceiro nome, pode repetir?

TC- Joselita Macedo. Tem os históricos de lá. Harley Padilha, que já faleceu. Enfim, todos eram chamados e davam aula. Daí também a manutenção da história da relação com a universidade, porque aí já era um curso do serviço. E no fim ele me convidou pra ir, ser coordenadora do curso.

FP- Já era um curso do serviço. O que você quer dizer?

TC- Porque ele era patrocinado pela secretaria.

FP- Ah.

TC – O vínculo institucional forte da ENSP era mesmo com a secretaria. E talvez - deixa eu ver, isso foi em 76 – já existisse, já existia o PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde], né.

FP- Já.

TC – Já existia o PPREPS. Eu insisto, o Arlindo [Fábio Gómez] acha que não…

FP- Estava nos primeiros anos.

TC - … foi já um desdobramento do PPREPS. De alguma forma o ambiente foi muito propiciador disso. Ele acha que foi mais pela história da escola que eu conto no depoimento deles, mas eu acho que como política pública, os cursos descentralizados foram mais específicos.

FP – Quando você diz que os professores da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] participavam, eram da medicina preventiva?

TC – Não, da UFBA, da Universidade Federal da Bahia.

FP- E disse o quê?

CH- UFRJ.

TC- É. Da UFBA.

FP – Da UFBA.

TC- É, eles eram convidados pelo Zé Hermógenes, que na verdade também, ele era um progressista. O Zé sempre foi um progressista. Ele era do quadro do PCdoB. Eu nem sabia, vim saber depois. Mas hoje muito vinculado ao PCdoB, mais assumido. E na época ele já era e a gente não sabia. Era pessoa mansa, não tinha aquele estilo gritão, coisa que na época os quadros de lá tinham. Depois mudaram muito, eu conheci muitos mansos. [risos] Mas ele, o José Hermógenes fez o laço com a secretaria, e aí o Arlindo Fábio, aqui pelo Rio [de Janeiro], foi quem foi o embaixador desse vínculo e construiu a viabilidade. O que eles colocam, principalmente o Arlindo, nos depoimentos da minha tese, é de que havia uma discussão entre os professores que acreditavam na descentralização como um caminho político, vinculado também à situação do sistema de saúde. Mas era de que onde houvesse condições objetivas, né – essa é uma expressão da época.

FP – Da época.

TC – Do poder político, a gente podia avançar. Então em alguns lugares você fazia aliança com a Universidade e em outros fazia com a própria FIOCRUZ, né. Atrasadíssima na época, era um quadro dificílimo lá nos cursos de Pernambuco, lá foi muito difícil. Maranhão também foi muito difícil. Na Bahia foi secretaria de estado, Universidade Católica, que era o conservadorismo em pessoa, mas tinha alguma coisa lá porque o José Hermógenes sempre foi assim - hein-hein-hein- e daqui a pouco já enlaçou todo mundo. Então ele conseguiu as instalações ótimas que a gente ocupava, mas constava também no convênio. E a secretaria de estado, onde tinha um secretário também muito progressista, chamado Ubaldo Dantas.

FP- E na Católica, quem era o reitor?

TC- Não sei. Ela era uma escola … na verdade, a faculdade de medicina ela não era muito dentro da Universidade, depois é que ela se torna uma coisa mais universitária. Não sei se era uma escola isolada.

FP- Podia ser.

CH- E o que vocês discutiram ao longo do curso, quais leituras fizeram?

TC – Do Curso de Saúde Pública, né? Na época nós … eu me lembro de uma coisa muito forte, que foi a área de ecologia, porque a Bahia estava passando por um problema muito grande com a questão do mercúrio na Lagoa de Todos os Santos. E isso estava sendo muito politizado na época - tinha havido aquela outra história lá no Japão também - fazia um rebatimento, e por conta disso, talvez pelo perfil dos professores dessa área, se deu no curso um alargamento muito grande. Então, a politização maior foi pela disciplina de … quer dizer, maior não, eu diria bastante forte, também se deu pela questão de ecologia. Porque ali se discutia desigualdade e o trabalho, por questões dos catadores de ostras da ribeira, que estavam contaminados e aquela coisa da … foi muito interessante essa discussão e aí a saúde do trabalhador na área. Porque as áreas não estavam nítidas. A formação do currículo novo da Saúde Pública mais contemporânea, ele veio na década de oitenta, e isso é 1976. Então era um curso mesclado com a Saúde Pública, ainda ortodoxa, e os programas né, mas o pessoal da Preventiva já discutia uma certa politização. Nessa fase ainda era uma crítica ao Sistema Nacional de Saúde, aquele que é anterior ao SUS [Sistema Único de Saúde], que estava se aprovando aí no final da década de 70.

FP- Nós estamos em setenta e?

CH- Seis.

FP- 76. O governador da Bahia era?

TC- Nessa época, Roberto Santos.

FP- Roberto Santos.

TC- Roberto Santos, é. Ubaldo Dantas era do grupo dele, do Roberto Santos.

FP- Desculpa, eu não sei....

TC – Que era um professor, ex- reitor. Um pouco atrasadinho também, mas...

FP- Se você pudesse fazer... nessa época assim … você mencionou que é o segundo curso descentralizado.

TC- É a segunda leva.

FP – Segunda leva.

TC- A primeira foi para o Rio Grande do Sul.

FP- Mas a primeira da Bahia?

TC- Primeira da Bahia e primeira de Pernambuco. No segundo ano eu acho que é isso.

FP- Se você pensasse assim, na Salvador daquela época, qual seria uma cartografia da Saúde Pública? Onde é que estava o povo? Você.

TC –Olha, nessa época era a época dos projetos, da intervenção da saúde pública por projetos. Então as comunidades pobres, chamada assim Nordeste de Amaralina, eram foco…. Na verdade as periferias, ainda dentro da cidade, são favelas até hoje. Urbanizou bastante e tal, mas – de onde vem Carlinhos Brown. Então nesses lugares, tinha lá umas crises porque chovia muito nessa época agora, então as encostas desciam, essa questão chamava muito a atenção da imprensa. E os professores da Preventiva já iam estudando e organizando as questões mais emergentes da coletividade. E pegaram, quer dizer, trabalharam pela via da Medicina Social, eles eram a Preventiva da Universidade, utilizando pequenos grupamentos desses lugares, dessas favelas, desses lugares conflagrados de pobreza, fazendo já assistência…

FP- Medicina comunitária.

TC- Medicina comunitária, né.

FP – Eram dois departamentos de Medicina Preventiva, um na UFBA e outro na Católica? Era assim?

TC – Eu acho… não sei se na Católica tinha um departamento de Medicina Preventiva, mas devia de ter, porque tinham professores lá, que não davam aula no nosso curso, claro. Muito fracos.

FP- Mas de qualquer maneira a turma forte estava…

TC - … na medicina…

FP - … da Federal da Bahia.

TC- Federal da Bahia, né. E que foi já, com os primeiros alunos do mestrado muito – estou falando da UFBA agora – um mestrado criado e apoiado pela [Fundação] Kellog. Onde a Fabíola Nunes, a Fabíola, teve parte importante na organização desse primeiro curso, né. Aí entram as organizações internacionais apoiando isso. Mas era um curso muito ortodoxo, muito.

FP- Ele já existia nessa época?

TC – Ele se instituiu mais ou menos nessa época. E aí os primeiros alunos… Jairnilson [Paim] era mestre, em Medicina Interna, não era mestre em Saúde Pública. Agora que ele se doutorou em Saúde Pública. Ele era mestre em Medicina Interna, mas ele era muito estudioso e estimulado pelas questões sociais. Então ele dava aula na Preventiva e a Fabíola tinha muita simpatia por pessoas estudiosas. Então ela foi dando espaço e a primeira turma do mestrado foi absorvida e passou a … tem a Carmem Teixeira, Fernando – ela agora coordena a pós-graduação na medicina – alguns deles, né. Maurício Barreto veio um pouco depois. Maurício Barreto foi meu aluno no ciclo básico, ele veio um pouco depois, hoje ele é um grande pesquisador. Talvez deles é o que mais publica, o que é mais conhecido nacional e internacionalmente, é da Academia Brasileira de Ciências, muito, muito, Maurício é muito… E aí foi incorporando, foi um movimento assim. E aí, eles vão se aproximando do curso de Saúde Pública de uma forma muito… os professores, os quadros, porque aí o curso passa a ser regular. Passa a ser oferecido regularmente e aí vem o PPREPS, organiza mais o CETRE [Centro de Treinamento] onde eu fui trabalhar com o vice José Hermógenes, ele foi diretor do CETRE, eu fui chamada, fui secretária, numa conjunção aí quando Ubaldo saiu candidato a deputado. Ubaldo Dantas que era o secretário.

CH- Isso em 78?

TC – 78. Aí Hermógenes assume a secretaria, nisso ele já dirigia o CETRE e me chamou pra ser coordenadora…

FP- CETRE é o?

TC – Centro de Treinamento. Que eu ia assumir a direção. Primeiro eu fui coordenadora, depois eu assumi a direção em 80, 79, e fiz um desenho, uma proposta. Com ajuda do grupo de Brasília, notadamente o Cesar Vieira e o Francisco Salazar, que davam uma assistência muito grande. Nós fizemos um projeto e transformamos em Centro de Desenvolvimento de Recurso Humanos, e vendemos a idéia na reforma da secretaria, aí 80,81.

FP – Tânia, antes um pouco. Ainda a questão dessa cartografia da saúde pública em Salvador, como era, por exemplo, a rede da municipalidade, da prefeitura de Salvador?

TC- Cuidava de tuberculose.

FP- Só.

TC – E materno-infantil. Eu acho que até a do estado, e do município… na verdade é a matriz do SUS em organização de unidades. Eles tinham um cuidado pela verticalização dos programas, tuberculose aqui muito organizada. Então eles desciam, trabalhavam com tuberculose, e o materno-infantil mais pelo estado. Mais pelo…

FP – Pela rede estadual.

 

 

 

TC – Pela rede estadual. Na Bahia a gente já tinha hospitais públicos também, por alguma razão, tinha uma Fundação Hospitalar do Estado da Bahia. Era a Fundação do Estado da Bahia. Por isso que eu defendo as fundações estaduais, porque eu sou filha de uma coisa ótima. Trabalhávamos com muita flexibilidade e respeito.

 

CH – O CETRE estava subordinado à Fundação?

TC – Tinha uma fundação hospitalar também e tinha uma fundação mais das áreas de laboratório. Eram três fundações que trabalhavam articuladas. E aí a gente já tinha uma rede hospitalar interessante. Porque na hora que chegou com a idéia de revisão do sistema nacional e estadual de saúde, tinha um embrião de rede formado ali. E aí foi muito produtivo, muito rico esse momento. Estou preocupada com o recorte, não sei em que momento vocês vão optar por isso. Atendi a pergunta anterior ou me perdi de novo?

FP- Aí você vem pro centro de treinamento, né? Essa sua chegada assim, chegamos… vamos lá, vamos comentar essa.

TC – Essa parte.

FP – É. A gente podia, nós aqui… no nosso… começamos com uma pergunta.

TC – Eu disse. Você disse que… Eu queria, só um pouquinho, eu queria fazer ainda um comentário a respeito da associação.

FP – Isso.

TC – Nesse contexto da associação, além dessas mobilizações, que é o caso da coisa, nós tínhamos também, quer dizer começou a se organizar uma coisa chamada Convênio Cultural no Estado da Bahia. Era uma coisa nossa, só da Bahia. Que era os presidentes de associações pela mobilização de um ou dois membros… duas pessoas… eu não sei de onde aqueles caras saíram, só sei que eles eram políticos e organizavam uma discussão de porque que a gente deve… não se juntavam, era tudo assim muito… leve. Porque que a gente deve não se juntar para discutir sobre problemas. Na verdade era uma gradação de unidades, era alguém ligado a partido. Eu acho até que aquele cara era ligado ao partidão. Depois eu o encontrei na Secretaria de Planejamento, também já ocupando o aparelho de estado, pessoa espetacular e muito mansa, muito calma, mas ele fez esse Convênio Cultural. Então nós tínhamos uma reunião, eu acho que a cada quinze dias…

FP – Eram associações do campo da saúde?

TC – Nada. Geral. Geral. Onde conheci José Sérgio Gabrielli, que agora é presidente da Petrobras. E fazíamos palestras, e …

FP – Qual é o nome do cara que arrumava isso?

TC – Pode ser que eu me lembre daqui a pouco.

FP – Então deixa.

TC – Tem muito tempo e eu me perdi dele assim, né. Mas era um trabalho encantador. Bom, aí a ditadura começou a ficar muito difícil, muito difícil, muito difícil. E a última reunião do Convênio Cultural foi no centro da cidade, num prédio meio escuro, meio… e aí todo mundo estava muito assustado, porque precisava ficar olhando na janela pra ver se tinha alguém lá fora. E realmente parece que já estava acontecendo alguma denúncia de que essas entidades estavam se reunindo com esse nome de Convênio Cultural. Terminou que ele se desfez de alguma forma, mas eles iam a reuniões da gente, das entidades. Era uma coisa bem assim, para acompanhar e fazer política, agregando forças naquele contexto. Essa foi uma experiência muito interessante também, porque eu tinha que colocar, mesmo num período difícil, de adversidades, de dificuldades. Foi possível fazer ajuntamentos, participar de ajuntamentos, com a liderança fantástica que esse rapaz tinha. Era engraçado que, nesse contexto, até um prefeito indicado pelo ACM [Antônio Carlos Magalhães], que era ex-presidente da Associação de Economistas, chamado Manoel Castro, muito conhecido – acho Virginia [Almeida] deve conhecer, que morou lá na Bahia - todo mundo conhece. O Manoel Castro foi prefeito, sempre um conflitado, porque ele era, tinha uma coisa de esquerda, mas que segurou. Antônio Carlos o adotou. Era muito bom, todo o turismo da Bahia foi estruturado através dele, e a partir daí ele nunca conseguiu sair do PFL [Partido Frente Liberal]. Hoje ele está no Tribunal de Contas do Estado. Figura que eu respeito muito, muito interessante, estaria na categoria dos progressistas. Ele também estava nesse convênio cultural, aparecia nas nossas reuniões, e discutíamos estratégias e como abordar tal assunto. Daí veio a história da economia com a nutrição. Ainda ontem eu achei uma palestra que eu fiz, que se discutia o preço no produtor e o preço no varejo. Montava-se algumas mesas em alguns lugares, e aí o [José Sergio] Gabrielli falava de economia e eu falava de nutrição, juntávamos essa coisas. Então foi um período muito interessante, mesmo cerceados. A gente sempre encontrava uma coisa. Isso foi a experiência da Associação de Nutricionistas.

FP- Bem interessante mesmo.

TC – É, eu não podia deixar.

FP- Como um movimento de resistência da sociedade civil.

TC- É. Na minha tese eu tenho uma leitura do Éder Sader, que eu fiz questão de colocar, porque eu acho que retrata exatamente esse momento. Em que ele diz que a Igreja, foi quando a Igreja, os sindicatos passaram a ter um link, e passaram a falar com a voz, uma voz coletiva, né. E eu, aquilo ali eu não quis tirar. Me lembro que Mario Hamilton achava assim meio... essa leitura. E o Éder Sader, que eu nem sabia que tinha morrido – na época eu até procurei uma ex-mulher do Emir, e falei: “Nilza, e o Eder?” Ela: “Onde você anda desenterrando meu ex-cunhado?” [risos] Falei: “Eu não tenho notícia dele, eu quero encontrar esse cara, levar pra falar... eu gosto tanto do pensamento dele.” Ela disse: “Morreu, Tânia, há muitos anos atrás.”

FP- Desenterrar literalmente.

[risos]

TC- Mas o livro dele “Quando Novos Personagens Entram em Cena” é lindo, é emocionante. Bom, atualmente estou lendo “Casa dos Espíritos”, estou revisitando o mesmo contexto no Chile. Igualzinho lá, impressionante como coisas que a gente viveu, exatamente igual no contexto chileno....

CH – O CETRE.

FP – 1978 você chega ao CETRE.

TC – Então.

FP- Qual o panorama de recursos humanos na saúde da Bahia, no momento? Foi a pergunta que eu botei aqui. Cabe?

TC- Eu diria que… dá pra recortar. O governo de Roberto Santos. O governo de Roberto Santos, que é assim, um professor, comportado e que era o opositor ao Antônio Carlos Magalhães, então, toda vez que ele assumiu os governos – porque ele se alternava entre um e outro, lá na Bahia – toda vez que ele assumia, toda a área de ensino, educação e projetos sociais, ganhava. Era um fazendeiro nesse período já, um fazendeiro que se candidatou a deputado seguidas vezes, mas ele dava muito espaço para os progressistas.

FP- E médico.

TC – E médico. Bom, qual era a rusga dele com ACM? Era uma briga que os pais deles tiveram na faculdade de medicina, ou foram eles mesmo, em que um deu um tapa no rosto do outro – numa briga dessas controvérsias de departamento – então eles se bateram … e até o Guilherme Rodrigo da Silva, que era contemporâneo deles, saiu da Bahia nessa época, enfim, porque não agüentava o contexto deles lá, brigas deles. O ACM sempre foi um cara muito… vocês conheceram publicamente. Era um grupo, tinha gangue da Ribeira lá, tinha um grupo do Campo da Pólvora.

FP- Campo da Pólvora?

TC- Campo da Pólvora, era em frente ao Fórum Rui Barbosa, que é o nosso Fórum grande lá. Uma turma lá da pesada que o ACM fazia parte. Então ele era danado, ele sempre foi assim desde muito novo. E parece que essa briga lá – é o que contam, eu não conheço de escrito, eu acho que já tem tese e trabalharam essa história – e eles trouxeram isso para a política. E o Roberto Santos, sempre um gentleman , conservador, muito conservador. Eu trabalhei no ministério na época que ele era ministro, e era aqui do Rio.

FP – E isso resultava em MDB [Movimento Democrático Brasileiro] e ARENA [Aliança Renovadora Nacional]?

TC- Em MDB e ARENA, os dois partidos da época. Então a progressista, o MDB autêntico, acompanhava o Roberto Santos, que era nosso par. Ele construiu o projeto e tinha muita gente interessante do MDB autêntico. Aquele grupo da Secretaria de Planejamento, aquele rapaz por exemplo, foi preso saindo da secretaria, o que organizava lá as coisas mais progressistas, o planejamento estruturado, cepalino, eles estavam lá. Foram presos e foi um trabalho, aquele Albérico [?], encapuzado, foi uma coisa muito complicada. Mas, o contexto baiano era, então, o governo de Roberto Santos, e a gente chegou, cheguei a transitar por outro. No CETRE ainda era Roberto Santos. Tinha uma coordenadora chamada Terezinha Moreira, já falei um pouquinho sobre ela de vocês, era uma educadora, vindo da Secretaria de Educação. E nesse contexto se faz o PPREPS em Brasília, com a preocupação, então, de somente registrar e socializar também. A preocupação do PPREPS, depois da Sétima Conferência [Nacional de Saúde], a sétima conferência veio legitimar o modelo de expansão do sistema de saúde brasileiro, porque não crescia unidades de saúde, quer dizer, a população crescia, os problemas de saúde pública. Os militares já nos estertores da ditadura querendo dar respostas, não era só mais o modelo econômico que Delfim Neto mexia, mas precisava ter políticas compensatórias, e aí veio a expansão do sistema, o [?] Carvalho quase que coordena a conferência, a sétima conferência, eu participei dela,em Brasília. E nos estados… aí começa a tomar corpo, porque esse convênio com os estados… o recurso foi jogado aqui na FIOCRUZ para a elaboração dos convênios com os estados. E a área de recursos humanos passa a ter, pela primeira vez, dinheiro na mão para fazer cursos, renovar os cursos… e avançar… paralelo, era tão importante discutir política de saúde,a renovação das políticas, a teoria da integralidade, a gente discutiu ali muito, muito. Foi muito rico essa discussão. A relação estado e governo federal, que não queria mais os programas verticais. A relação com a tuberculose que era uma turbulência, que elas eram muito autoritárias. E aí fomos do CETRE com o grupo de serviço, né. O que é que aconteceu? Os alunos do curso de Saúde Pública foram todos levados para a secretaria, inicialmente pelo Zé Hermógenes, e depois, ele secretário, foi trazendo os alunos das outras turmas. Renovou substancialmente as turmas da secretaria, alguns alunos de mestrado também eram trazidos. Porque na Bahia sempre teve uma relação – sempre, que eu digo, é desse período que eu conheço prá cá, final dos anos 70 – entre a Preventiva e a Secretaria de Estado, pode ter uma relação, porque eles não têm poder. Então eles sempre conservaram, como tem até hoje, uma relação de integração muito grande ensino-serviço, que a gente pode dizer que ali se objetivou. O perfil dado pelo Sebastião Loureiro, Jairnilson Paim, ora pela Joselita Macedo que era muito amiga de um irmão de ACM. Então sempre teve relações fraternas, digamos assim e de reconhecimento da importância do movimento sanitarista, que o Departamento de Medicina Preventiva da época e depois o Instituto de Saúde Coletiva, faziam. E eles, na época, influenciaram muito o nosso trabalho. Bom, aí vou falar um pouquinho desse contexto. Então faz-se o convênio com o CETRE. Terezinha Moreira era uma pessoa muito preparada, aplicada – ela era, acho que prima do Ubaldo Dantas, secretário, que saiu candidato, aí José Hermógenes assumiu – ela permaneceu com a gente no CETRE. Recebeu visitas desses técnicos pelo PIASS [Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento], mas o Chicão [?], que era o coordenador - não, primeiro foi o José Hermógenes, depois foi o Chicão .

FP – Hum.

TC – Depois do José Hermógenes, ele o substituiu, parece que foi essa a ordem, em Brasília. Mas o Chicão…

FP – Isso pelo PIASS.

TC – Pelo PIASS.O… Nós vamos alargar essa coisa também?

FP- Dá , fica à vontade.

TC – Mencionar o PIASS também?

FP – Se você quiser, fique à vontade.

TC – Tá. O [Alberto] Pellegrini [Filho] e o [Ricardo de Freitas] Scotti, que esteve no CONASS até bem pouco tempo. Essa figura, além do Cesar Vieira – muito, porque o Cesar Vieira era o mentor, ele fazia meio uma…

 

FP – Cesar e Pellegrini vinham pelo PPREPS?

TC – Vinham pelo PPREPS, é. E o [Francisco] Salazar também. E pelo PIASS, Pellegrini, ele era PIASS.

FP- Ah, é?

TC- Pellegrini era PIASS.

FP- Depois que ele vai.

TC – O Scotti e o Pellegrini pelo PIASS.

CH- Só depois que ele vai.

TC- Porque ele vai para Washington. Pellegrini eu acho que não trabalhou aqui em Brasília não.

FP- Mas ele vai pro PPREPS.

CH- Ele volta, ele vai para o PPREPS na verdade, na infra-instrutura.

TC – É? Eu não me lembrava.

CH- Já é a abertura programática do PPREPS, no final da década de oitenta.

TC – Bom, então eles faziam essa, era uma assistência técnica mobilizante, politizada e a ordem era inovar. Não fazer, não repetir, era inovar e eles discutiam. Articulado com Minas Gerais, onde estava o Eugênio Villaça Mendes, em Minas Gerais, era uma iminência parda, continua sendo lá em Minas. Já teve saída dele, foi muito importante, muito, ele era uma pessoa muito interessante. Hoje é que ele voltou para Minas e está nesse mesmo lugar de iminência parda. Mas também foi secretário, ele entra no aparelho de estado e ele se compromete, Eugênio é uma pessoa que se compromete, sempre foi assim. E tinha Montes Claros, que era um núcleo de pensamento e de renovação, onde estava o [José] Saraiva [Felipe], onde estava o…

FP- Francisco já estava lá? Pela Universidade.

TC – Francisco Campos não. A origem de Francisco Campos é na Medicina Social pelo PESES [Programa de Estudos Sócio-econômicos em Saúde]. Ele entra pelo PESES. E se articulam, eles se articulam, mas a coisa dele é da medicina social, um outro grupo. A gente pode uma outra hora, mais na frente com vocês, fazer esse desenho das turmas, porque eu acho que localiza alianças e como elas tinham se movido nesse momento.

FP – Eu acho, eu acho.

TC - Mas aí, o Eugênio começa a ser chamado pela secretaria de estado, pelo José Hermógenes pra fazer palestras. Meu primeiro dia de trabalho foi para assistir palestra de Eugênio, falando do sucesso das políticas que eles estavam implementando lá em Minas, entre as quais estava a renovação da formação de pessoal. O que é que eles fizeram? Naquele momento era muito importante você trabalhar com exemplaridade – até hoje a gente ainda tem isso como estratégia na política, na governança, né – e eles escolheram um lugar chamado Porteirinha. Você que é mineira, Rosana [Arantes], é capaz de conhecer. Não, é? Localizar bem. Então, em Porteirinha, este lugar, vamos dizer, tinha uma escola modelo. E lá foram treinadas as atendentes rurais, novas atendentes rurais. Não era pra fazer curativo e injeção – nosso discurso era esse mesmo – curativo e injeção é do ortodoxo, nós queremos auxiliares de saúde que pensam, que reflitam a realidade social, que… E aí Porteirinha era o lugar onde se experimentava isso. E junto com essa idéia, essa missão de superar a cultura do curativo e da injeção, tinha também uma discussão de prática pedagógica pesada. Eu até hoje não sei quem que foi… acho que foi o grupo da política, porque não tinha pedagogos nesse lugar, mas na verdade era uma abordagem paulofreiriana . E o Paulo Freire, o Paulo Freire, a abordagem de Porteirinha era principalmente de que o agente falasse, que trouxesse sua experiência, que discutisse, que a gente formatasse, que os professores formatassem as coisas por essa, tomando respeito a história pessoal de cada um, que é a educação que Paulo Freire trás.

FP- Você não vê conexão, digamos assim, entre esse conteúdo pedagógico e o PPREPS, agora?

TC – Vejo.

FP – Ah, é?

TC- Foi… se criou… o PPREPS é o desenho institucionalizado da expansão do sistema, com uma cartilha nova de dez pontos do PAEF [Programa de Assessoria para Editais de Financiamento] que deveria guiar – as nove diretrizes – que deveriam guiar as noções dos estados. No Estado da Bahia, como em Minas Gerais, esse era o nosso guarda-chuva – estamos vivendo uma ditadura, né Fernando, lembra, lembremos disso. E a gente pegava qualquer coisa que fosse progressista – a gente que eu digo eram vários que se juntavam - pra poder traduzir em práticas que levassem aos grupos sociais, dentro do aparelho de estado ou fora dele, a problematizar a realidade. Ou seja se organizar contra uma coisa que era a ditadura, com suas várias representações. Então vem Porteirinha, o PPREPS institucionalizado e – vocês e eu , a gente já estudou o PPREPS por dentro, sabe como foi que ele chegou nos estados, né, daquela aliança OPAS e Ministério da Saúde, MEC .E aí a Terezinha e o Ubaldo, lá, eles escreveram um projeto baiano - eu acho que foi o único estado … por isso que eu digo a vocês, eu acho que é importante estudar a Bahia - que chamava PTHIER, P – T –H … eu não me lembro.

FP - PTHIER

TC – Programa de Treinamento Estratégico. Eu sei que tinham o PPREPS nacional , e o PTHIER que ela falava com … muito falante Terezinha, e ela falava desse PTHIER, porque na verdade era um planejamento estadual de como se traduziria ali, naquela versão estadual. Pra nós isso foi muito bom, porque a gente tinha o estímulo federal das grandes políticas nacionais, a ida do Eugênio periódica, a ida do Chicão. Chicão era do quadro do partidão, muito estruturado, muito. É um cara que… não sei se a Casa de Oswaldo Cruz já fez entrevista.

FP – Não.

TC- Eu acho que tem que fazer, porque ele era um quadro, era uma figura que influenciou muito e em muitos ciclos. Minas, depois ele foi morar em Alagoas depois desse tempo, saiu do emprego. Uma pessoa que… E ele estruturava um discurso, porque ele era duro. Quando a gente queria muito negócio de base, ele tencionava, comumente a gente emendava os vigores. A gente já queria que o poder local…

FP- E era partidão?

TC- Ah, quadro… absolutamente alinhado, com Eleutério [Rodriguez Neto], [Sergio] Arouca. Era partidão. E ele, claro, era partidão, e com temperamento bem vigoroso. Mas também muito doce, tornou muito aliado com a gente, claro fazia parte da estratégia. Mas ele também era uma figura bacana. Ao longo da história eu aprendi a gostar muito dele. Mas ele era duro. E aí se estabelecem essas alianças, curso de Saúde Pública, que aí vai levando alunos. Teve até denúncia pro Palácio do Planalto, em telex – não tinha nem fax – um telex e nós já do CENDRHU [Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos], quase morremos, uma noite inteira preocupados se seríamos presos ou não. Mas, por uma aliança com a ENSP, o Mário Hamilton e o Arouca e Arlindo [Fábio Gómez], eles mandavam alunos de uma residência daqui do interior da Bahia pra fazer estudo. E o CETRE também era um lugar que mandava os alunos pra Itapetinga, uma cidade lá. E o resultado dos trabalhos dos alunos foi questionar o sistema, não sei que, e foi parar no SNI [Serviço Nacional de Informação]. Aí o SNI mandou um telex pra o Jorge Novis, que era o nosso secretário, que felizmente era uma figura belíssima, um caso a parte nessa história. Governo de ACM já, aí já era o segundo governo já. Dentro do CETRE, quer dizer eu ainda dentro do governo de Roberto Santos, um ano e meio depois … nós terminamos o governo de Roberto Santos com uma proposta de estruturação do CETRE. Porque ao mesmo tempo que eles estimulavam a história de Porteirinha, do auxiliar de saúde, o embate com a tuberculose, que a gente teve que tencionar com o grupo porque fazia as coisas…

FP- Qual era a natureza desse embate da tuberculose?

TC – Eram as práticas que eles queriam impingir. Eu vou contar , eu fiquei na dúvida se contava, porque é “causo” , mas é emblemático. A tuberculose tinha um treinamento para aplicar BCG, para auxiliar de enfermagem. Para você ser considerado habilitado, apto pra aplicar BCG, você tinha que fazer cem BCGs. Se você fizesse noventa e nove não podia aplicar no serviço. E armou-se discussão, já mobilizado por Porteirinha, porque as pessoas são diferentes. Porque aí a gente passou a estudar essas coisas, e conversar e fazer, e a história da autonomia a gente começou a discutir com eles que, aquelas regras que eram feitas nacionalmente nem sempre se aplicavam, porque as pessoas são diferentes, e que a gente deveria construir, portanto, critérios de avaliação diversificados para além das doses. Porque podia ser uma pessoa inábil que as cem doses não habilitassem, mas podia ser que com vinte aquela pessoa… ah, não, não prestou. “E você aí com esses seus – isso era comigo – com essas suas idéias progressistas , esse negócio aí, vocês querem acabar com o programa, é isso que vocês querem.” Outra coisa era o planejamento da tuberculose, se até unidade, individual, e gente dizendo que não, que ela tinha que entrar na matriz de planejamento. Isso porque, até um dia desse eu estava falando com a Virginia [Almeida], nesse contexto todo e a nossa aliança com a Universidade, e aí Jairnilson já estava completamente apaixonado por essas, por esse desenho, né, e ele se dispôs a montar com a gente o primeiro plano estadual de saúde. Utilizando as idéias que a gente estava discutindo entre PPREPS, coisa – e tinha lá no PPREPS também integração docência –assistencial, e ele já fazia um misto de distrito sanitário. Que era mais um projeto local, Alto das Sombras e Nordeste de Amaralina, tudo isso veio junto. Aí ele se dispôs. Bom, na unidade de planejamento da secretaria tinha um psiquiatra muito progressista chamado [?] Neri. Doutor Neri, e ele abrigou muitos cepalinos - nessa idéia de planejamento- o Trípoli Galdez, o Edson Diniz , e eles eram muito cepalinos mesmo. Só que nós incomodamos. Então, quando a gente chegou , a gente queria discutir o poder local e isso não cabia no escopo de planejamento cepalino deles, eles tinham uma matriz. E aí, por algum arranjo, e porque o Neri era psiquiatra e o Naomar [de Almeida Filho] também era psiquiatra, o Naomar punha pra dentro da assessoria de planejamento. Naomar de Almeida Filho que hoje é o reitor da Universidade da Bahia. Nisso, se dá uma crise enorme com o vestibular de medicina - não sei se foi uma coisa só baiana ou se aconteceu em alguns lugares – que os alunos eram aprovados e não classificados. Virginia [Almeida] deve conhecer porque estudou bastante vestibulares aqui na UFRJ. Era o início do controle, né, Virgínia? Dos alunos, das origens e como… Aí publicavam resultados e os alunos não classificados ficavam de fora. Aí, uma turma de pais entrou na justiça e conseguiu que aquela turma toda dos aprovados não classificados, fossem classificados. Com isso a Universidade dobrou o número de vagas que permanece grande até hoje. Nessa época o Naomar já era professor lá da medicina e na assessoria de planejamento nossa, com dupla militância. Nós que tínhamos aquele negócio de ser dedicado ao aparelho de estado, mas não podia ter dupla militância. Mas ele era encantador e aí ele vai no CETRE discutir esse assunto comigo. Por quê? Esse CETRE, na verdade, tinha um bocado de enfermeiro. Aí veio uma pessoa da Preventiva, que era mais estatística – até hoje ela é professora de estatística de lá, [?] Conceição – de uma enorme abertura, veio uma outra da Preventiva que terminou não ficando nem dois dias, foi lá pra cima - que é a Vera Fomigli, excelente planejadora, uma cabeça maravilhosa. E eu fiquei lá junto com essas enfermeiras, que tinham… eram super ortodoxas, todas formadas pela história do…

FP- Da tuberculose.

TC- Da tuberculose e do materno-infantil. Esses programas tinham dinheiro também. Viu? Então, o materno-infantil, por exemplo, tinha cargos, tinha coisa. Tinha algumas benesses que elas tinham, que eu não saberia dizer o que eram ou se era só ideologia. Mas tinham poder. A mesma coisa dos cepalinos lá da ASPLAN [Assessoria de Planejamento]. Então essa equipe jovem, ela foi se imbricando e aí se montando estrutura de planejamento também, na secretaria dos chamados GCA, Grupo de Coordenação e Apoio às DIRES [Diretorias Regionais de Saúde]. E já era a idéia de descentralizar – e aí veja que se encontra lá com a matriz da merenda escolar – para as DIRES, Diretorias Regionais de Saúde do estado, que é uma matriz também de Minas Gerais e alguns outros lugares fazem. São Paulo faz um pouco diferente. Mas as DIRES persistem até hoje, a descentralização dentro do estado. E nessa discussão o Centro de Recursos Humanos, então, ganha muito protagonismo. O que é que a gente faz? O GCA que era da unidade de serviço, de planejamento e serviço, tinha um membro correspondente do GCA …do Recursos Humanos. Eu faço assim, porque o Recursos Humanos é o subsolo, e a unidade de serviço de saúde é o primeiro andar [risos], numa casa belíssima, que hoje é o museu, em Vitória, na Bahia. E aí cada um convidava a pessoa que queria. Fui convidava pra dois e aí fiquei no de Alagoinhas – era a terra de meus pais, queria trabalhar um pouco lá naquela região, enfim pela afinidade. Mas o Renilson [Rehem de Souza] que era do GCA 12 , foi secretário recentemente, ele chegou a me convidar para o GCA dele , em outra região. Mas, enfim, essa discussão de planejamento e da descentralização foi muito interessante, quer dizer juntou o plano estadual de saúde, juntou uma nova estruturação para assistir e dar poder ao grupo mais local, e mais as mudanças que o PPREPS propunha. O laço com o pessoal de Recursos Humanos foi, eu diria, um embrião fantástico do PPREPS –SUS. Já chega na oitava Conferência [Nacional de Saúde] com uma coisa muito interessante. Mas no CETRE tem uma particularidade …

CH - Tânia, posso te fazer uma pergunta, pra…

TC – Pode.

CH – Fiquei com uma dúvida aqui, que é a seguinte: você disse que seu primeiro dia no CETRE foi justamente uma palestra com o Eugênio [Vilaça Mendes].

TC – Que ele deu pra secretaria inteira.

CH – Pois é, e você remeteu à experiência mineira. A gente está falando de formação de pessoal auxiliar...

TC – É, ele misturou o conteúdo de regionalização/descentralização com formação de pessoal auxiliar. Na verdade ele tinha idéias reformistas do aparelho de estado, que é isso que essa fase informa, e essas idéias reformistas ele preparava umas palestras levando o caso de Minas com um certo ufanismo. Aí também ele informava a relação com Montes Claros, precisava dizer que a Universidade apoiava lá também. Ele tem, até hoje ele tem isso. Ele fala do projeto com muito entusiasmo. E a gente: “poxa, deu certo lá, porque não pode dar aqui?” E a gente nem seguia e aí…

CH – Aí eu te pergunto assim: nessa mesma época se encontrava fonte desse debate no PPREPS também? Sobre formação de pessoal auxiliar? Ou o debate ainda era muito forte somente a respeito da IDA, formação de nível superior, em 76,77,78?

TC – Não, era do PPREPS. Esse discurso era do PPREPS. O PPREPS e PIASS. PPREPS e PIASS era uma coisa só. Eles não eram dois programas que atuavam paralelos, as equipes eram mistas sempre, as palestras mixavam tudo.

CH- Porque eu estou pensando particularmente num debate sobre educação mesmo, no ensino.

TC – Eu ia introduzir a Hortênsia Hurpia de Hollanda, quando nós voltamos com isso aqui porque eu acho que é importante mesmo significar. Porque é a idéia de descentralização é importante, muito importante pra nossa rede. As origens da história dos cursos descentralizados também. Mas eu acho que era isso, a descentralização, renovação das práticas pedagógicas. E a integração docente-assistencial, ela existia como rubrica. As tentativas federais do PPREPS de fazer – como eu disse a vocês um dia desse – era de fazer um projeto muito… elas não vingaram e pra checar isso eu acho que pode.

FP- Esse PTHIER não tinha um componente da integração docente-assistencial?

TC – Você sabe que eu já não me lembro, Fernando. Eu acho que ele tinha um foco muito grande na formação de pessoal auxiliar, na expansão do sistema no estado. Mas eu acho que não tinha a integração docente-assistencial, talvez citavam.

CH – Já nessa chave mais progressista, de educação, conscientização.

TC- Ele não tinha um detalhamento… ele era planejamento, né. A Bahia queria demonstrar que ela tinha comprado essa idéia e de que ela tinha uma idéia sua. O secretário da época e a Terezinha, eles tinham muitos laços com a Secretaria de Educação, então queriam aproximar, fazer coisas mais próximas. Ao mesmo tempo, terminou o Ubaldo [Dantas] buscando um dinheiro no Banco do Brasil em Brasília, que chegou já na gestão seguinte. Eu fui quem estruturou o projeto de pesquisa pro auxiliar de saúde. Mas foi ele quem conseguiu indo a Brasília. Era o único projeto que financiava coisas da saúde era esse, e foram os laços pessoais. Era um projeto chamado FITEC, era uma linha de financiamento do Banco do Brasil chamado FITEC. Uma coisa pessoal dele conquistada.

FP – Deixa só, duas perguntas ligeiras. Quando você fala.

TC – Temos que voltar à coisa da educação, Fernando.

FP- Tá, só pra assim. Quando você fala nas DIRES da Fundação de Saúde da Bahia, você está falando das redes de assistência mesmo? Regionalização das redes de assistência.

TC – É. Aí é a estruturação do sistema estadual de saúde. É mais gestão do sistema do que…

FP – A rede prestadora.

TC – A rede prestadora era ligada a essas DIRES. Cada região tinha o seu hospital regional. E nisso o Roberto Santos foi fantástico.

FP – Tinha uma coisa de hierarquização?

TC - Criou-se alguns hospitais mais locais mesmo. Tinha um desenho, um embrião.

FP- Uma coisa de distrito de saúde.

TC – É.

FP- Como conceito.

TC – É. Mas o desenho das unidades que se complementavam vocacionalmente, com a DIRES, que na verdade virou um lugar muito político. Então foi muito difícil ver o desdobramento. Mas por dentro delas a gente pode até fazer um curso de Saúde Pública para fortalecer as DIRES e lá renovamos também as equipes com pessoas novas. Aí já foi mentor o Mário Hamilton, que desenhou com a gente esse curso, todo o conteúdo dele era voltado para a área regional. Foi um alinhamento de conteúdos, importante para estruturar as regionais da Bahia.

FP – Ok.

CH – A pergunta que eu fiz, no fundo - não sei se o Fernando partilha da mesma inquietação, eu tenho impressão de que este componente mais freireano da educação, não está à primeira hora no PPREPS.

TC – Não. Pelo contrário. Havia uma dissidência, ora explicitada, que a gente não entendia muito, que eram brigas pessoais. A Izabel dos Santos é uma pessoa vinculada ao partidão – era do grupo mais do partidão – e ela tinha uma experiência vigorosa. Eu intuo, Fernando, nem sei se era tão alinhada, eu intuo, não sei. Mas ela trás do nível local uma experiência fantástica. Ela é uma mulher negra, que adotou cinco ou seis filhos, ela nunca teve filhos, ela criou sozinha, não tinha marido, ela foi adotando. Ela pegou a bandeira do auxiliar de saúde com muito vigor, de lá da unidade. Não tinham nome, não tinham sindicato, não tinham defesa, estruturação de carreira, não tinham nada. Daí a matriz do Larga Escala e a liderança dela. Então ela levou tudo isso pra OPAS e fazendo o PIASS. Pra nós foi interessante isso. Então ela era a liderança que estruturava essas coisas. Acontece que essa idéia de Porteirinha, não sei que, que eram idéias freireanas revisitadas, não sei que, na verdade, deviam existir outros mentores educacionais que não Paulo Freire. Porque essa turma que amparava Porteirinha, eles não faziam estilo Paulo Freire, a discussão era da política mesmo, a internacionalização. Então vocês vão ver o depoimento de Arouca para meu trabalho, de internacionalização, de alianças, do próprio partido, com rebatimento na saúde. Mas existia uma mulher chamada Hortênsia Hurpia de Hollanda, nesse pedaço aí, que era muito rebelde. Era uma mulher rebelde, mas uma grande mulher, eu tenho a impressão de que ela não morreu ainda.

[risos]

FP- Não.

TC – Gente, porque alguém tinha me dito que ela tinha morrido, mas está com noventa e tantos anos, acho que não está no nosso plano de consciência. Mas no meu memorial eu descobri que ela foi uma pessoa que me influenciou muito, como gente, como mulher, como pessoa e principalmente na estruturação do pensamento. Quando mudou o governo então – vou voltar pro CETRE – mudou o governo, a gente tinha esse projeto na mão, e eu era então da equipe, aquela que identificada com o pensamento mais progressista. Aí eu já estava vinculada ao curso de Saúde Pública, em determinado momento Terezinha me deu o Curso de Saúde Pública. Eu coordenava toda uma…

FP – Você fala o curso de Saúde Pública descentralizado?

TC – Descentralizado. Lá sempre foi pelo descentralizado. Então eu acumulava uma coordenação, que eu já não me lembro o que era, no CETRE, e ao mesmo tempo o curso especializado. Mas era muito trabalho, o curso dava muito trabalho, pra você fazer de forma descentralizada, acompanhar a progressão dos alunos. E aí um dia eu disse: “Terezinha, ou eu fico aqui ou eu vou pra lá.” Porque eu e ela fizemos uma aliança muito boa de estruturação de coisas novas, e ela sentia, se sentia muito apoiada, porque a outra turma era realmente muito casca grossa do ponto de vista de absorver inovações. Elas eram enfermeiras, muito bem formadas, uma até professora da Universidade. E a gente fazia aquela relação doce e discutia: “Mas como, você todo dia tem que ir lá no posto pra pegar a freqüência dos professores, você não tem uma pessoa, que tá lá dando o curso, que possa fazer isso?” “ Como vou fazer isso, e se ela forjar?” “Só você que é honesta no mundo?” E umas coisas assim, e ela ria. Sabe, essa era a Marilene [?], a mais e a mais difícil. Era assim. Vamos fazer uma aliança tácita, ali dentro, com procedimentos progressistas conquistando os outros – a mesma coisa que o SESP [Serviço Especial de Saúde Pública] aqui, o que foi possível fazer quando virou para a Nova República – e elas gostavam, que as pessoas, respeitando os mais velhos como eram, e as coisas que elas faziam. E a gente enchia a bola, que eram coisas vigorosas, aprenderam na matriz, mas eram coisas vigorosas. Então a gente foi fazendo essa aliança e Terezinha se sentia muito apoiada. Um dia eu disse pra ela: “Eu não agüento, eu tenho uma filha pequena” – quando eu fui pra lá eu tinha uma filha com três meses – “e eu não consigo ficar no CETRE, numa coordenação dessa, ficar lá no Curso de Saúde Pública”, que era uma inovação, e era uma descentralização, então tinha regras pra cuidar e tal. E tinha lá, eu era vice-coordenadora do curso, tinha um coordenador da Fundação SESP, porque isso também tinha um certo acordo. A Fundação SESP tinha uma importância no curso de Saúde Pública e barganharam a coordenação da Bahia, que era Benicio [?], o nome dele era Benicio, pessoa muito ortodoxa mas muito fraterno, ele sabia os limites dele, então fez comigo uma aliança maravilhosa. Cuidava da freqüência, dos relatórios. Era uma pessoa assim, mais muito ortodoxa mesmo, muito comportado. Mas um caráter e uma pessoa ótima. Preciso ajudar Benicio de uma vez a cuidar desse curso de Saúde Pública. E ela me liberou: “Então vai, quando terminar você volta pra cá.” Quando eu voltei estava mesmo no fim do governo. E nós, toda vez que iam os dois de Brasília, o Cesar [Vieira] e o [Francisco] Salazar, nós fazíamos, avançávamos no projeto estruturante daquele centro. Porque lembram, que tinham os centros locais, regionais nos estados, era uma das coisas que o PPREPS tinha apontado. Tem que estruturar os órgãos de recursos humanos das secretarias.

FP- No caso da Bahia era esse CETRE?

TC- Era esse CETRE que virou CENDRHU numa reforma. Já propus … e aí nesse momento, termina o governo de …

FP – De Roberto.

TC – Roberto Santos, e ganha o ACM. Terrorismo puro. Vocês não conseguem imaginar o terrorismo. E no CETRE a gente estava com projeto quicando na mão. Porque estava muito bonitinho, contemplava descentralização, os recursos estratégicos, aliança com a ENSP, os cursos de Saúde Pública. Cada coisa a gente sabia direitinho.

FP – E o dinheiro esta onde? Estava na OPAS ou na Secretaria?

TC – Não, o dinheiro era daqui .

FP – FIOCRUZ.

TC – A OPAS. A FIOCRUZ fez um convênio.

FP – Com a Secretaria?

TC – Com a Secretaria. Mas veja. Veja como são os caminhos do planejamento e da política. O presidente da FIOCRUZ chamava Guilardo Martins Alves. Guilardo Martins Alves vinha a ser compadre, padrinho de um dos meninos… não sei se o Novis era padrinho de um dos filhos dele ou se ele que era padrinho de um filho de Jorge Novis, que foi o secretario escolhido por ACM. ACM tinha isso, ele escolhia em algumas áreas gente de muita respeitabilidade. E o Novis era o que você podia imaginar de sério, respeitado , uma liderança. Em algum momento da ditadura dizem que ele não deixou a polícia entrar na faculdade de medicina. Então também se tornou uma pessoa muito respeitada pelos alunos. E era um negociador, e tecia negociação assim, falava baixo. E tinha saído de um AVC [Acidente Vascular Cerebral], então ele chegou na secretaria de boquinha bastante torta, tinha sessenta e um anos, teve o AVC. E foi colocado na secretaria. Entro em férias, numa casa que eu tinha, de praia, tirei minhas férias e fui pra lá no meio de janeiro, na beira da praia. Aí o secretário conversou com o doutor Guilardo, numa das visitas lá da Bahia e tal. Bom, primeira coisa que ele fez foi pedir ao Carlyle [Guerra de Macedo], porque aí o PPREPS tinha muita importância, o Carlyle sabia fazer muito bem política. Levou, deu no jornal, que o Carlyle estava no palácio, não sei o que e tal. Então o governador o chamou , levado pelo Novis para ajudar a estruturar, na verdade, os hospitais que já existiam. Queria estruturar uma coisa mais bacana. E o hospital Roberto Santos que já estava inaugurado, no projeto de regionalização do Roberto Santos. Eles fotografaram as áreas que estavam ruins, eles queriam salvar a regionalização que o Roberto Santos tinha, não tinha feito bem. E aí chama o Jorge Novis, e o Jorge Novis fala com o Carlyle, vai lá e tal. Aí o Guilardo, daqui diz assim: “Tem lá um órgão de Recursos Humanos, parece que tem um negócio de educação.” Deram uns documentos pra ele. Doutor Joãozinho Veneno, que já morreu, que era o homem do planejamento – um velhinho muito interessante, falava assim. Aí o Doutor Joãozinho Veneno deu a ele : “Olha, aqui está acontecendo isso, tem tal documento.” E o nosso documento foi pra mão do secretário. Aí o secretário leu e o doutor, conversou com o Guilardo: “Ah, eles têm até um trabalho, que foi feito pelo PPREPS, pelo Carlyle. E tem um documento bastante interessante.” Aí ele falou assim: “Eu não conheço. Sei que lá tem um curso da ENSP.”

FP- Quem disse que não conhecia?

TC- O Guilardo. Não conhecia as pessoas direito. Ele falou: “Vieram duas pessoas na última avaliação do curso.” Por que tinha avaliações dos cursos aqui eram monumentais, tinha jantar a noite, primeiro com o Guilardo, água de coco lá em cima, no castelo do Mourisco. E depois, com o Vinicius Fonseca, que apoiou muito isso até criando, associação, estimulou a gente a criar uma associação local de sanitaristas, a partir dos cursos. Na casa dele, com um jantar, com abacate com camarão dentro, muito lindo, ali do lado de fora. Então era muito prestigiado.

FP- Aqui?

 

TC – Aqui, na residência. Já morava… na outra administração. Mas o Guilardo fala com o Novis que vieram duas pessoas. Uma era muito esquentada – era a Fabíola, era a Fabíola de Aguiar Nunes – já com o Roberto Santos derrotado. E ela pintou horrores quando falaram alguma coisa lá do governo, ela pulou, colocou: “Não é verdade, isso é mentira, estão falando mal do Roberto Santos.” Ela era amiga pessoal do Roberto Santos. “E uma outra – que era eu – que tinha um jeito assim, assim, moça. Porque você não manda chamar, tem muito boa relação com a ENSP. Porque você não manda chamar.” E aí o Novis chama o Doutor Joãozinho Veneno, que era esse.

FP – Joãozinho Veneno.

[risos]

TC – Isso éramos nós, os jovens sanitaristas que botamos o apelido dele assim. Que ele dizia assim: “Quando me enche o saco eu rasgo e jogo no lixo.” [risos] Aí ele disse a Joãozinho Veneno, falou assim: “Gosto muito dessa menina – era eu – gosto muito dela, trata todo mundo bem, não sei o que e tal, e tem idéias, ela defende as idéias dela. Mande chamar que eu quero falar com ela.” Aí doutor João mandou um carro em Tacimirim , perguntou onde era não sei o que, mandou um carro e dizia que o secretário novo queria receber Tânia Celeste. Vocês não imaginam o que me perguntaram. Quem era meu padrinho político, porque no governo de ACM virei diretora de primeira ordem. Porque era um terrorismo na secretaria que todo grupo de esquerda ia ser defenestrado, e que jogaram mesmo as memórias, muita coisa fora nas outras áreas que não foram ocupadas. Os progressistas eram todos carcomidos. Aí eu falei: “Doutor Jorge Novis, eu não lhe conheço.” Ele me fez uma pergunta: “Como você organizaria, eu tenho uma preocupação – veja que técnica – tenho uma preocupação com essa divisão entre preventivo e curativo.”

FP- Jorge Novis.

TC – É, Novis, muito experiente ele: “é uma briga aí do pessoal que cuida da prevenção e da …” E a gente tinha abordado os tópicos, como era importante a rede e o hospital não devia ser colocado como algo a parte, porque devia ser uma coisa da Saúde Pública integrada e tal. O embrião do sistema que depois a gente foi discutir. Aí eu soltei o espírito enlaçador que eu tenho [risos] , e que aprendi lá trás. Aí eu falei assim: “Olha, no nosso documento, não sei se o senhor lembra, a gente até aborda isso, a gente acha que é a rede de atenção, quer dizer a população é que …” Ele adorou: “Ah, minha filha, eu gostei muito de você, não sei o que.” Me abraçou, me beijou e eu fui embora. Ele falou: “Olha, eu quero que você vá… vai ter uma reunião na OPAS na próxima semana, vai ter umas avaliações de um programa chamado PIASS e PPREPS, eu quero que você vá, já representando a secretaria. Você pode sair de suas férias?” Eu: “Posso. Eu acho que vai ser uma boa oportunidade, eu tenho muita afetividade por esse trabalho que vai ser avaliado. Eu vou. O senhor acha que eu posso ir.” “Eu quero que você vá. Eu vou conversar com meu pessoal e já vou mandar pra tirar sua passagem. Vou conversar com o grupo de Brasília.” Lá me fui, eu, pro meio dos companheiros, né. Chego lá e encontro Cesar Vieira, que a mulher estava viajando. E aí o Cesar Vieira me chama pra jantar e aí eu contei pra ele: “Cesar, Jorge Novis me chamou pra uma coisa de saúde.” “Ele vai te convidar para ser diretora e você vai ter que aceitar.” Eu falei: “Mas eu não sei dirigir.” “Mas se não sabe vai aprender. Ele vai lhe convidar. Olha, ele já perguntou ao Carlyle, e Carlyle disse a ele, se ele tivesse consultado quem deveria ser, ele teria indicado você.” E aí pronto, quando eu voltei, Doutor Jorge realmente me convidou e eu disse pra ele uma coisa: “ O projeto é muito vigoroso e a gente está vivendo, o senhor sabe, eu sou uma pessoa muito honesta e muito transparente – eu tinha vinte e sete pra vinte oito anos – eu sou amiga pessoal de José Hermógenes, foi ele quem me trouxe pra saúde pública.” Ele falou : “Eu fui padrinho da turma dele de formatura.” Já deu sinal que ele não ia perseguir Zé Hermógenes -a turma dele bem que perseguiu. E eu dizia: “ Eu não vou falar mal dele. Essa coisa de entrou um governo contra e que é pra falar mal, eu não vou falar. O senhor está vendo esse documento que está aí, foi construído pela nossa equipe, eu não vou retaliar ninguém. Pelo contrário, eu vou precisar de gente que talvez sobre de outros lugares.” Ele falou assim: “você vai ter todo meu apoio e a carta branca pra organizar a sua equipe.” Bom, aí eu ganhei a Vera Fomigli, ganhei o Renilson. Porque todos comunistas foram expulsos das outras áreas porque foram ocupadas pelos filhos daquele cara que tomou um tapa lá na …

FP – Sei.

TC – Lá na faculdade de medicina. Era o grupo cepalino já, os filhos daquela linhagem de lá. E esse grupo cepalino, já muito por aqui com a gente, porque a gente ganhou poder de mais e eles perderam, então assumiram a área de serviço. Que depois foi preciso costurar fraternalmente, eu tenho na minha casa, entregue recentemente num livro desse dirigente que desenhava, como o Adalto [?], em cada reunião saí com um desenho - fez um livro sobre tucanos e me deu de presente. Tal era a costura que a gente ia fazendo sobre a liderança do Novis. Era um mestre, era um democrata. Bom, aí surge a oportunidade da reforma na secretaria. Bom, fizemos essa pacto então, de não perseguição, de que o CETRE era um lugar de pensamento, que então, que a gente trabalhava com o pessoal auxiliar de saúde com aquela nova matriz, que era o PPREPS. Você sabe que ele ainda chegou a perguntar se eu não queria trazer a Terezinha de volta, em algum momento. E eu mesma disse assim: “Não sei. Não sei como isso tudo vai pintar.” Ele falou: “Ah, que a irmã dela era da jurídica, me fala muito bem dela.” Mas Terezinha estava muito bem. Eu achei que era melhor não lhe dar, eu não sabia lhe dar com essa tensão. E a Terezinha terminou ficando de fora, mas fazendo coisas também, bastante interessantes, lá na educação, onde ela ficou. Então ele era realmente um democrata.

FP – Quando você diz educação é a secretaria estadual?

TC – Ela era da Secretaria Estadual de Educação, e ela voltou pra lá. Voltou pra lá. E nós seguimos com esse processo de renovação interessante. Aí o Carlyle perguntou pra mim: “Você quer, Tânia, que eu autorize a Hortênsia a ajudar vocês, a organizar o.” Porque eu disse: “Olha, Carlyle, os programas de curso estão todos muito velhos, eu… o auxiliar… porque a gente não traduziu nos programas, né, a lógica do.” Aí ele me emprestou e pagou por um ano.

FP –A Hortênsia lá.

TC- Pra Hortênsia ficar na Bahia. Então vamos, vamos guardar Hortênsia porque…

FP- Aí em 78 você está se tornando diretora do Centro. Aí eu acho que tem uma questão importante pra gente refletir que é a seguinte: uma das coisas muito comentadas, pelos dirigentes do PPREPS, é que a presença do PPREPS vinculado à OPAS permitia que as políticas tivessem maior estabilidade programática. Em vez de ficar suscetível as oscilações da política local à presença da OPAS, inclusive oscilações no governo federal. A presença da OPAS permitia que houvesse maior continuidade programática em recursos humanos nessas áreas que o PPREPS estava trabalhando. Quando você está relatando essa sua situação no Centro e o comportamento dos secretários na transição, eu fico com duas interpretações possíveis. Uma delas, eu quero refletir junto com você, é possível que Carlyle, Guilardo, essa operação resultasse de fato numa preocupação em dar estabilidade à política, e eles tivessem conseguido algum êxito, ou isto foi uma coisa muito intestina dos estilos de governar a Bahia desses personagens específicos das secretarias. Está entendendo a pergunta que estou te fazendo?

TC- Estou, estou. Eu tenho uma apreciação sobre isso. Eu acho que é a mistura das coisas. Baiano sempre tem isso. Baiano tem um negócio de um laço que é feito por caminhos diversos. Aliás novamente vou citar a “Casa dos Espíritos”, lá também, lá no Chile, também tinha imbricações comunistas com os de direita, que eram feitas por razões familiares e afetos e coisas. Então, a Bahia e uma pequena província, Salvador é um lugar pequeno, e esses laços são importantes. Eu diria que são as duas coisas. Tem também a história da estabilização da política. Por quê? Porque o PPREPS, vejam bem, ele vem em 77 ,por aí né?

CH – 76.

TC – 76. Depois vem, em 80, vem a sétima Conferência [Nacional de Saúde]. Não é em 80?

CH- É.

TC – Na sétima conferência tem, o Carlyle na iminência parda, as idéias que vêm da OPAS de atenção primária, expansão nacional do sistema de saúde. E já estava o novo secretário Jorge Novis, que fala numa das mesas sobre integração docente-assistencial, ele tinha idéias próprias sobre isso, ela fala numa coisa que ele chamava de CISE, Comissão de Integração de Ensino e Serviço, onde estava o INAMPS, criado por ele, é pré...

FP- Isso na Bahia?

TC- Em Brasília.

FP- Em Brasília.

TC- Em Brasília na oitava conferência. Então ele pergunta: “por que é que não desestabilizou as políticas se a OPAS poderia é … e eu diria que sim, que esse outro lado, além desses laços fraternais de história de cada um, ou de acreditar em alguém que viu ali algumas pessoas que foram indicadas assim, também,… ele… a coisa da OPAS, todo dia um documento. Assim ele não pode chegar a esse rastreamento, concordância com alguma coisa. O Novis é uma pessoa muito séria, muito experiente. Ele não ia embarcar numa coisa qualquer, porque ele leu um documento que foi produzido no âmbito da experiência do PPREPS. A cooperação era, eu acho que mensal, que eles iam lá, e além de desenhar isso, a gente saía, a gente cantava, fazia serenata, tomava cerveja. O projeto do curso de saúde pública era no bar assim: “monta não sei que, bota não sei que, esta disciplina não está, isso aqui como é que pode”. No plano da administração era uma coisa difícil, porque o planejamento mandava muito e a gente tinha que… então essas coisas todas terminaram criando uma aliança forte mesmo da OPAS com os estados. As pessoas, eu acho, do PPREPS foram muito bem escolhidas. Eu acho que cheguei a dizer isso, do talento de Carlyle, que nos anos recentes não se tem feito….

FP – Valorizado. Justiça.

TC – Valorizado. Justiça. A matriz que ele estruturou, pelo jeito… eu sempre acho que as políticas, as grandes políticas, a condução das instituições, dos órgãos, dos setores e as pessoas e as experiências pessoais, têm que ser tão valorizados quanto isso. O jeito de lidar com as coisas… o serviço pode ter uma política ótima e maravilhosa e tem um desastrado governando que só espalhafata tudo mundo. Nesse caso específico, eu acho que ele era um arquiteto, um estrategista, vamos dizer assim. Então, ele e a OPAS era um lugar que foi se construindo com essas cabeças, todos eles muito habilidosos e experientes. E conversavam também muito com o grupo da ENSP, esse grupo do Arlindo [Fabio Gómez], do [Sergio] Arouca, do Luis Fernando [?]. Eles te davam um jeito de , então, eu diria que a aproximação da ENSP pelos descentralizados, esse apoio informal da OPAS, e tudo que acontecia ali que já estava muito capilarizado dentro do estado, era difícil desmoronar. Ainda que, se ACM põe na secretaria de saúde alguém do próprio estilo dele, isso não valia de nada. Eu acho que...

FP- O sentido.

TC – No caso, nós demos sorte, ele escolheu esse homem que era um gentleman , ainda ele foi, durante muitos anos, o melhor secretário, considerado pela direita e pela esquerda, pelo que ele desenhou. Ele mudou a política de saúde mental, ele criou o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], a Bahia foi o primeiro estado que teve, ao estilo dele. Ele desenhou, ele mandou um cara na fábrica em São Paulo fazer as ambulâncias. A saúde mental foi toda estruturada, tirou do Juliano Moreira aquilo do hospital antigo, fez a colônia. Era tudo idéia dele e juntava as regionais, juntava a direita e a esquerda com maior habilidade. Então ele foi o maestro dessa história, eu acho que também, eu diria que a conjunção disso tudo dando sorte que pegou um secretário…

FP – Personagens interessantes.

TC - Personagens interessantes, que abrigou.

FP- Muito bem, Hortênsia Hollanda e a questão pedagógica.

[intervalo na gravação]

TC – Hortênsia.

FP – A vinda da Hortênsia Holanda.

TC – Hortênsia. Então, a equipe estava formada, ainda do CETRE, antes da mudança e a Hortênsia Holanda… quem era ela? Hortênsia era uma mulher que, uma educadora, nutricionista como eu, uma mulher na época, talvez com a idade que eu tenho hoje, ela tinha uns sessenta anos. E uma mulher muito… feminista, viajada – ela esteve na Nova Zelândia – era tão descolada que assim … consultoria não sei aonde ela ia. No Brasil, ela na verdade teve um certo tempo… ela trabalha com um grupo muito ortodoxo das endemias, ela vinha das endemias. Eu até recomendo a vocês da Casa [de Oswaldo Cruz], se vocês quiserem – certa vez tentei fazer isso, não consegui , mas a Casa é o lugar , eu ia procurar vocês. Mas a Virginia Schall de Minas [Gerais] tem um laço muito forte com ela, com o grupo da Hortênsia, tem uma moça que trabalhou com a gente uma experiência, chama Edite Mata Machado, que é de Minas Gerais, uma educadora de peso que ia trabalhar na Bahia, com ela, os projetos da gente, eu. Nos juntamos, chegamos a ir a Minas na Universidade com uma pessoa da Universidade de Minas que a gente queria recuperar. Aquele Jorge Valadares da ENSP, que também conheceu Hortênsia, foi até quem fez a saudação quando ela ganhou o título aqui de honoris causa na ENSP. Então era uma mulher que ela tinha uma história muito rica de construção da educação vinculada as endemias. Mas - e brigava muito, ela era muito briguenta, era muito, uma pessoa difícil – mas se impunha pelo conhecimento, pelo domínio que ela tinha, principalmente pelo pensamento que ela levava e provavelmente ela brigou muito com esses homens das endemias aí que eu não cheguei a conhecer, eu sei que um deles era aquele que usava gravatinha borboleta, não lembro o nome dele.

CH – Ela não tinha passagem pela Fundação SESP?

TC – Teve. Eu acho que teve na Fundação SESP, mas principalmente no DENERU [Departamento Nacional de Endemias Rurais]. Ela vem do DENERU. Acho que teve algum vínculo aqui com algum pesquisador aqui. Eu sei que esse grupo... ele usa gravatinha borboleta. Até hoje, teve umas homenagens aqui, quando a gente estava na Presidência [da Fiocruz], ele apareceu. Teve um congresso lá de Medicina Tropical, que eu o vi, e é uma figura super energética, ele magrinho, todo… então ela tinha um vínculo com esse cara. Ah, se junta com esses ortodoxos aí dos caramujos, não sei o que. Só que o Carlyle a respeitava muito e sabia que ela sabia de educação, e que a matriz dela era uma matriz que combinava, quer dizer, podia dar solidez àquele trabalho lá da, novamente dele e do Carlyle. A solidez , aquela história lá de Porteirinha que tanto tinha encantado os grupos locais, como o da Bahia, o de Alagoas era também um grupo muito interessante. A gente se encantou muito por essas histórias do novo auxiliar de saúde, primeiro do atendente rural, depois já foi mudando essa proposta do visitador sanitário revisitado. E aí a Hortênsia foi. Foi morar, conseguimos casa pra ela, tudo arrumadinho e tal. E o meu grupo era esse grupo dos sanitaristas jovens baianos, né, e da pá virada mesmo. Primeiro que tinha muitos que tinha muita formação política, eram quarenta e um ou quarenta e dois técnicos de nível superior. Alguns vinham da psiquiatria. Tinha uma educadora muito difícil - essa quase fui às vias de fato com ela, segurei e mandei sentar, era uma mulher enorme, ela ia bater, ela era difícil, era ex-mulher de Sebastião Loureiro, muito difícil, muito difícil. E não era só nessa experiência não, também no Canadá apronta, apronta dentro da ABRASCO, [Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva] [risos] ela apronta uma série de coisas e termina expulsa da Universidade. Era uma mulher… Mas nesse tempo ela estava lá comigo. E quando Hortênsia chegou, ela colocou lá as idéias de que ela tinha ido pra ajudar a história de reformular os programas de curso. Mas entre ela e Izabel [dos Santos] tinha um certo estranhamento , Izabel dos Santos, e tinha farpas de Izabel – que sempre foi muito transparente – que eu não consigo ainda entender e nunca quis chafurdar, porque como eu admirava muito as duas, eu não quis me meter nessa controvérsia. Eu tenho controvérsias com a Izabel já da coisa da escola, controvérsias mesmo, na expressão científica da palavra, do ponto de vista das escolas e não queria abrir uma frente e nem tomar partido, embora ela achasse que a entrada de Hortênsia lá me fez muito parecida com ela. Então eu sabia que tinha lá algumas coisas e como elas são quase da mesma idade, aquelas coisas, não sei o quê. Porque Paulo Freire, na época, não era muito absorvido não pelo partidão, pelo grupo do partidão. A matriz deles era outra, era estruturar os trabalhos, os empregos, os negócios de diploma. Era outra coisa da Izabel, e principalmente a dignidade do trabalhador, o que tem todo o mérito do mundo. Eu falo sempre com muito cuidado, porque eu tenho por Izabel respeito e afeto enorme. Um dia desses, até, fui visitá-la e foi ótimo, uma delícia assim, ela vindo do quarto, na cadeira de rodas. Foi um encontro fantástico. Ela me tem muito respeito, sempre. Bom, então a Hortênsia ela sugeriu, primeiro trabalhar com a Edite Mata Machado. E a levou pra todos os momentos de concentração, e depois de construção dos currículos. É, porque se construiu um currículo novo para cada um dos auxiliares de saúde. Esses currículos são pré-Larga Escala. E o Larga Escala nunca deu esse crédito… o Renilson [Rehem de Souza] … se colocar o Renilson aqui para fazer essa entrevista o pau vai quebrar, porque ele não perdoa, que esses créditos não foram dado. Porque foi um trabalho belíssimo. E aí essa equipe propôs: “eu acho que a questão do nível local – discurso de Hortênsia – a questão do nível local é muito importante valorizar, onde as práticas se realizam. Não adianta esses modelos teóricos – aí vem a farpa a Porteirinha, porque tinha mesmo muita coisa ideológica, tudo impulsionou e era boa, mas ela queria traduzir isso em procedimentos que pudessem traduzir mesmo aquilo que ideologicamente estava apontado pelo grupo que era pró Porteirinha – e então eu gostaria de fazer uma proposta de que nós fossemos todos para o interior. E lá a gente fizesse uma imersão e ficássemos um período no município que a gente pode eleger, não sei o que, e viver e vivenciar o cotidiano dos auxiliares de saúde, a sua relação de trabalho com o chefe – que era em geral uma enfermeira que, na escala da organização social técnica do trabalho, era a pessoa que supervisionava – como eles se movem com a comunidade, entrevistar pessoas da comunidade.” E assim foi feito. Eu falei: “Pronto, tá dado.” Eu não fui, porque tinha que ficar dirigindo o CENDRHU. Fiquei uma arara porque eu não podia ir. Porque, vinte e sete anos, com aquele grupo todo da minha idade, pessoas encantadoras. Esse grupo de psiquiatras, eles também eram fantásticos, o Renilson, a Vera Fomigli. A Virginia [Almeida] conhece muitos deles. Que Virginia trabalhou no ciclo do Valdir Pires, que é mais na frente. E aí eles foram... Telma Dantas… Eles aí foram para o interior. Porque hoje a superintendente é Telma, superintendente de recursos humanos.

FP- Qual era localidade?

TC – Eu tenho uma tese sobre auxiliar de saúde, muito bonita, de mestrado.Eu não me lembro o município, porque era um município que não era… por alguma razão a gente fez naquele lugar. Eu não sei, Hortênsia deve, ela, caracterizou coisas, ou era um lugar onde as atendentes já estavam contratadas e podia funcionar. Teve alguns fatores que levaram àquele município, eu acho que era pelos lados de Itaberaba, se eu não me engano. Mas eu não lembro o Município. Mas é fácil a gente, lhe dou esta resposta na próxima semana.

FP – Só pra produzir uma conexão, você tem feito referência ao pessoal que é pró- Porteirinha, Porteirinha está ligada a que, por exemplo, está ligada a experiência de Montes Claros?

TC – Montes Claros.

.

FP- Jequitinhonha, Montes Claros, naquela região.

TC – Você sabe que eu nunca fui lá? Eu, na verdade, não conheço nem Montes Claros, não pude ir ao encontro do grupo lá e aí…

FP – A turma…

TC -… eu nunca mais tive oportunidade de ir. E não sei. Porteirinha eu também nunca fui.

FP- Mas é a experiência deles.

TC – Mas, o vínculo vem dessa tradição. Esse grupo de Montes Claros e, naquele livro de Sônia Fleury , revisitando o PIASS, ela faz com muita propriedade a reconstituição daquela história e com muita emoção. Ela também é ligada àquele grupo.

(?) – Ela, Mário Hamilton...

TC- É, o Mário vem de lá. Aquele holandês também. Bom, então....

FP – E o PPREPS, também tinha Porteirinha como uma referência, pra definir o seu desenho?

TC – Sempre.

FP – Sempre.

TC – Sempre. Aquela história que eu contei de Eugênio Vilaça [Mendes] à Porteirinha, nós adotamos o modelo. Porque eles produziam textos e documentos e a gente ia seguindo as orientações e tinha conceitos que eram … conceito de autonomia, o conceito de construção pela base, o conceito de que a pessoa carrega a sua história, mas com um alinhamento que pudesse ser um atendente com determinadas características, que se vinculasse àquelas demandas do sistema de saúde daquele tempo.

CH – Mas...

TC- Era um pessoal marxista. Eles eram muito sólidos, eles eram bons.

CH- Mas são conceitos que só vão aparecer na segunda fase do PPREPS, de qualquer modo, né? No fundo era isso que eu estava querendo mapear. Pois, em 80, a gente já chama segunda fase...

TC – Então, 70 eles andaram lá na Bahia, 80 já é [Jorge] Novis. O CETRE é 77,78…

CH- 78.

FP – 78 era diretora.

TC – 78.

CH- Essa discussão já vem... sobre o pessoal auxiliar, mais elementar, já estava no PPREPS nesse momento?

TC – Tava.

FP- Na primeira hora.

TC – Na primeira hora da relação da OPAS e Ministério conosco nos estados.

FP – Tá.

TC – Foi a coisa que mais nos encantou. Eram os órgãos de recursos humanos com aquelas características e a formação do auxiliar de saúde que tomou conta da … E ela, na verdade, influenciou o nosso pensamento de planejamento, nosso pensamento da relação com o público. Porque na verdade era uma coisa freiriana. Não sei porque não reconheciam isso. Talvez pela pinimba lá.

 

FP – Isso a própria Hortênsia não reconhecia? Essa linhagem.

TC – Não, é. Ela não fazia referência. A Hortênsia era uma pessoa também muito auto-referida, então ela trabalhou com questões técnico-científicas. Ela não vinculou aquilo ao projeto PPREPS não. Tinha uma coisa entre elas, ela não mexia, não botava …

CH- Ela estava na qualidade de consultora da OPAS?

TC – Consultora da OPAS. Consultora da OPAS. Mas ela recortou ali a atuação na coisa do auxiliar de saúde e nós também não tínhamos essa politização toda, essa compreensão de política de saúde vinculada. A gente nem sabia direito de onde essas coisas vinham. A gente achava que tinha um grande projeto, era um grande momento e nossa área…

FP – Que tinha a ver.

TC – Tinha a ver, né. Então a gente não ficava muito fazendo links , a gente só fez a priori, ô, a posteriori. E eu me lembro que Hortênsia tinha lá seu campo delimitado como uma coisa técnica que ela ensinaria, ali. Faria com a gente naquele momento.

CH – Ela fez coisas parecidas em outros estados? Como consultora da OPAS.

TC – Não.

CH- Só na Bahia.

TC – Acho, não me lembro. Mas eu acho que não. Daí eu acho que ela foi para Minas [Gerais]. Depois eu a encontrei até aqui no Rio [de Janeiro], fazendo, talvez, alguma coisa na FIOCRUZ.

FP – Acho que tem uma entrevista dela aqui.

TC – Lá, a história dela não sei. Mas aí essa coisa criou uma matriz de coisa local, e isso eu acho que vale a pena destacar, que na experiência o foco local, como se aplica o modelo de como o sistema estava organizado de baixo pra cima, da porta de entrada chamada porta de entrada. E então todo o trabalho, quando ela volta a mexer com a equipe, com a formulação dos currículos, já volta a mexer impregnado. E toda vez que cometia um pecado, ela caí de pau: “Que incoerência é essa?” Porque era rigorosa, rigorosa. Claro que foi uma convivência difícil, porque os meninos eram também danados, muito briguentos. Renilson era o mais zangado. “Ah, vem, a gente está produzindo um negócio.” Porque eles também tinham formação em técnicas e políticas, compreensão de sistema de saúde. Então foi um embate gostoso, né, em que ela vinha com aquele conhecimento dela, cristalizado e pedagogicamente muito sólido, e a gente querendo reformar a secretaria, achando que tinha intervenção de mais por conta dela. Mas foi muito eu ali mediando, mediando, jantar na minha casa, happy hour e aí ela ia, e não podia comer isso, não podia comer aquilo. Aí diziam: “só você que fica... vá fazer um chazinho pra ela”. Por que era assim mesmo, uma mediação cotidiana e que tinha que ser feita no carinhoso, pras coisas não entornarem e vencer o ano com os currículos reformados. E o nosso projeto andando. Aí a gente reformou os currículos. Aí a gente já estabelece que tem que ter um auxiliar de enfermagem da saúde pública e outro da hospitalar, que é uma coisa depois englobada também pelo Larga Escala e pelo sistema de saúde. Revisita a visitadora sanitária, tem um currículo turbinado de visitadora sanitária. Tudo alimentado pela imersão feita localmente, que foi uma coisa metodologicamente exigida por ela e concordada pela equipe. E o atendente rural como porta de entrada e o auxiliar de saneamento também feito ali pela Fundação SESP [Serviço Especial de Saúde Pública].

CH – Pra gente produzir uma síntese da conversa até agora, é possível a gente dizer que na conformação desse campo de recursos humanos na Bahia, do ponto de vista de suas doutrinas, a gente teria três grandes referências: seria o PPREPS, seria a experiência em Minas Gerais e o PIASS? A gente pode… é correto dizer isso?

TC – É.

CH – E se sim.

TC – Mas uma dimensão que eu acho que vale a pena colocar é a relação com a Universidade.

CH – Qual a singularidade de cada uma dessas referências? Do ponto de vista da constituição desse campo na Bahia.

TC – Eu diria que o PPREPS, ele trabalha bem com a renovação das práticas pedagógicas e fazia as políticas de estabilização do campo, e contorno e estruturação do campo. Eu não separaria o PPREPS e o PIASS, porque eles trabalharam o tempo inteiro juntos e nossos documentos, desde a época é PPREPS barra PIASS, porque foi tudo muito imbricado. Daí nascer uma matriz de formação e de técnicos que trabalharam em recursos humanos, mas que não eram pedagogos. Nós não éramos pedagogos, nós éramos pessoas que entendiam de serviço, queria entender. A gente só discutia recursos humanos por referência a um sistema de saúde conseqüente. Vem dessa matriz, eu creio. E a mesma coisa os administradores de serviço. Pra ter idéia, nos anos recentes, o Renilson foi secretário da SAS [Secretaria de Assistência a Saúde] e ele fez algumas reuniões, não foi pra frente por razões não sei porque. Agora ele tentou, a Maria Luiza [?] tentou. O serviço civil obrigatório, como … ele quis discutir isso na SAS, como discutiu a revitalização dos cursos de Saúde Pública, o Paulo [?] quis implantar mestrado profissional. Mas ele tinha, tem essa tintura. Então os dois campos foram tão imbricados que formou toda essa turma, a Vera Fomigli, quer dizer, toda essa equipe que eu diria que pensava, refletia sobre e fazia. Fomos todos estudando e refletindo sobre o que faz e fazemos de forma reflexiva. Vem daí. Então eu diria que é o PIASS e mais a universidade. E seguramente a história dos cursos descentralizados, né, fazendo uma costura na continuidade de formação de quadro. E cada ano, cada projeto de curso trabalhava com o contexto daquele período, então incorporando os elementos daquele contexto. Respondi?

CH – Ótimo.

TC – Mas a Universidade seguramente, o departamento de preventiva, muito importante. Sem contar que o mestrado foi avançando com a característica progressista. Aí já a integração do Sérgio Arouca, aí já foi uma articulação da medicina social. E ele foi formando quadro…

FP – Mestrado em?

TC – Em Saúde Comunitária. Ele ia fornecendo quadros pra essas novas políticas que foram avançando.

FP – Agora, do ponto de vista doutrinário não havia tanta distinção. É mais, digamos assim, influência de origens institucionais. Não é isso?

TC – Eu acho que era uma luta contra a ditadura mesmo. Saúde e democracia que vinha do CEBES, funcionou. Ela… então, quem se alinhava com essa grande matriz, saúde com democracia, se ubicava .

FP – Se credenciava pro jogo.

TC – Se credenciava. Estruturava práticas, no governo federal, no governo estadual ou na OPAS, que levassem a formação de um modelo, um grande modelo nacional com essa, com essa feição,digamos assim. Tem uma experiência que eu acho que ela está passando ao largo, que estou esquecendo de contar, toda hora ela volta e eu sigo outro caminho, que foi aquela história do FIPEC [Financiamento à Pesquisa Científica].

FP – Pois é, é isso que eu ia. Na verdade eu queria saber…

TC – É a introdução da pesquisa dentro do órgão...

FP - … essa iniciativa tem um título? Por exemplo, essa… tipo assim, esse período de condução tem um título que a gente pudesse procurar a documentação?

TC – O CENDRHU. O nome de Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos, foi muito forte e se forjou uma sigla chamada CENDRHU, d,r,h,u no fim.

FP – Que isso já é uma remodelação do …

TC – CETRE.

FP – Centro de Treinamento.

TC – É. CETRE.

FP- E quando isso ocorre? É durante a sua gestão?

TC – É. Foi, eu acho que, entre 80 e 81. Talvez mês de janeiro, por aí. Houve uma grande reforma da secretaria de saúde. E aí era o órgão já.

FP – Você acha que você foi diretora lá a partir de 78? Você confirma isso?

TC – Não. 79 a 82.

CH – É, está aqui.

FP- Tá aí?

TC – Bom, aí nesse período chega o dinheiro do FIPEC [Financiamento à Pesquisa Científica], do Banco do Brasil. O projeto foi escrito, ainda por Terezinha, era pra discutir exatamente a formação do auxiliar de saúde. E é ele que se vincula com a experiência de Hortênsia. Ele traz recurso, ajuda à viagens, enfim, a financiar. Ela deixa um trabalho bastante positivo. E a grande zanga do grupo do CENDRHU é que ela entregou os relatórios. Ela tinha que entregar, eram relatórios da OPAS, ela era contratada por isso. Então relatório dela são os próprios currículos. Além de toda narrativa que ela faz do período, ela trás os currículos todos prontos. E a gente joga fora de uma vez os currículos antigos e começa a implantar no órgão o currículo do auxiliar. Mas paralelo aí isso, então chega, faz-se o convênio com o FIPEC, pra se implantar a pesquisa que é do auxiliar de saúde. Pra encurtar a conversa essa pesquisa é também, um dos coordenadores é um aluno, um ex-aluno do curso curto de São Paulo, chamado João Luis Mendes, que depois é substituído pelo Guto. Que é o nosso Guto, que está na OPAS de Washington, que coordena…

FP – Luis Augusto Cassanha Galvão.

TC – Galvão. Exatamente. Grande figura, grande figura. E aí esse projeto, na verdade eu jogo, a gente joga dentro da assessoria, e vira também assessoria de planejamento do CENDRHU, onde as idéias da pesquisa do projeto que chama IIMCAS, Inovações Metodológicas… Introdução de Inovações Metodológicas – eram dois is - na Formação do Auxiliar de Saúde… Construção do Auxiliar de Saúde , IIMCAS, com c. Eu devo ter, porque o João Luis, até no concurso ele me…

FP – No relatório, né, que você menciona.

TC – Eu devo ter, porque no concurso eu fui atrás de tudo isso. Bom, e esse projeto, na verdade o Arouca participa, e aí cria-se um marco teórico porque, cria-se um quadro teórico. Olha pra de baixo da mesa? Onde é que sai esse quadro teórico de referência? [risos] Isso a gente na brincadeira , né. Vamos e vamos, e tencionando aqui. Quando é que vai implantar, a implantação do SUS no currículo novo? Foi um trabalho, e aí eu de vez em quando…

FP – Do auxiliar?

TC – Do auxiliar de saúde e aí…

FP- Já como resultado desse...

TC- E o avanço da pesquisa do IIMCAS, porque tinha os fiscais do Banco do Brasil. Não esqueçam que era o único projeto da área social. E aí vinham, os fiscais lá do Banco do Brasil, e diziam, queriam que a gente avançasse com os produtos. Então aí eu aprendi que não adianta gogó, porque eles iam cortar o dinheiro. Bom, conseguimos dois carros – o único projeto do Banco do Brasil a comprar carro foi o nosso – uma exposição de motivos muito bem feita, porque se acreditava nas idéias, é isso que eu acho bacana. Acreditava no que era impossível, sonhava com as coisas. Então escrevemos. O Renilson era ótimo, escrevia super bem , ta-ta-tal. Entregamos, seja o que Deus quiser, o Novis lá, dando umas aulas.

FP – O Renilson era membro da equipe do CETRE?

TC – Era membro. Foi um dos pesquisadores lá do Serviço e veio cá pra cá. E aí o pessoal do Banco do Brasil aprovou. E aí a gente tinha carro pra viajar, pra implantar o projeto Nordeste, que depois Virginia [Almeida], na outra gestão, pega. Enfim, passamos a ter mobilidade muito grande, para que as idéias, construídas lá atrás com a Hortênsia, pudessem ser implantadas e avaliadas pelo IIMCAS. E o Guto foi uma pessoa muito importante nessa fase já do IIMCAS mais avançado. Eu dei uma sorte, outra sorte – porque eu dou muitas na vida – meu marido era gerente de projeto do CEPED [Centro de Pesquisas e Desenvolvimento].

FP – Seu primeiro marido ? [risos].

[risos]

TC – É, primeiro e único, viu? [risos] Então ele era gerente do projeto e financia… o IIMCAS, o financiamento do FIPEC, lá no CEPED, era ela quem geria. Era lá um negócio de uma casa de farinha, tecnologicamente moderna que eles estavam... enquanto comunidade. Era também o tempo das comunidades. E aí os supervisores do Banco do Brasil iam primeiro no CEPED, depois eles iam na saúde. Então ele me contava já as coisas que lá eles faziam e, claro, que dias depois, os dois trocávamos estratégias que achava que emplacavam. Então ainda tinha essa ajuda. Eu digo que sou mulher e .... Ainda tinha essa ajuda, meu marido era uma pessoa muito politizada, que lia [Karl] Marx, [Vladimir] Lenin, não sei o quê. Assim bem comunista empedernido, bibliografia, “ O Capital”.

FP – Aquela....

TC- É. Então ele era um planejador bem.... Eu não tinha essas leituras, mas eu me beneficiava. Depois nas redes também fui atrás das leituras.

CH- Ele era filiado ao Partido [Comunista]?

TC – Nunca foi. Nem gostava muito. Sempre foi…um… certa: “não, porque vai me amarrar muito”. Mas ele era muito… lia muito. Bom, é isso então. Fiquei em algum ponto?

CH – Não.

TC – Da Hortênsia, eu acho que....

CH- É o seguinte: deixa eu ver a hora. São quase quinze pra uma.

TC – Dezessete pra uma.

FP – Você queria parar?

TC – Eu só queria fechar bem essa parte aí pra gente deixar esse ciclo do auxiliar de saúde, do FIPEC. O FIPEC produziu, também , um relatório final. Sim, eu disse a vocês que o Arouca, a história de buscar um marco teórico até de baixo da mesa, ou estava aqui ou estava ali. Terminou que nós fizemos algum contato. Não foi eu, eu acho que foi o João Luis Barberino que também era muito articulado. Agora, esse era do PCdoB. Ele dizia que… ele fez um contato e conseguiu que o Arouca fosse nos fazer uma assessoria. Aí a gente fez o que? O João Luis sentou comigo e falou: “vamos então chamar pro curso de Saúde Pública.” Ele dá uma aula no curso de Saúde Pública e vem fazer assessoria com a gente. Juntamos as duas coisas e o Arouca foi. Claro que deu uma aula brilhante como sempre dava e ficou uns três dias com a gente ajudando a encontrar o marco teórico que, afinal, foi desenhado e a pesquisa seguia, né. Então foi um trabalho nessa coisa do auxiliar. Vejam que essa época, na linha do que você está querendo produzir, nessa época a questão do auxiliar… na verdade ele era uma matriz que forjou muitos movimentos de compreensão também do sistema de saúde novo. Que o que a gente queria também em termos de diretrizes, da relação com a sociedade. No leito dessas discussões e nas leituras que a gente foi fazendo, pela via pedagógica, a Hortênsia foi iniciando de produtos que a gente foi entendendo que tinha uma forma diferente, ou seja, ao invés de você despejar no outro, você ouve o outro, você valoriza seus pares, você acolhe e constrói o conhecimento com aquele conjunto, né. Experiência que depois foi alimentada por outras experiências que eu também tive na vida, de formação e de… e fui, poder estudar no mestrado, fiz disciplinas.

FP – Você, você está narrando um enorme esforço de produzir uma abordagem conceitual e um método de trabalho para trabalhar na formação do auxiliar. Esse que era o desafio, né. Agora, o CETRE também deveria fazer ações de formação propriamente dita. Tinha um contingente numeroso de auxiliares formados, vocês tinham essa tarefa ?

TC – A gente tinha, a gente tinha um desafio grande que ele se segue até em outros ciclos, né. Que aí eu sempre me refiro ao trabalho fantástico que a Virginia [Almeida], no governo de Valdir Pires – eu volto pra Bahia– e aí a Virginia foi coordenar essa área toda de formação nesse novo, no CENDRHU, mais já na frente. Mas ainda aí a gente tinha um desafio de formar para esse sistema, digamos assim, ganhou a consciência através do PPREPS [Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde] de que existia um sistema que deveria ser articulado, que existia a parte curativa e a parte preventiva. Ou seja, a matriz que levou a formação daqueles currículos nos deu também aporte pra você olhar o sistema de outra forma. Com base da regionalização, com base no conceito de descentralização e de desconcentração. Isso, no curso de dez dias, o Mario Hamilton trabalhou muito com a gente. Então o que é desconcentrar não é delegação de função, eram várias categorias que naquele momento costuravam a formação e as práticas que a gente ia estruturando, que foram dando uma certa solidez. Aí se vem… a primeira, primeiro impulso é do auxiliar de saúde. Pelo IIMCAS a gente também tinha sessões de trabalho, né, pesquisa, a gente também resolvia um pouco essas coisas. E como os cursos de saúde pública tiveram uma regularidade grande, né, nesse período, mais algumas sessões que a preventiva fazia mais abertas e nos convidava. Pra terem idéia, eu como diretora do CENDRHU, eu participava da avaliação anual do departamento de Medicina Preventiva, avaliação e perspectivas, eles tinham um seminário por ano, onde eles discutiam as mesas. E eles me convidavam pra poder fazer propostas lá, pro ano seguinte. Então essa coisa…

FP – O serviço avaliando a academia. O serviço avaliando a academia.

TC Sugerindo, não era nem avaliando. Mais sugerindo, por isso eu entrava um turno. Eles de manhã faziam lá suas avaliações e depois eu podia ir lá sugerir. Então eu acho que foi…

FP- E aí vocês formavam, tinham produção de formandos x?

TC – É. Essa pergunta que eu estava querendo pegar o fio da meada. Aí as DIRES formavam, quer dizer, eram responsáveis por formar, nós não podíamos titular. Na verdade, nós não tínhamos o poder de titular porque não éramos escola, não existia escola técnica. Mais na frente, eu acredito que em outra entrevista, a gente vai poder trabalhar o surgimento desses aparelhos escolares. Mas existia um curso, que era um curso matriz - eu acho que não vai dar pra contar essa história - que é um curso que tinha um convênio com a Secretaria de Estado da Saúde, a Secretaria da Educação e a escola de enfermagem. Em algum momento se fez um convênio desse e nós tomamos esse curso - como ele tinha capacidade de titular direitinho, tinha legalidade – esse curso diplomaria nossos auxiliares formados no interior....

FP – Uma espécie de base formal.

TC – ...pegou, não foi? Era a base de formação, descentralizada. Que novamente é matriz para o Larga Escala. É por isso que o Renilson ficava chateado, que se formou uma coisa bacana, bonita, mas não se dá os créditos que a Bahia é realmente pioneira nessa história, por que essas histórias que estou contando são verdadeira. Se você entrarem nessa história, lá pelo projeto de vocês, vocês vão ter outros atores que vão contar de outra forma. Tem documentos, convênio do curso, lá. E foi aí que nos salvou em muitas coisas. Mas na frente nós vamos discutir o governo de Valdir Pires, onde foi, aí foi duro, porque , a direita e a esquerda e o povo já querendo. E a gente teve que fazer defesa, e veio os conselhos e o edital na rua e outras costuras pra poder essa coisa avançar. Mas é isso. Então esse curso era quem diplomava. O que é que a gente fazia então? A partir do planejamento, novamente voltando que estávamos com o resto daquela formação do estado planejador, então o estado planejador olhava para as DIRES. O Novis também era um secretário que trabalhava muito com os diretores regionais, porque havia muitos conflitos – na verdade eles eram indicados pelos governadores, eles eram pessoas de confiança dos governadores e nem sempre o secretário tinha força - e o Jorge Novis era um arquiteto da construção de consciência. Esse foi meu grande pai intelectual, foi prático nesse sentido. É preciso respeitar as diferenças, ele dizia, com a vida, e fazia contatos. Então ele reunia as DIRES periodicamente, e aí cada fatia do planejamento governamental estadual se colocava e fazia os pactos de trabalho. Ainda como resto das assessorias de peso, o próprio Mario Hamilton, a convite, na gestão ainda antes do Novis, a convite de Roberto, o Mario Hamilton e mais alguém – não me lembro quem foi com ele, foi um desses pares aí. Ah, o Francisco Salazar, que eles tomam um banho de café na hora de ir para o negócio, cada um com uma roupa, uma verde clara e outra azul clara e tomam um banho de café no restaurante, os dois. Essa é uma história pra dar muita risada, não vou entrar aqui, [risos] é muita risada. E eles dois vão e montam planejamento com todas as DIRES, por exemplo, pra poder delimitar quantas unidades básicas deveriam ter em cada lugar. É o primeiro planejamento integrado participativo que a gente tem, num grande salão – porque não havia sala que abrigasse aquilo – as máquinas de somar no chão, cada um tinha um território , e o Mário Hamilton passeando com aquela alegria dele – parecia que estava dançando tango – pelo meio. E ele marcou a data que o planejamento tinha que ficar pronto. Ele marcou a data. Nós nunca tínhamos feito planejamento na vida. Ele falou : “Aqui tem a unidade, a célula básica do município, unidade com tais, tais, tais características, custa tanto – fizeram o cálculo em Brasília e levaram para gente – isso custa tanto, então vocês desenhem o que é que a tua DIRES vai ter, em que município e tal, o custo é tal, multiplica.” E no fim da semana, no quadro, o planejamento estava todo pronto em dezessete dias.

FP – Ele já estava na condição de um cara do PPREPS do país?

TC – Ele era do PIASS.

FP- PIASS.

TC – Ele era representante do PIASS no processo de cooperação nacional. Ele adorava ir na Bahia. Porque levanta muito a auto-estima local.

FP- Isso é planejamento tout court

TC – Mas era planejamento que tinha na época. A gente tinha, trabalhava com máquina, com coisa de escrever, com máquina de somar da fita. Você passava assim a fita saía, era o que a gente tinha, não tinha outra não.

FP- Agora, não era planejamento de recursos humanos, era planejamento de tudo.

TC – Tudo e recursos humanos. Aí tinha lá, em cada célula dessa tinha uma pessoa de recursos humanos. Porque você programava a unidade, programava os recursos humanos e daí foi que saiu a ação de capacitação. Porque você tem que inaugurar a unidade com os recursos humanos capacitados.

FP – Seria formado por essa escola de enfermagem, lá.

TC – Pra titular sim, mas nessa época não existia exigir titulação. Depois mais pra frente que a gente passa a….

FP- Esses cursos eram feitos aonde? Lá nos municípios?

TC – Nos municípios.

FP – Todos descentralizados.

TC – Era. Agora a gente contratava pessoas. Essas enfermeiras desse grupo nosso no nível central. Aí já tinha enfermeiras nas regionais. A gente fazia planejamento conjunto. Já tinha um programa, um currículo pra cada área, que ajudava. Aí veio todo o projeto Larga Escala, começam a ter reuniões nacionais com as enfermeiras da DIRES que são convidadas, que tem um mérito enorme que vai criando as bases para depois virem as escolas técnicas. Mas nesse período era assim, muito desregulamentado, desestruturado, mas formavam a base técnica boa. Na verdade, era o atendente de enfermagem, não era o auxiliar de enfermagem, era o atendente de enfermagem.

CH- Deixa eu fazer uma pergunta: nessa época é criado, é também o momento de criação da ABRASCO [Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva].

TC – 89.

CH- Pois é. Eles já acompanhavam, já estavam acompanhando esse debate da Saúde Coletiva?

TC – Eu mesmo. Eu estava na sessão de criação.

CH- Estava?

TC – Estava.

CH- Falha minha.

TC – A ABRASCO.

FP – Foi presidente da Associação de Nutricionistas com vinte anos.

[risos]

TC – Eu estava na sessão de criação, Renilson estava também. Então, na verdade, a criação da ABRASCO é um capítulo interessante de saber de onde ela vem. Eu e Chico Gordo tivemos boas controvérsias, porque ele dizia que ela vinha da Universidade e eu dizia que ela vinha do Serviço. Mas na verdade era mesmo esse, essa zona cinzenta integrada, que criou a confluência. Carlyle [Guerra de Macedo] novamente arquitetou uma reunião na OPAS em que tinha coisa, até pro stricto sensu, o grupo querendo voar pro stricto sensu. E fez uma avaliação do curso descentralizado, de modo que as equipes estavam juntas. E aí no fim eles já tinham feito uma proposta de criação, e aí – eu acho que foi o Carlyle que apresentou. Eu não sei se vocês têm essa sessão aí reconstituída, mas aí apresentou-se uma matriz de todos nós, aplaudimos e a partir daí…

FP- Discussão de Saúde Coletiva, né? Isso aí dá um bom debate.

TC – Mas o serviço estava todo mundo lá. O pessoal dos cursos de saúde pública estava lá. Era uma reunião de avaliação. É isso que eu digo, a minha briga com Chico é que ele anulava esse lado. Digo:“espera aí, Chico. Era da Universidade? Mas o que eu estava fazendo lá, se eu não sou da Universidade?” Esteve na universidade mais na frente, um pouquinho.

FP- É isso que eu ia te perguntar: você chegava lá e se reconhecia como uma profissional de recursos humanos em saúde?

TC – Era.

FP- Já tinha essa leitura, já tinha essa leitura da sua identidade?

TC – Tinha. Porque tinha a coisa também do CADRHU, que ao longo se criou. Tinha. Porque os centros eram órgão de desenvolvimento de recursos humanos. E pra nos reconhecer dentro de um órgão de planejamento da saúde no estado era isso mesmo.

FP- É, mas os centros não existiam.

TC- Existiam.

FP – Já existiam?

TC- RH sim. Tem até um livrinho, feito pelo Ministério na época, de uma pessoa chamada Lia Fanuk que é da gestão de Arcoverde. ODRH.

FP – Esses órgãos, Órgãos de Desenvolvimento de Recursos Humanos, eles estariam sendo instituídos em que período?

TC – Final dos anos 70. 77, por aí. Que se filia ao PPREPS.

FP – É. Na primeira hora do PPREPS.

TC – Primeira hora do PPREPS. E foi muito amparado pelo Ministério da Saúde. E essa Lia Fanuk foi que…

FP – E essa turma, digamos assim, quando se pronunciaram, se convocavam ou eram convocados a estar nos fóruns de constituição do campo de saúde coletiva, se portavam como profissionais do campo de recursos humanos.

TC – É. Por exemplo, porque na implantação do PIASS também, eles faziam reuniões locais e vinha toda a direção nacional do PIASS, Ministério do Interior. Todos aqueles órgãos que fizeram o planejamento… o PIASS. Não sei se era um conselho,tinha lá uma coisa que, eles viam, no jogo, na Bahia bem no interior, aí depois passou-se a fazer isso nos estados. E as reuniões eram também temáticas. Então tinham umas que só tratavam de recursos humanos. Isso tudo no leito da implantação do PIASS/PPREPS, meio que estava misturado. Então tinha reuniões temáticas só de recursos humanos. E quando era de serviço eles também convidavam. E óbvio que tinham as queridinhas e os queridinhos. Eu, o Ubiratan lá de Alagoas, de alagoas estava, sempre estava, um jeito de convidar pra poder ir. Porque eram pessoas que estavam mesmo muito entusiasmadas, mas… tinham alguma liderança. E teve outras reuniões. Isso para assim, pra reconstituir o PIASS teve outras coisas que eu me lembro. Teve uma reunião em Pernambuco, muito forte porque eram quinze, passar quinze dias lá. E minha filha tinha… foi em novembro… maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro… é, sete meses. E eu dizia que não podia sair do estado e deixar uma criança pequena. Criou-se uma lenda de que eu levei uma fraldinha pra ficar cheirando lá. [risos] Porque eu não conseguia não ficar, porque aí eu tive que ir pra essa reunião. Eu era a única que não era enfermeira. Eram quarenta e cinco pessoas, que pra estruturar as idéias da Atenção Primária/PIASS, coordenada por Izabel dos Santos. Acho que Ênia Galvão estava ajudando ela também. E eu era a única que não era enfermeira, para discutir novamente o auxiliar de saúde, das técnicas. Izabel era ótima, tanto que ela matava a gente. Quinze dias. Na metade, na sexta-feira, a gente organizou um passeio pra ir tomar banho de mar em João Pessoa, fomos no domingo passar o dia lá, e eu não sei se ela soube, chegou na sexta-feira, cinco horas da tarde, ela passou uma lista de leitura.

FP – Tarefas.

TC – Não tinha como. Pra dar conta daquilo ali, aí de quem não desse conta. Tava tudo pago pelo governo, foi passado em João Pessoa. Se ela soube, ela não falou nada, passou, chegou cinco horas da tarde, essa lista. A gente só fez uma farrinha na cidade, no sábado de noite porque era no centro, enfim de coisa. Mas eram movimentos que as áreas de recursos humanos fazia, complementar a esse movimento geral, daí a gente foi criando uma identidade. Que é essa sua pergunta.

FP – É.

TC – A gente foi criando identidade por dentro dos avanços do sistema de saúde, participa de uma reunião, participa de outra, discute.

CH- A criação dessa identidade, ela implicou um certo aumento de prestígio do Centro dentro da Fundação?

TC – De Saúde do Estado da Bahia?

CH – É.

TC- Implicou. A entrada do PPREPS foi muito forte. Foi muito importante, trouxe dinheiro, autonomia. Colocaram o (PI?) para o Materno-Infantil pagar. Materno-infantil, que tinha muito dinheiro, tinha um povo muito chato, muito ortodoxo. A gente queria discutir coisas novas, então foi muito importante, muito. Implicou sim no prestígio, eu diria que o PPREPS e os cursos de Saúde Pública. As pessoas passaram a ser respeitadas e, óbvio, que a inteligência e o crédito, eu volto a dizer, eu dou a Terezinha. Ela fez a entrada do PPREPS no estado com muita competência, muita. Se vocês forem estudar a Bahia, eu faço questão que vocês entrevistem ela. Mulher de valor.

FP – É, muito bem. Pensando assim o estado da Bahia, pensando nacionalmente uma comunidade de recursos humanos, um campo de recursos humanos fica mais nítido. É possível perceber essa comunidade como uma identidade específica dentro da Secretaria de Saúde da Bahia? Um grupo ativo.

TC – Eu diria que eles têm até hoje, sabe Fernando. São quantos anos? Trinta né? Trinta anos. Eu vou só fazer uma coisinha rápida, porque já está na hora.

FP – É.

TC – Eu fui a uma festa, tem menos de um mês, trinta de janeiro, um mês e pouco ,né. E era de uma pessoa histórica, era mais da área de serviço, mas chegou a passar pelo CENDRHU. E ela recasou com o mesmo marido vinte e cinco anos depois.

FP – O primeiro marido. [risos]

[risos]

 

TC – E ela entrou na igreja, foi um casamento mesmo, de noiva, foi uma coisa linda na Igreja do Bonfim e depois fez uma festa, numa casa de festa em frente à Igreja do Bonfim. Tudo com muita simbologia. E eu, tinha vindo de Salvador quinze dias antes, ela me entregou um convite e digo: ‘Tenho que voltar pra… como vou perder esse…” E voltamos, eu e meu eterno marido [risos], fomos pra essa festa. E lá estavam, mais ou menos, quinze dos convidados, tinha mais ou menos quinze ou dezessete pessoas do CENDRHU. Vocês não imaginam. Eu acho que isso, pra gente encerrar a manhã com essa coisa, essa exemplaridade alegre e histórica pra lhe responder. Tinha pessoas do primeiro CENDRHU, do segundo CENDRHU – foi o que você trabalhou- do primeiro é esse, que foi o mais forte, tinha desse outro, e até hoje, quer dizer, a falta da superintendente atual que é a Telma [Dantas], pessoa histórica do primeiro CENDRHU – pessoal dizendo : “Ah, Telma não veio?” Fez uma cirurgia - e a gente não conseguiu tirar uma foto porque, como a noiva era muito … a gente ficou com vergonha de ir lá e pedir para tirar uma foto da gente. E aí me botavam pra ir lá: “Mas você não era liderança naquele tempo?” Eu aqui estou de convidada, nem moro mais nessa terra, vocês vão. Ninguém teve coragem de pedir ao fotógrafo para tirar uma foto que seria emblemático pra exemplificar isso que estou falando. Então foi uma marca que eu digo, vocês vão rastrear até encontrar documento e coisas. E foi uma marca que persiste e nos últimos anos nós todos temos feito um esforço. Telma Dantas, que é professora da enfermagem, nos anos recentes, tem algumas que estão na enfermagem Federal e tem umas que é mais da Católica. E todos nós estamos estimulando pra que teses, cursos de especialização façam trabalho pra reconstituir esse tema. O Guto, se você perguntar ao Guto num e-mail: “Guto como foi sua experiência no CENDRHU?” Em dez linhas ou vinte, ele vai chorar, ele chora. Ele diz que ainda vai voltar um dia, que foi a melhor experiência, o primeiro emprego dele foi esse. Na verdade, através de Joaquim Cardoso de Melo, que também nos ajudou muito no primeiro curso de Saúde Pública. Na verdade, o Joaquim foi que nos ajudou em toda parte de ciências sociais, com muita solidez. E educação ele… perguntaram, né. O que foi ensinado nesse primeiro curso. Essa foi uma área vigorosa também, além da ecologia, as bases mais políticas dadas pelo [Jairnilson] Paim. E ele, Joaquim Cardoso de Melo. Eu tinha esquecido, muito forte na área da educação e sociedade.

FP – A conexão do centro com o Curso de Saúde Pública sempre forte.

TC – Muito forte. Depois vieram os cursos de especialização, mais recursos de epidemiologia, dado pelo Eduardo Costa, que era um grande quadro progressista. Bom, gente, eu diria que é isso. Então esse CENDRHU era e foi a equipe até hoje, a identidade é muito grande. Quem passou pelo CENDRHU é outro profissional em qualquer lugar. Tem quadro na Universidade, tem Guto lá na OPAS, tem vários já aposentados, tem eu aqui, tem a Virginia que é do segundo ciclo, tem gente em tudo que é canto. Mas é uma identidade. Saíram de lá, uma delas que é mais calma, a Lígia Amanda, que diz que vai organizar sim o encontro que João Barberino pede todo dia e a gente nunca conseguiu organizar, e ela vai fazer.

Virginia – Telma também. Das duas fases, os dois momentos do CENDRHU. Telma está na....

TC – Ela veio do interior. Na verdade foi levada pra trazer a visão…..

FP- Telma de que?

TC - Telma Dantas.

Virginia – Telma Dantas.

FP- Telma Dantas.

TC – Ela, inclusive, tem uma dissertação de mestrado belíssima sobre auxiliar de saúde. É referência.

FP- Muito bem, por hoje a gente quase não falou nada [risos]. Muito bom Tânia, muito bom.

Virginia - Na verdade….

FP- Não gasta não.

Virginia – Quem dera eu tivesse esse…

FP – Ah, sem essa Virginia.

Virginia – Essa memória.

FP- Você não teve na segunda fase lá?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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