Rede observatório. Recursos Humanos em Saúde

Estação de Trabalho OBSERVATÓRIO HISTÓRIA E SAÚDE

Entrevistas

Afra Suassuna Fernandes

Entrevista Completa

Projeto:
História da Atenção Primária à Saúde no Brasil

Data:
2 de outubro de 2018

Depoente:
Afra Suassuna Fernandes

Entrevistadores:
Carlos Henrique Assunção Paiva (CH)
Fern
ando Pires-Alves (FA)

Local:
Recife

Duração:
3h10min

              CP: Antes de tudo, Afra, agradecemos muito por nos receber. Sei que você é uma pessoa ocupadíssima e parar uma tarde, imagino, na sua rotina...

AS: Um dia seria mais difícil, né? A gente tinha pensado mais adiante, mas uma tarde é tranquila. Eu que agradeço a honra da entrevista. Fico contente.

             CP: Essa é uma entrevista do projeto História da Atenção Primária em Saúde no Brasil, hoje é dia 2 de outubro 2018, a gente está em Recife, vamos entrevistar a Dra. Afra Suassuna Fernandes, quem fala é o Carlos Henrique Paiva, na companhia do Fernando Pires Alves. Dra. Afra, para início de conversa, posso chama-la de Afra?

AF: Claro...

CP: Você pode falar um pouquinho sobre a sua origem familiar, até, digamos assim, o seu interesse pela medicina e também sobre sua vida estudantil?

AF: Então... Eu sou de uma grande família. Eu tenho sete irmãos, e eu sou a sétima de oito, e tem na família muitos médicos. Meu pai era médico oftalmologista, e tinha três tios médicos irmãos da minha mãe... Um urologista, um cirurgião plástico e otorrino e um pediatra, que foi o meu pediatra até eu me tornar adulta e numa grande família com tantos médicos a gente saber a influência que isto tem na formação. Mas, meu pai sempre dizia que não queria nenhum filho médico não... Então... E dos oito eu tenho um irmão, que é o quinto que também é médico, que é oftalmologista e eu. Eu me encantei, na verdade, quando era menina pelas ciências, de uma forma geral, pelas ciências e biologia. E eu disse “Eu quero ser médica!”. Com a ideia biologicista muito forte..., mas... Isso eu acho que era adolescente, uma adolescente jovem quando eu decidi.  Eu estudava em uma escola e tinha muitos amigos vizinhos.  Bom... Então essa ideia de fazer medicina, eu estudei a vida toda em colégio religioso e eu acho que isso termina influenciando minha escolha de até o oitavo ano de formação da igreja católica, mas uma igreja que, naquela época, tinha muita influência de Dom Helder, por exemplo. O meu colégio tinha outras ordens religiosas que não necessariamente eram mais progressistas. E era um colégio que trabalhava, atendia muita gente carente para estudar na escola. E depois eu fui para um colégio da ordem Marista que aí isso era mais forte ainda. Esse apoio progressista, Dom Hélder e Padre Henrique que foi uma pessoa muito próxima de Dom Hélder, era do Marista, então sempre foi igreja mais progressista, apesar de ter um pai conservador, mas ele era professor da Universidade também, foi meu professor, ele era muito respeitoso nesse aspecto. E ainda no colégio a gente, com a igreja, o padre da minha paróquia que era muito ligado a Dom Helder, o Padre Edvaldo, ele tinha um trabalho com meninos de rua e eu e outra amiga, a gente achava que podia trabalhar alfabetizar esses meninos e a gente ia para a rua e trabalhava com eles.  Eu acho que isso tudo tem uma convergência para o que eu resolvi fazer mais para frente.

CP: Isso no final no final dos anos 70?

AS: Isso no final dos anos 70, em Recife. A gente fazia esse trabalho voluntário.  Quando eu entrei na faculdade, eu fiz vestibular em 1978, entrei na faculdade em 1979. Eu tinha 18 anos. Então eu tive uma tremenda decepção, na faculdade.

CP: Qual escola?

AS: Foi a Universidade Federal de Pernambuco. Porque tipo assim. Uma concorrência... Apesar de trazer comigo muitos amigos do ensino médio na minha turma tinham várias pessoas, inclusive uma grande amiga, mas aquele cenário me impactou muito. Eu esperava outra coisa da universidade. Um ensino muito duro e estudar biofísica, bioquímica. Isso tudo me impactou muito. E no segundo ano da faculdade eu pensei em deixar o curso de medicina. Mas aí a minha mãe disse: “filha, fique mais um semestre. Veja, termina o fim do ano”. É coisa de mãe que entende o que tá acontecendo, e que pode ainda no final da minha adolescência aquele impacto foi muito grande.  Uma turma enorme e uma concorrência entre os colegas muito grande. E eu terminei! Aí depois disso eu comecei a fazer... E tinha meu irmão que já estava na mesma universidade e ele era monitor do departamento de histologia e eu já me animei porque era uma coisa diferente daquele ambiente, que para mim de muita concorrência. Você passar na Universidade Federal de Pernambuco, tão nova, na primeira tentativa, mas quando chega lá dentro você se depara com um mundo bem diferentão, e com disciplinas que realmente o modo de oferecer aquilo era para mim muito estranho. Mas aí fui para monitoria, da monitoria comecei a me relacionar com alunos de outras turmas e a partir daí entrar no movimento estudantil foi um pulo. Então eu fui da diretoria do centro acadêmico e a gente está falando de 1980 ainda em pleno governo Figueiredo. E fazer movimento estudantil. Aí nessa hora meu pai disse: “Opa! Vai não!”, converse com a sua avó.

CP: Você se incomoda de mencionar sua tendência no movimento estudantil?

AS: Então. Era Travessia, uma tendência de esquerda, muito me impressionou Jarbas Barbosa, Humberto Costa que hoje é nosso senador e foram contemporâneos meus e eram pessoas que tinham um ativismo dentro da Universidade muito forte. Diziam coisas que me interessavam muito.

CP: E eram da Travessia também?

AS: Todos da Travessia. E eu entro para o Centro Acadêmico, apesar da minha avó me chamar na casa dela, a mãe da minha mãe, mas aliada com meu pai. A família minha mãe tinha passado por um trauma muito grande na Revolução de 30.  Meu avô tinha sido governador da Paraíba e foi assassinado na Revolução de 30 e vovó era uma pessoa muito aberta, uma mulher inteligentíssima, matriarca, mas queria defender os delas a qualquer custo para não se repetir histórias políticas que ela não admitia. Apesar de ter uns sobrinhos, que inclusive foram presos e foram torturados. Da família da minha mãe e sobrinhos dela nessa época tinha gente presa, inclusive. Então eles morriam de medo que acontecesse o mesmo comigo, claro! Natural de uma avó e de um pai. Mas, eu continuei no movimento estudantil, entramos na época das Diretas e já eram outros tempos. Então nesta época esse grupo que é do centro acadêmico ainda, o DCE, a diretoria tinha sido desfeita se reconstituía, uns dois anos depois. Então todos nós íamos fazer psiquiatria. Auge da Reforma Psiquiátrica. Tinha uma instituição aqui chamada CTP – Centro de Tratamento Psiquiátrico, o CTP tinha dois psiquiatras, um deles ainda é vivo, mas que tinha uma postura diferente o tratamento. E todos nós... Humberto, Jarbas, eu, meu marido – que é Pedro Miguel, todo mundo e a gente foi dar plantão no CTP. E todos nós achávamos que íamos fazer psiquiatria. E tinham uns jovens psiquiatras que eram nossos preceptores e a gente fazer realmente fazer a reforma psiquiátrica. Mas um belo dia eu levei sacolejo de uma paciente. Isso mexeu. Ela era uma jovem esquizofrênica, hebefrênica, era uma adolescente. Foi muito marcante na vida de todos nós esse caso, essa moça terminou morrendo e eu fiquei impactada com aquilo. Achei que daí não ia dar conta dessa história. E tinha uma amiga da família que era pediatra... A noiva desse meu irmão que é oftalmo, que estava estagiando no hospital de Pediatria e uma amiga da família era preceptora lá e me chamaram para dar plantão. Aí eu me encantei, me encantei com a pediatria. E aí comecei a frequentar o consultório desse meu tio que era pediatra também. E aí eu disse, agora isso era do quarto pelo quinto ano já. No quinto ano eu me dediquei a plantões de Pediatria. Eu disse: É isso que eu quero fazer!  O sexto ano nosso que a gente faz internato (se eu tiver demorando muito, viu) ...

FA: Siga...

AS: O sexto ano que o internato nosso é. Eu estudei aqui no Hospital Pedro II, um semestre. Houve a transferência do Hospital Universitário para o campus da Universidade Federal no ano de 1983, mas em 85 que foi ao meu internato, eu vim cumprir o internato de Pediatria aqui no IMIP. Apesar de já estar pensando em fazer e já estagiando em pediatria eu nunca tinha trabalhado nem estagiado aqui no IMIP.

CP: Isso quando?

AS: Em 85, segundo semestre de 85 que foi o ano que conclui.

CP: Mas você já frequentava o IMIP?

AS: Não... Não.

CP: Nenhum projeto de extensão comunitária?

AS: A extensão foi em 88 quando terminei minha residência. E aí eu fiz o meu internato aqui de Pediatria e eu disse: É aqui que eu quero fazer minha residência! Fiz a seleção, e passei e fiz dois anos. Terminei fazendo dois anos e meio de residência porque tive meu primeiro filho quando estava no segundo ano da residência e terminou que conclui em 88 a minha residência aqui.  E quando eu terminei, tinha algumas colegas, contemporâneas da faculdade, que me conheciam. Algumas faziam o movimento estudantil, apesar de a gente ser oposição (risos). Elas me conheciam e aí elas disseram assim “Afra, vamos trabalhar no projeto de extensão Comunitária do IMIP?”. Só que quando eu terminei também tinha um preceptor meu aqui, Emanuel Sarinho, disse: “A gente quer você na enfermaria do terceiro andar”. Eu fiquei absurdamente encantada com os dois convites. Ou eu ia me meter numa enfermaria de Pediatria para fazer ciência, ou eu ia para comunidade para fazer um trabalho de extensão comunitária e foi um dilema, foi um dilema bem grande. Então eu terminei minha residência em uma semana e na semana seguinte eu já estava contratada como médica do IMIP para ir para a comunidade Santa Teresinha. E a partir daí uma longa história. E meus colegas de residência diziam “Mas como é que você não vai ficar na enfermaria e tal tal tal”...

CP: Esse programa extensão, ele foi um programa bem interessante, né? Porque ele conta com a participação da Universidade Estadual de Pernambuco, da Igreja...

AS: Da UNICEF.

CP: Da figura do professor Fernando Figueira.

AS: Dom Hélder.

CP: Fala um pouquinho como se deu esse encontro com esses atores tão diferentes?

AS: Tão diferentes. Então eu estou no IMIP desde 85, eu tenho 33 anos nessa casa. Com idas e vindas porque fui da gestão e voltava. Fui da gestão municipal – voltava para a estadual. Voltava. Fui para o Ministério, voltei. Então fui a segunda vez para a Secretaria Estadual. Mas enfim. O IMIP foi fundado em 1960 por um grupo de profissionais daqui do Estado, Professor Fernando Figueira liderando este grupo e ele passou a ser, depois de construído, passou a ser o Hospital de ensino da Universidade Federal Pernambuco para pediatria. O IMIP tem programa de residência desde 1966, de residência em pediatria. E o Professor Fernando Figueira era muito próximo de Dom Helder. O professor foi Secretário Estadual de Saúde acho que em 1975 mais ou menos, 78 por aí.

CP: Só uma coisa... O IMIP já nasce com esse nome de medicina integral?

AS: Não. Era Instituto de Medicina Infantil. A sigla ficou se adequando a diferentes nomes... Então depois passou a ser de medicina infantil. Quando eu entrei era materno-infantil... Não! Quando eu entrei na residência foi quando começou a atenção à Saúde da Mulher, aí virou materno infantil e depois virou Medicina Integral, em 2005...

CP: É recentíssimo...

AS: É bem recente. Medicina integral é bem recente que foi quando entraram outras áreas básicas e especialidades. Então, voltando à fundação do IMIP e da extensão comunitária, o Professor Fernando Figueira, ele foi também diretor da Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco e esta faculdade hoje integra a UPE que é a Universidade Estadual de Pernambuco. Ele foi uma pessoa com uma visão muito progressista, então quando diretor da faculdade ele já iniciou um projeto de extensão numa região aqui da cidade que chama-se Vasco da Gama, que  fica no bairro de Casa Amarela. Casa Amarela junto com Ibura, são as regiões mais populosas e mais populares da cidade.  E o professor iniciou esse projeto de extensão do Vasco da Gama. Eu acho que existe um Centro de Saúde. Tipo Centro de Saúde Escola e os alunos iam para lá para estudar. Então ele sempre teve uma visão de formação profissional extramuros. Ele dizia que mais do que pediatras a gente precisa de médico. Quando a gente discutia a formação de neonatologista aí que ele ficava... Ele não aceitava isso, dizia que a gente precisa é de médicos. Então, juntando a experiência que ele tinha tido nesse projeto de extensão e uma demanda da Igreja Católica e do Movimento Popular de Saúde, acho que vocês já ouviram falar do MOPS aqui em Pernambuco era muito forte. Foi um movimento muito forte. E um o MOPS ele vem da década de 60 se eu não me engano, mas na década de 70 ele já trabalhava como voluntárias na comunidade. Então aqui na frente tinha um posto de saúde, aqui na comunidade dos Coelhos, que era um médico chamado Paulo Dantas- não sei se já ouviu falar em Paulo. O Paulo foi Secretário de Saúde de Recife. É uma pessoa que tem uma história aqui na saúde pública no nosso Estado. Paulo muito jovem trabalhava como pediatra, e já trabalhava com umas senhoras da comunidade apoiando-o. A Fundação Nacional de Saúde já tinha também visitador sanitário. Era um misto de movimento popular de saúde, as ideias da fundação Nacional com os visitadores sanitários.

CP: Próximo à Igreja Católica?

AS: Sim, muito próximo da Igreja Católica. Tinha outro pediatra, chamado Stemberg Vasconcelos, Stemberg depois entrou para o UNICEF. Stemberg se largou daqui e foi para Serra Leoa, mas foi um dos primeiros médicos desse projeto de extensão.  E em 1983, começaram esse projeto aqui na Comunidade dos Coelhos. Paulo Dantas era o médico. Numa comunidade chamada Vietnã, que é aqui na zona oeste da cidade muito próximo da CHESF - Companhia Hidroelétrica do São Francisco, da sede CHESF. E em Santa Terezinha que é próximo à Olinda. Olinda vocês sabem que é bem pertinho daqui?

            CP: Sim... Eu sei.

AS: E essas comunidades elas de alguma forma as associações de moradores já apoiavam o trabalho em saúde e já contavam também algumas pessoas do MOPS. E aí juntou o professor Figueira , Dom Hélder e a UNICEF. E resolveram começar esse projeto... E IMIP apoiando desde a contratação dos profissionais até mesmo cedendo insumos, medicamentos, material para curativo e tudo isso.

FA: O financiamento vinha?

AS: Da UNICEF e do próprio IMIP... E desde o início quando o projeto se estruturou. Num daqueles caderninhos que está ali em cima conta um pouco dessa história. Pode ser que eu esteja falando alguma coisa que possa não ser tão apropriada porque em 83 eu não estava ainda, eu só entrei em 88, 5 anos depois. Então as origens aí, mas está contada ali naquele documento. E desde o início se pensou o seguinte... Quem seriam essas agentes de saúde? Que perfil elas deveriam ter? Então IMIP estabeleceu alguns critérios de seleção... De ser morador da área, de saber ler e escrever, precisava pegar os cartões e acompanhar as crianças e as mulheres. O foco era criança e mulher. O atendimento eram crianças e mulheres. Então cada um desses postos funcionou com um pediatra e uma obstetra ginecologista.  Que aí entra em cena Tereza Bezerra que foi uma pessoa que durante anos coordenou esse projeto depois da saída de Stemberg.

CP: Deixa eu fazer uma pergunta: E os colegas psiquiatras, onde estavam nesse momento?

AS: Os colegas psiquiatras quase todos migraram para a saúde pública. Então já havia residência de saúde pública. Então eles foram para a saúde pública... Humberto Costa foi para a psiquiatria, Gustavo foi para psiquiatria também. Uns poucos fizeram depois formação em Psiquiatria, mas a maior parte foi para a saúde pública, uns 4 ou 5, uma foi para São Paulo que era Luciana- hoje ela faz nefrologia. Outra depois fez saúde pública, mas foi para radiologia, outra foi ser mastologista, é mastologista aqui do IMIP (risos). Muitas eram da minha turma. Uma parte foi para saúde pública, meu marido foi, Zé Luiz foi, Ana Paula Soter que foi para o Ministério também. Então um grupo foi para saúde pública e só eu fui para a pediatria.

FA: Deixa eu fazer uma pergunta...  Você está aí no começo dos anos 80.

AS: Isso...

FA: Você está falando de um processo no começo dos anos 80, que impacto, como vocês viam o debate internacional sobre atenção primária, isso chegava, isso era apropriado, era operacionalizado ou era uma coisa distante?

AS: Era bem distante, era bem distante para a gente aqui. Conferência de Alma Ata eu só fui saber de alguma coisa pelo menos 10 anos depois. Foi 78/79...

FA: 78.

AS: 78. E eu venho entrar na extensão em 88... Então isso para mim passava ao largo apesar de que como tinha essas pessoas envolvidas. A UNICEF envolvida... O professor Fernando Figueira seguia muito o ideário da atenção primária de Alma Ata.

FA: Ah sim...

CP:  Ele referia?

AS: Referia e ele tinha uma formação muito sólida nesse aspecto, ele estudava muito, além da pediatria, porque ele nunca deixou de ser pediatra.

CP: Ele tinha alguma experiência internacional?

AS: Ele morou nos Estados Unidos, mas para estudar Pediatria. O que se chamava da Pediatria social, ele era um dos mentores, junto com a escola lá de São Paulo

FA: E essa presença da UNICEF, no começo dos anos 80. Tinha aquela ideia de atenção primária seletiva, aquelas quatro, aquelas quatro diretivas?

AS: Veja...  Então a UNICEF ele trabalhava com as diretivas, vindo de Alma Ata e havia uma convergência de intervenção com que o IMIP já fazia. Então a gente trabalhava com todo processo de capacitação que quando eu cheguei em 88 na comunidade, o programa já tinha 05 anos. Então já tinha uma estrutura. Já havia os agentes comunitários de saúde selecionados, existia o posto... Esse posto nunca deixou de ser multiprofissional. As enfermeiras eram de uma missão alemã que era a Miserio. Então elas vinham com uma visão de saúde pública bem diferente da nossa, mas dava tudo certo. Tinha dentistas...

FA: Diferente em quê? Vamos insistir um pouco nisso.

AS: Veja como enfermeiras elas tinham um arcabouço de intervenção muito maior do que do que o nosso, que as nossas enfermeiras. Então não tinha essa história de que é o médico que sabe mais não. Éramos colegas de trabalho. Os dentistas que trabalharam conosco eram nossos colegas de trabalho sem nenhuma hierarquia dentro do posto de quem era médico. Eu era super jovem, eu era a mais jovem do time e todo mundo era mais velho do que eu.

CP: Elas tinham mais autonomia?

AS: Muita autonomia 

CP: Elas prescreviam?

AS: Não, não... Porque todas tinham alguma passagem ou em países de língua portuguesa, na África, ou... Mas Gundie que trabalhava com a gente, se eu não me engano, ela tinha morado no Brasil e voltado para Alemanha, mas enfim... Eram profissionais muito autônomas e coordenavam o trabalho das agentes de saúde e olha que em 88 não existia nem o Programa de Agente Comunitário de Saúde. Então a gente foi realmente muito inovador, muito inovador como programa. Todas as agentes de saúde eram selecionadas, tinham carteira de trabalho, recebiam no mínimo 01 salário mínimo, UNICEF bancava isso e as associações de moradores tinham CNPJ e contratavam as agentes de saúde e a gente só entrava em uma comunidade se assim fosse. Então não tinha trabalho voluntário. Era um trabalho remunerado de agente de saúde. Elas passavam por um processo de seleção, tinha prova, tinha capacitação. Ali tem alguma coisa, pouquinha do material que a gente usava nas capacitações delas.

FA: Qual era o trabalho do agente de saúde?

AS: Então... Como nosso foco era saúde da criança e a saúde da mulher, desde então, já se faziam as visitas domiciliares. A gente utilizava já o cartão da criança do Ministério. Não tinha nem o SUS ainda. (risos) Mas se tinha o cartão de saúde da criança. Então elas tinham o roteiro, tinham o mapa, a gente já fazia mapa, já trabalhava.  Tereza Bezerra que atuava como gineco-obstetra, ela tinha feito a formação dela, a residência dela foi medicina geral comunitária. Tereza tinha uma formação em saúde pública que eu não tinha à época. Mas de toda a comunidade a gente já tinha o mapeamento, já tinha o diagnóstico de área.

FA: Tinha referenciamento?

AS: Tudo. A gente fazia visita domiciliar, eu saía do consultório, a gente fazia reunião de rua, uma vez por semana não tinham atividades assistenciais, a gente ia para comunidade escolhia um tema e esse tema mudava muitas vezes. Me lembro como se fosse hoje e eu disse “Vamos hoje falar sobre aleitamento materno”... Tinha dado uma chuva nesse Recife na véspera, e uma dessas comunidades Santa Terezinha tem um canal que foi...

CP: Canalizado.

AS: Canalizado. Mas antes transbordava e quando eu cheguei lá na casa aí o pessoal disse “Afra, não vai dar para a gente falar sobre aleitamento materno não... a gente tem que conversar aqui sobre como é que a gente vai ter que fazer para tirar o lixo do canal, por que inundou”. Eu disse tá...  Eu me sentei ali... O que eu sabia sobre lixo e canal? Saindo de uma residência de pediatria? Fui aprender.

FA: Afra, você falou a pouco da Teresa.

AS: Teresa Bezerra ela foi coordenadora do projeto...

FA: Só para entender uma coisa, você falou que ela já tinha certo acúmulo, fala um pouquinho dela e de onde veio esse acúmulo de experiência dela?

AS: Tereza se formou pela Universidade Federal de Campina Grande e veio fazer residência de geral comunitária da nossa Universidade Federal de Pernambuco. Tinham duas residências, tinha a geral comunitária que terminou acabando, e uma de saúde pública que meu marido já fez. Então Tereza foi de uma transição dessa formação aqui. Então tinha a Universidade Federal também tinha projeto de extensão, um próximo ao campus, e um em uma cidade que fica a 50 km daqui o projeto Vitória. Que eles faziam tanto a intervenção na comunidade como tinha o hospital estadual que servia de referência, vamos dizer que era como a medicina de família de hoje, mais ou menos nesse sentido.  Então Teresa fez uma opção pela saúde da mulher nessa residência, mas é também uma formação de saúde pública. Nosso departamento da Universidade Federal de Pernambuco de saúde pública também teve umas figuras como o Eduardo Freese, Heloísa Mendonça, eles foram meus professores e eles eram os preceptores dessa residência também. Tem um grande caldo aí.

CP: Em algum momento você também falou da FUNASA como instituição.

AS: A FUNASA tinha uma atuação muito grande aqui no Estado e trabalhava também com visitador sanitário. Não que teve uma influência direta aqui no projeto de extensão, mas o modelo já existia. E a gente está falando de uma época que a gente estava fazendo isso aqui, Henrique Santino Santilo estava em Goiás junho com a Halin Girard Girad que era... Depois veio a ser da UNICEF. Então Halin também foi uma pessoa muito importante.

CP: Desculpa quem é?

AS: H A L I N G I R A R D, é com H. Halin trabalhava com Henrique Santilo. Então tinha, vamos dizer, nessa coisa da atenção primária apesar de a gente não ter um conhecimento grande e nem tinha essas facilidades de se comunicar, mas depois dos anos a gente vê que o que simultaneamente a gente tinha aqui estava lá em Goiás, estava em São Paulo no Vale do Ribeira com David Capistrano e com nosso saudoso ministro Jatene, né?!  Eu tive a oportunidade de ver alguns anos atrás um caderninho desse tamanho que David e Dr. Jatene fizeram sobre a atenção primária no Vale do Ribeira. Cheio de mapinha, a descrição de clientela, de territorialização, a coisa mais linda!

FP: Era a USP de Ribeirão Preto que estava aqui?

AS: Não sei... Não sei se eles eram ligados a alguma...

CP: Só para registar: quando a gente está falando de FUNASA, a gente pode pensar na Fundação SESP?

AS: Sim, sim, sim...  Fundação SESP. Mas depois vou falar um pouco da fundação SESP porque quando eu fui para a Secretaria de Saúde de Recife uma pessoa muito importante também, para a estruturação da atenção primária aqui na cidade foi Rui Pereira, Rui era médico sespiano, foi dirigente da Fundação Nacional de Saúde, da Fundação SESP aqui no estado, e Rui faleceu a uns nos anos num acidente horrível, mas era uma pessoa muito importante para a gente também. Ah! Eu me lembrei de uma coisa (risos), fala de Rui. Ele e a esposa dele, quando eu era estudante de medicina, acho que eu estava no quarto ano, um dia eles bateram lá no centro acadêmico: “A gente trabalha numa comunidade, aqui num bairro chamado Totó, relativamente próximo da universidade e a gente tá precisando de algum voluntário. Tem a pediatra que atende lá na comunidade e ela é voluntária, a Graça Oliveira que ela trabalha aqui, e Graça precisa de alguém que aprenda a fazer vacina. Quem que quer ir?”. Lá fui eu, para a Comunidade dos Planetas dos Macacos. Passei alguns meses no Centro de Saúde aprendendo a aplicar vacina BCG, que era uma grande dificuldade. E fui para lá, para o Planeta dos Macacos para vacinar. Passei alguns meses lá, a gente marcar para vacinar. Rui e Ana Brito, não sei se conhecem, Ana trabalha... Se aposentou recentemente. Trabalha com HIV, Ana Brito...

CP: A Ana não tem nada a ver com a SESP né?

AS: Não, não, não. Rui, o marido, que era da fundação SESP.

FA: Eram casados...

AS: Casados. Hoje ela é viúva porque Rui morreu. Então voltando, voltando, voltando, eu começo a trabalhar em 88 aí nesse esquema com pediatra. Comecei numa unidade e aí trabalhava vinte... Vinte nada. Eram vinte horas lá, trabalhava aqui no ambulatório do IMIP, eu era já nessa época... Terminei a residência e já comecei a ser preceptora do internato, ficava no ambulatório aqui e dava plantão na emergência nos fins de semana. Então eram três cenários completamente diferentes

FA: Emergência pediátrica?

AS: Emergência pediátrica. O IMIP ainda continua sendo a maior emergência pediátrica do estado. Mas eram três cenários completamente diferentes, mas em todos uma tragédia em termos de saúde da criança, meninos morrendo assim loucamente. Bom, aí eu fiquei em Santa Terezinha e depois de um ano começou uma nova comunidade dentro do projeto chamada Caranguejo. Aí não! Depois de um ano não, depois de dois anos que eu estava em Santa Terezinha começou o primeiro ano com outra médica, que era Cíntia. Aí Cintia saiu do projeto e eu fiquei sendo a pediatra no Caranguejo.  Então eu trabalhava nas duas. Gradativamente eu fui reduzindo a minha carga horária de ambulatório, continuei dando plantão e em 92, 91 o professor - essa semana eu escrevi sobre isso - o professor no fim de 91, chamou a mim e a Tereza. Tereza continuava sendo minha chefe, a gente trabalhava juntas em Santa Terezinha e aqui no Caranguejo. Ela fazendo a parte de gineco e pré-natal e tal e eu na pediatria. Aí ele nos chamou na sala dele e disse o seguinte... Jarbas Vasconcelos tinha ganho a eleição municipal e o secretário de saúde, Guilherme Robalinho, isso era dezembro, veio aqui ao IMIP conversar com o professor e ele estava chamando pessoas egressas do Núcleo de Saúde Coletiva da Fiocruz, do NESC, gente que tinha o curso de especialização em Saúde Pública, estava chamando algumas pessoas de lá, o secretário adjunto ia ser Rui Pereira, que vinha da Fundação e estava chamando o IMIP para participar da gestão municipal também. E aí o professor disse “Tá o IMIP participa, mas vamos implantar em Recife os agentes de saúde”. E ele topou e o prefeito topou, e aí ele disse “Tem duas pessoas que você vai levar: Tereza e Afra.”. Quando saímos da sala dele, eu disse “Tereza, pelo amor de Deus... A gente vai saber fazer isso?!” (risos). Aí eu disse “Eu tô com medo”. Aí ela disse “Eu só tenho medo do que eu não sei fazer, isso eu sei. Então vamos embora!”.

CP: Que ano é isso?

AS: 91

CP: Final de 91?

AS: Dezembro de 91.  E a gente foi para lá em 92, quando assumiu a gestão.

FA: De quem era essa ideia? Vamos fazer isso: entre Jarbas, Robalinho, Rui... Como essa decisão política ocorre?

AS: Veja... O professor era uma pessoa que tinha muita influência sobre os...

FA: O Fernando.

AS: O Fernando Figueira. Ele disse: olha, Robalinho quer a ajuda da gente eu propus a ele... Bom, vamos lá: em 91 o programa do Ceará começou em 90, se não me engano. Não foi isso?

FA: Uhum.

AS: O PAS começou já no governo Collor e Henrique Santilo era o ministro.  Então ele veio com a experiência dele lá do estado de Goiás e trouxe ali com ele... Então já tinha uma possibilidade de começar. O programa já chamava PACS, eu não sei se em 91 o estado de Pernambuco já tinha o Programa de Agentes Comunitários, me parece... Eu estou confusa agora com as datas. Mas eu sei que a gente implantou em Recife. Mas a ideia, o insight pode está certo que o professor teve uma grande influência e por outro lado eu acho que Rui também como secretário-adjunto.  Porque o Robalinho, ele é clínico, foi meu professor de gastroenterologia, então ele não tinha uma vivência na saúde pública. E essa equipe do NESC, quer dizer, que veio da saúde pública, Nara na epidemiologia, Sonia Brito no planejamento, Graça Cavalcante. Tinha outras pessoas então...

FA: Pedro também estava?

AS: Pedro Miguel? Não, não... Pedro não foi.  Tinha certa divergência, mesmo nesse grupo, porque o trabalho do IMIP, muitas vezes, era visto como reducionista, está seguindo agenda do Banco Mundial. Eu ficava furiosa com isso! (risos). Nem sabia direito o que era agenda restritiva do Banco Mundial, mas eu dizia “Não é isso não minha gente!” (risos).

FA: Quem falava isso? Só para a gente...    

AS: Tinha um monte de sanitarista aqui, meus amigos. (risos)

FA: Isso era uma tese da época. Era o debate da época

AS: Era o debate. Aí eu dizia “Não, mas a gente está fazendo outra coisa, não é só isso não... Não é!” [e o outro] “É restritiva sim. Só que tratar de parasitose”. Aí eu dizia a Pedro, e Pedro dizia “você tem que tomar muito cuidado com essa agenda”. Mas não é isso que eu faço todo dia não, eu faço outra coisa! E para convencer todo mundo, todos os amigos- porque todos eram muito amigos...  Mas voltando a prefeitura, Rui teve uma importância muito grande com essa vinda dele da Fundação Nacional de Saúde. Mas a gente não queria aquele modelo do visitador sanitário só- só que não era só- não estou menos prezando não. Era outra coisa que a gente fazia.

FA: Era materno infantil, o escopo já estava seguindo...

AS: Não. Ainda era materno infantil, ainda era materno infantil. Em 91 a mortalidade infantil de Pernambuco era de 100 ou 90. E a gente começou com materno infantil mesmo. Mas aqui no IMIP a gente tinha uma tradição muito forte da questão da segurança alimentar e nutricional. O Professor é muito amigo do professor Malaquias Batista, que está aqui numa sala pesquisando até hoje. E Nelson Chaves também foram pessoas muito importantes na questão da segurança alimentar. Tinha um histórico aí.

CP: Quero te fazer uma pergunta que eu queria que você fizesse um esforço de se remeter àquele período, e não responder com o que a gente sabe hoje. Quando você se referiu ao Rui Pereira, você logo disse assim: “Olha não era exatamente o modelo da visitadora sanitária”. Àquela época qual era exatamente a perspectiva que se tinha desse modelo e o que se pretendia superar com relação a ele?

AS: Eu particularmente não pensava em superar nenhum modelo. O que a gente sabia de Fundação é que era um modelo muito militarizado porque é tudo de cima para baixo e a ordem é essa. E a gente dizia “Não, não vai ser assim”. Mas não era a discussão do que o visitador sanitário fazia ou deixava de fazer, porque era muito semelhante, a gente trabalhava com descrição de clientela, fazia o mapa, mas a base era sempre assim... Qual é a comunidade que quer? Onde a gente tem os piores indicadores? Então quando a gente foi para Recife, com esses sanitaristas de formação lá, então a gente fez todo o mapa da cidade, qual era o maior risco de morte, dentro da cidade? Vamos começar por essas áreas de maior risco. Dá pra implantar o trabalho aqui. Isso a gente discutia. Não era bem um confronto de modelos, porque nessa época eu sabia muito menos de saúde pública. Porque, eu volto a dizer, eu era uma pediatra ali, trabalhando do que vinha do meu trabalho de três, quatro anos de comunidade, mas havia uma preocupação de a gente entrar em Recife com uma base epidemiológica montada. Vou fazer um parêntese: Olinda, Jarbas Barbosa e um time também de sanitaristas, Zé Luis Araújo, Ana Paula Soter, já trabalhavam...

FA José Luis?

AS: José Luis Correia de Araújo. Não sei se vocês conhecem Zé. Está na Fiocruz aqui também. Não sei se vocês conhecem, está na Fiocruz também. Antônio Mendes, Toinho, tá certo?! Eles já tinham feito uma estratificação. Djalma Agripino trabalhava com eles e Paulo Frias, eles já tinham feito um mapa em Olinda. Então parte desse grupo veio aqui para Recife com as mesmas ideias. Então a diferença que eu acho é que o território começa a ser mapeado pela primeira vez com base em risco epidemiológico. Nunca tinha sido feito isso na cidade, pelo menos não que eu tivesse conhecimento. Minto. No final do século- estou me esquecendo o nome do médico daqui- eu vi também um livro impressionante no começo do século XX, um mapeamento da cidade que eu também fiquei “Aham, aham!”. Mas coisas que eu também não vou recordar exatamente quem foi que fez isso aqui no estado, na cidade. Mas enfim, na história recente da saúde da cidade a gente foi muito inovador.

FA: Depois você manda o nome desse cara?

AS: Vou mandar.

FA: Esse inovador aí.

AS: Eu vi um livro, na verdade eu fui entrevistada por um doutorando lá de São Paulo e ele disse: “Afra, olha esse livro aqui.” Eu fiquei impressionada com o que se tinha.

FA: Não faz mal, não faz mal.

AS: Depois eu falo para vocês. E aí, então encima desse mapa a gente começou a ver como ia se dar essa implantação. E uma preocupação enorme com uma cidade tão pobre como Recife, você começar a fazer uma seleção de agentes comunitário de saúde, com pessoas moradoras da área e a gente já tinha os critérios de saber ler e escrever, ter mais de 18 anos, ser moradora da comunidade há pelo menos dois anos e tal...  E foi muito interessante.

FA: A gente está em 91?

AS: 92 já. Final de 92 porque o primeiro semestre foi muito de planejamento, mas meados de 92 a gente começou a fazer as seleções de agentes de saúde.

FA: Mas já vem com indução do Ministério da Saúde ou essa iniciativa de escopo.

AS: Já tinha o programa. Porque seu não me engano, foi 91/92 que começou no âmbito nacional. E aí vamos selecionar os agentes de saúde. O estado com certeza já tinha o seu programa e na época tinha uma divergência partidária entre município e estado e a gente disse “A gente não quer que o estado faça seleção dos agentes, quem vai fazer é a gente mesmo”.

FA: Jarbas aqui na prefeitura

CP: Quem era o...

AS: Eu não sei se era Roberto Magalhães.

FA: Roberto ou o... Vice-presidente já?

AS: Marco Maciel, talvez. A gente fez o processo, iniciou o processo de seleção e uma coisa assim que foi importante e que a gente dizia “Olha! Afra e Tereza são do IMIP e não vai ter interferência partidária aqui, a gente vai fazer a seleção e vai ser feito como a gente acha...” E o prefeito bancou e a gente conseguiu bancar essa história, gente. Foi muito interessante.

CP: Eu acho que em algum momento você até já comentou sobre o que eu estou aqui pensando. Bem, naquele momento, como você olhava para as outras experiências no cenário brasileiro, que na perspectiva de vocês dialogavam com o que vocês estavam fazendo aqui?

AS: Não em 92, mas em 93 a gente começou, eu e Tereza...  Tereza tinha, como ela foi da Paraíba, ela tinha algumas pessoas conhecidas dela da Paraíba no Ministério da Saúde, Fátima Souza... Que você já ouviu falar em Fátima, né... Na verdade era uma médica Ieda Cabral, que mora em São Paulo. Ieda fazia a ponte – Fátima-Tereza (risos) e o pessoal do ministério começou a chamar Tereza também e ela me levava junto dela. Ela continuava sendo a minha chefe, Tereza era a diretora do programa, e a partir de 93 a gente começou a participar de encontros nacionais de programas de agentes comunitários de saúde. E foi a partir daí, no final de 93, que eu comecei a conhecer as outras experiências que já estavam em implantação. A coordenação daqui do estado, do Programa de agente comunitário de saúde, ela teve muito valor, ela era técnica de enfermagem e na época se discutia se o agente ia ser um técnico ou se ia ser um agente, e aí chamaram Maria José e dissera “Olha Maria José venha coordenar!”. E a operação de seleção e de implantação dos municípios era questionada pelo Ministério da Saúde aqui no estado.

FA: E aí já estava José Serra?

AS: Não.

FA: É o fim do governo Itamar.

AS: Itamar, por aí. Aí a gente começou a ir para algumas reuniões em que se chamava o estado, mas chamava a capital também. Em quase todas as reuniões sempre que era chamado o estado e a capital e estavam em franca expansão o Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Final de 94, Miguel Arraes ganha às eleições. Aí, Jarbas Barbosa foi ser o secretário Estadual, Cláudio Duarte o secretário adjunto. Vem ao IMIP e... “Professor, a gente quer a ajuda do IMIP também”.

FA: O arranjo da prefeitura se desloca um pouco para a esfera estadual?

AS: Metade. Tereza ficou no município e aí teve mais dois anos de gestão municipal e o professor diz: “Tereza fica e Afra, vamos embora!”. Aí eu fui para a secretaria estadual e lá na secretaria estadual, foi feita uma grande reforma da estrutura da secretaria logo que a gente entrou. Então era no caso o PT apoiando o PSB e o PSB já rompido, eu acho, nessa época com o PMDB, Jarbas Vasconcelos, né? Então as pessoas se dividiram, mas era assim... Era o IMIP presente na gestão Miguel Arraes. Lá vou eu! Eronildo Felisberto foi ser o diretor da Diretoria de Políticas. E eu fui ser a diretora executiva da Atenção Básica da secretaria estadual de saúde. Aí nessa diretoria-executiva ficava o Programa de Agente Comunitário, mas também ficava Saúde da Criança. Tinha uma divisão na secretaria que terminou se mantendo. Saúde da Criança e Nutrição ficavam também nessa diretoria. Então eu fui ser essa diretora executiva, Eronildo era meu diretor, e aí aliado à expansão da atenção primária, a gente construiu - vocês vão ver esses documentos - um grande projeto de redução de mortalidade infantil no estado. Jatene era ministro já nessa época e houve uma grande mobilização para a redução da mortalidade infantil e a gente desenvolveu um grande projeto aqui. Era Paulo Frias, vocês conhecem Paulinho?

CP/FA: Não.

AS: Paulinho trabalha com mortalidade infantil desde essa época e a gente desenvolveu esse projeto. Claro que as coisas eram casadas, a gente implanta onde tem maior risco de adoecimento e morte infantil e depois vai implantar... 

FA: Tinham dados suficientes para isso ou era tentativa?

AS: Mais uma vez era Jarbas Barbosa que tinha vindo de Olinda já com a experiência municipal. Jarbas já era um bom epidemiologista, tivemos outros, que trabalharam conosco, como Djalma Agripino. Primeiro ano como sempre, vamos mapear, vamos ver. Historicamente a gente já sabia que a zona da mata, sul e norte do estado eram os piores indicadores de mortalidade infantil e materna... E aí vamos entrar nesses municípios, e a gente foi implantando.

FA: Deixa eu te fazer uma pergunta, não querendo interromper seu raciocínio. A essa altura tem um enorme debate sobre a atenção primária, atenção básica, como é que vocês lidavam com isso? Medicina Comunitária, atenção primária, aí daqui a pouco aparece Saúde da Família. Como é que essas...

CP: Só para complementar, indo na mesma linha, anos antes você já estava incomodada com aquela acusação de política restritiva e agora você está à frente da uma estrutura de atenção básica. Enfim, como é que você experimentava esses adjetivos, qualificantes?

AS: Era uma sopa de letrinhas que quando eu fui diretora do Departamento de Atenção Básica no Ministério eu digo “Peraê! Vamos fazer, vamos estudar o que tem aí pelo mundo para a gente vê se esse DAB é DAB mesmo, para chamar de atenção primária, que eu estou cansada dessa brigalhada!”. Veja, nessa época a gente já chamava de atenção básica e não tinha muita essa preocupação no estado de Pernambuco de chamar de primária ou básica, não. E a gente defendia, quando veio a proposta de Saúde da Família, a gente já tinha um bom caldo de cultura aqui que foi Camaragibe, que foi um dos treze municípios, junto com Sobral, Odorico, com Sola lá em Vitória da Conquista depois... com Sola foi um pouquinho depois, mas aqui em Camaragibe com Paulo Santana que foi colega amigo de Tereza e de Sonia Brito naquele tempo de residência de medicina comunitária, Paulo virou secretário de Camaragibe e Paulo foi um dos treze municípios a implantar a Saúde da Família, mas Paulo conhecia a experiência da gente aqui, porque Paulo era do MOPS, enquanto estudante o Paulo foi do MOPS. Ele conhecia nossa experiência. Então quando ele começou o Programa Saúde da Família, ele olhou um pouco o que a gente fazia com essas unidades, já tendo ginecologista, já tendo dentista, já tendo enfermeira na equipe, quer dizer... Então a gente fazia mais do que o pacote básica (o) (risos) a gente está fazendo mais.... !  Então voltando a 95 que foi quando a gente começou, a gente entendia que não dava para restringir só a Saúde da Criança e da Mulher, a gente estava atacando a mortalidade infantil e também a materna. Foi um pouco mais. Como a gente tem uma base do ponto de vista epidemiológico, a saúde da mulher tinha umas mulheres muito fortes aqui nessa secretaria estadual também... Sandra, Bernadete Antunes. Tinha um bocado de mulher trabalhando a questão da saúde da mulher as coisas também foram caminhando. Eu vou dizer a vocês que a gente não estava preocupado com isso não, de defender se era ou não era...

FA: Atenção primária ou básica.

AS: Atenção primária ou básica

CP: Seletiva.

AS: Seletiva ou não... Eu acho que a gente tinha muito mais coisa para se preocupar do que está dando respostas ao que se dizia a agenda do Banco Mundial. “Peraí minha gente, né não...” “Mas é, mas é, mas é...” Tá bom... Então vamos aqui à frente por que...

FA: Tem tarefa.

AS: Tem tarefa.

CP: Mas de qualquer forma esse debate acontecia?

AS: Menos eu acho no âmbito dessa secretaria...

FA: Era mais acadêmico...

AS: Era mais acadêmico. Nesta secretaria, nesse grupo não.

 

FA: A Fiocruz já dava um peso importante nesse debate?

AS: Sim... Porque Pedro nessa época foi para a diretoria de Recursos Humanos. Paulete Cavalcanti também. Antônio Mendes também.

FA: A gente está falando de diretoria do governo do estado?

AS: Do governo do estado. Antônio era o diretor da rede hospitalar e todos esses três vinham da Fiocruz. Entendeu?!  Então assim. Esse projeto de redução da mortalidade infantil, vocês vão ver muitos documentos que a gente tem. Foi muito construído por esse grupão aqui. E a gente já vislumbrava o seguinte: O agente comunitário de saúde tem um papel muito importante para a gente efetivamente reduzir a mortalidade infantil. Em 96 tivemos a questão da hemodiálise em Pernambuco.

FA: O que foi isso?

AS: Vocês não acompanharam isso?

FA: Não estou me lembrando não... 

AS: Foi em Caruaru, uma clínica de hemodiálise teve a água contaminada com aquelas algas azuis, e contaminaram a água do reservatório onde a clínica pegava. Infelizmente morreu muita gente. Hoje a gente pode contar a história dizendo que foi a água que estava contaminada e a partir daí mudou-se a história.

FA: Que diabo é essa alga azul? Desculpa.

AS: As algas são azuladas e elas soltam uma toxina e termina contaminando a água. Foi no segundo ano que Jarbas era o secretário e isso foi, acho, que uns cinco meses. Uma bomba na secretaria.

FA: Imagino.

AS: Para completar, no final do ano o PT rompeu com o governo Arraes, e Jarbas que era o secretário e Cláudio Duarte que era o secretário adjunto saíram da secretaria.  E aí assumiu uma pessoa daqui do IMIP, Gilliatt Falbo, cirurgião pediátrico.

FA: Desculpa é um nome difícil... Eu preciso anotar

AS: Gilliatt Falbo, Gilliatt assumiu a secretaria e Antônio Carlos Figueira, filho do professor, eu estou dizendo filho porque o nome é obvio, e Antônio Carlos foi ser o secretário adjunto.

Fernando: Como é que isso afetou o programa?

AS: Não afetou, não afetou. Não tivemos repercussão até porque várias pessoas continuaram na secretaria, mesmo com a saída de Jarbas e Cláudio, quase todos os diretores permaneceram. Assumiram essas duas pessoas vinculadas ao IMIP e a gente continuou tocando.

FA: Sobre isso deixa eu te fazer uma pergunta. A gente pode dizer assim, que a gente podia ter conflitos políticos por várias razões, mas a gente tinha um enorme consenso setorial do ponto de vista das agendas e das estratégicas?

AS: Aqui no estado sim.

FA: Imaginei. Então a divergência política não afetava o encaminhamento programático da área de saúde.

AS: Não. Claro que a gente tinha um governador como Miguel Arraes, né?

FA: Mas vai trocar... Daqui a pouco.

AS: Daqui a pouco é outro, mas em que pese à mudança e o rompimento do PT, não houve um rompimento do programático que tinha se estabelecido no governo Arraes para a gente continuar. Está certo? Então eu digo praticamente todos os diretores, Pedro continuou, Antônio continuou. Enfim...

FA: Posso fazer uma pergunta sem projetar? Você acha que isso tem alguma similaridade com o quadro nacional? Tipo assim, eu estou dizendo que a reforma sanitária tinha um consenso programático que se manteve apesar das instituições?

AS: Sem dúvida, sem dúvida!

FA: Sua experiência no ministério confirma isso?

AS: Confirma.

FA: Muda-se a governo, mas a agenda setorial tem coesão suficiente para se manter?

AS: Até recentemente... (risos)... Que aí eu...

FA: Óbvio, óbvio.

AS: Então...

CP: Afra...

AS: Diga...

CP: Só para explorar seu ethos, você percebe que no interior também não é tão linear?

AS: Nada é tão linear no estado, então é claro que o que vai ficar na memória são as coisas absolutamente positivas desse processo. Mas, eu acho que tinha uma convergência. Arraes nessa época divergia com Jarbas Vasconcelos, mas as equipes tinham fluxo total aqui nas equipes de saúde. Tereza continuou lá, Rui continuou, Sonia Brito. Aqui a gente continuou. Teve uma convergência, teve um alinhamento aí, que claro que passa pelos sanitaristas que estavam e que foram chamados, em quase todas as medidas. Eu acho que foram muito respeitadas no que estavam trabalhando, implantando. E quando isso não foi as pessoas saíram.

FA: Qual a relevância política do resultado na saúde? No Ceará Carlile [Lavor] chegou a dizer que o êxito na saúde teve um peso importante na estabilidade política do Ceará. As famílias de lá, Gomes, Jereissati. Isso foi bem importante para a estabilidade política. Qual o peso da saúde, da agenda da saúde na estabilidade política pernambucana?

AS: Pesa, mas Arraes perdeu o governo do estado em 98 para Jarbas Vasconcelos. Então assim...

FA: E quem que, a saúde apoiou quem? Desculpa, parece uma coisa ridícula de se perguntar, mas quem é que trouxe para si?

AS: Nesse momento houve racha. Houve racha. Tinha um grupo progressista do PMDB acompanhando Jarbas, tinha um discurso que Arraes estava velho, que era coronel, que isso que aquilo. Teve um problema muito forte sobre os precatórios.

FA: Sei. Essa situação da tragédia da hemodiálise deve ter pesado também.

AS: Muito, muito pesou muito.

FA: Na leitura política da saúde.

AS: Na leitura política da saúde, com certeza. Com certeza. Não foi determinante para o rompimento do PT. Porque era um grupo de petista na secretaria estadual, mas na hora que o PT rompeu quem saiu foi o secretário e o adjunto. Vários outros petistas continuaram no governo.

FA: O PT rompeu também imagino pelo debate sucessório.

AS: Também, e por algumas propostas que o Arraes assumiu. Respondi?

FA: Respondeu perfeitamente.

CP: Em algum momento... Antes, bem antes disso, quando você se inseriu nesses projetos de extensão comunitária você falou o seguinte “Olha, eu sou uma pediatra estou chegando nisso.” Em que momento você começou a se perceber, construir sua identidade, vamos dizer assim, como parte da atenção primária? Como uma figura da atenção primária?

AS: Foi muito longo esse caminho. Veja, eu trabalhei como pediatra quase 15 anos. Então eu lá estava na Secretaria Estadual de Saúde aí nasceu minha terceira, meu terceiro filho que é um(a) filho(a). Eu tenho um rapaz e duas moças. E quando Helena nasceu e eu dava plantão ainda na pediatria, aí eu disse... Eu não vou voltar mais para a pediatria não... Eu tenho que me dedicar. Era muito bebê. Eu tenho que me dedicar a uma coisa só, senão eu não vou dar contar de três meninos e... Mas eu podia ter optado pela pediatria, né?! Mas eu vou dizer que eu já pensava o seguinte “Eu não estou dando conta de ser pediatra não, tenho que fazer alguma outra coisa que interfira nessa mortalidade infantil. Eu tenho que... Não adianta, eu tô enxugando gelo aqui na emergência”. E nessa época eu ainda dava plantão na pediatria, mas em uma clínica privada.

FA: Isso a gente está em que ano?

AS: 95... 95

FA: Ou seja, você já estava cheia de responsabilidades.

AS: É. Na secretaria, já tinha passado pelo municipal, estava estadual. Aí eu disse não vou dar conta não...

FA: Ou seja, você era praticamente uma subsecretária.

AS: Era uma secretária executiva nesse campo da atenção primária.

FA: E dava plantão.

AS: Dava plantão de pediatria

FA: Pertinho do neném.

AS: Aí eu disse: Eu não vou dar mais plantão não... E passei...

FA: Isso era uma regra ou isso era uma exceção?

AS: O que, dar plantão?

FA: Essa dupla função... A gestão e o cuidado ao lado do leito.

AS: Não, era regra, para mim era regra.

CP: Não... Não...  Mas era a sua regra?

AS: Minha, que eu continuei na clínica, minha. Desse grupo de gestão, todo mundo era gestão. Quase todo mundo. Deixa eu pensar aqui se tinha alguém na assistência ainda... Acho que não.

FA: Talvez o psiquiatra...

AS: Talvez o psiquiatra da gestão. Tinha uma grande amiga, Amélia que era diretora do hospital, do maior hospital psiquiátrico, e ela continuava na assistência. Continua até hoje. Mas aí eu decidi, olha não vou dar mais plantão, a gente vai ter que se virar com que a gente tem e eu vou me dedicar a isso aqui. Não dou conta de três crianças, uma secretaria estadual e ainda a clínica. E eu estava podendo me atualizar e estudar muito pouco nessa época sobre pediatria. Não conseguia parar para ler, para estudar.

FA: Em 95, conceitualmente o que era a atenção básica?

AS: Olha... Aqui no nosso estado, nós tínhamos... Nós ainda temos a maior - depois do Rio de Janeiro, ainda é a maior rede hospitalar própria estadual... A gente herdou do INAMPS e a gente tinha muito hospital, muito... E uma grande rede básica de saúde, de centros de saúde, de postos de saúde.

FA: Isso no estado como um todo?

AS: No estado como um todo. E a atenção básica ela era muito tímida por conta- principalmente na capital - por conta dessa polarização que todo mundo corria para a rede hospitalar, porque a rede é muito grande, grandes hospitais que existem até hoje. Tem uma cultura hospitalar muito forte e uma tímida rede de atenção básica, de postos de saúde, principalmente os postos de saúde. Muito precários. Então era isso que a gente tinha. Era muito restrita, muito pequena, muito limitada a fazer pré-natal de baixo risco, imunização, uma clínica médica muito insuficiente. Tinha uma pediatria melhor porque como sempre esta casa formou muito bons profissionais, você tinha muitos bons profissionais pediatras na rede, mas saindo da pediatria, muito pouco. Teve um financiamento do Banco Mundial para postos de saúde. Eu conheci algum desses. Entrou aqui já viu a porta do outro canto. Tinha a geladeira de vacina, no ambiente um consultório, uma balança... Então assim, era uma atenção básica para gente muito precária mesmo e essa cultura hospitalar muito forte, inclusive dentro da secretaria estadual de saúde. Quando eu cheguei e que a gente foi implantar, expandir o Programa de Agente Comunitário de Saúde e começar a implantação da Saúde da Família era exatamente a gente... Mesmo tendo uma rede básica de saúde muito precária, a gente vislumbrava uma coisa mais para frente, mais estruturada.

CP: Nessa época, o debate, vamos chamar de rede de atenção, era outra coisa? E mesmo sendo uma outra coisa, qual era o estado da arte deste debate naquela época? O que se discutia? Qual era o diagnóstico que vocês tinham sobre o conjunto da rede, por exemplo?

AS: Então... Era muito apartado, sabe Carlos? A rede hospitalar consumia muito da secretaria e esse debate era ainda muito pequeno. Quer dizer, o que para o estado de Pernambuco consome essa grande rede: energia, dinheiro, gente. E uma rede básica de saúde, mas também era muito forte o processo de municipalização aqui no estado. Então já havia um movimento grande dos gestores municipais assumirem a atenção básica e foi muito propício porque com esse movimento de municipalização a gente pode debater a implantação do Programa de Saúde da Família. Então as coisas foram quase que simultâneas aqui no estado. Eu me lembro demais de um debate com Eduardo, Dadá. Eduardo Levcovitz e Déa Mara dizendo “Não, porque os modelos de vocês e vocês só estão discutindo e vocês só se preocupam com hospital...”. E não era bem assim, eu pensava “Porque que ela está dizendo isso?” (risos) Mas era porque o modelo de Pernambuco era muito parecido com o do Rio, dos grandes hospitais, lá os hospitais federais, mas aqui os estaduais e não se municipalizaram nunca. Até hoje são estaduais...

FA: Agora eles estão localizados na grande Recife?

AS: Na grande Recife e se construíram mais. Os hospitais metropolitanos. Então assim, se por um lado foi muito oportuna a discussão da municipalização e implantação da estratégia de saúde da família, porque a gente tinha avançado bastante com o PACS. E conseguimos nesses quatro anos de gestão com tudo isso que aconteceu, com hemodiálise e tudo, com mudança de secretário, mas a gente tinha um movimento de secretários muito importante. O próprio Paulo Dantas que tinha sido secretário de saúde de Recife, já estava em outro município que eu não sei qual era. Paulo Santana que foi secretário, virou prefeito, então virou um grande aliado e Camaragibe virou uma vitrine, uma referência como Sobral essas outras treze cidades que começaram o Saúde da Família. Mas Paulo fez uma verdadeira revolução em Camaragibe, ele fez.

FA: Desculpa interromper. Vitória de Santo Antão é em Pernambuco?

AS: É bem próximo aqui.

FA: Tem uma tradição enorme de movimento de saúde comunitária. Como é que isso chegava em vocês?

AS: Veja... Mas Vitória foi até quando teve esse projeto de extensão da Universidade Federal de Pernambuco que onde acontecia essa residência, que onde Paulo Santana e Tereza Bezerra, fizeram suas residências lá também. Hoje em dia, não mais e Camaragibe, não mais. Lamentavelmente.

FA: Mais tem PSF lá?

AS: Não... PSF têm em todo lugar.

FP: Essas residências é que acabaram?

AS: Essa tradição, essa fortaleza dos municípios com modelos de atenção... Sucessivas gestões...

FA: Porque houve esse decréscimo? Ou seja, experiências que eram consideradas exitosas...

AS: Veja, deixaram de existir? Não.

FA: Foram fagocitadas pelos programas maiores?

AS: Se diluíram, eu acho nas necessidades dos municípios. As próprias gestões municipais, eu acho, não deram a fortaleza ao sistema municipal de saúde. Lamentavelmente. A organização da atenção básica continua, mas não tem mais aquele vigor. Lamentavelmente. Sucessivas mudanças de gestores, eu acho, que comprometeu.

FA: Me diga uma coisa, a sua narrativa você está caminhando e a UNICEF? Permanece presente como uma parceira, como uma interlocutora?

AS: A UNICEF permaneceu.

FA: Quando você fala em Banco Mundial você quer dizer o que? Tem gente, tem técnico no Banco Mundial que visitava vocês? Discutia alguma coisa com o planejamento?

AS: Não...

FA: Discutir com a secretaria do planejamento...

AS: Nessa época a UNICEF nem estava mais como parceiro aqui do IMIP. A partir do momento que implantou, que começou o Sistema Único de Saúde, que os programas viraram governamentais a UNICEF saiu desse cenário de co-financiar. O que foi bom em alguma medida.

FA: Faz parte.

AS: Fez parte e pôde investir em outros aspectos. Do Banco Mundial, o Banco nessa nossa gestão estadual, o que estava em vigor era o ReforSUS, e o ReforSUS diferentemente de outro projeto que foi de posto de saúde, o ReforSUS era atenção hospitalar. Então certamente o que fortemente tinha de recurso em Pernambuco para o ReforSUS foi para a rede hospitalar, aí teve expansão, manutenção desses grandes serviços...

FA: Sei...

AS: Ampliação de serviço, mas na rede hospitalar.

FA: Rede básica com pouca presença.

AS: Rede básica zero de presença, a partir daí. Já não mais mesmo, nenhuma.

FA: Você fica até o final da gestão?

AS: Fico até o final da gestão de Miguel Arraes... Saio em 98 e ao longo desses quatro anos essa minha proximidade com o ministério ela foi se consolidando mais ainda.

CP: Isso que eu queria falar, à convite de Fátima que você vai?

AS: À convite de Fátima, de Danusa e posteriormente de Heloisa Machado.

FA: Antes de chegar aí...

AS: Pois não.

FA: Você falou que o PACS chegou a 100% do governo. Quando você está falando isso, você está falando da sede do município ou você tinha equipes itinerantes para dar conta da zona rural, como estava essa expansão?

AS: Essa expansão quando entrava era para o município como um todo. Zona urbana e zona rural. Aí nessa época já tinha o financiamento do Ministério, que era via Fundação Nacional de Saúde, era a FUNASA que transferia, até porque o departamento ainda não era departamento, era COSAC, chamava-se. Coordenação de Saúde da Comunidade era na Fundação Nacional de Saúde, né? Essa grande expansão do programa nacional ainda foi via Fundação Nacional de Saúde.

FA: Do PACS?

AS: Do PACS. Entre 96, 97 e 98 eu já era a coordenadora do Programa de Agente Comunitário de Saúde e de Saúde da Família em Pernambuco, então frequentemente participava das reuniões dessas coordenações, praticamente acho que a gente ia em uma por semestre. E aí o ministério começou a me convidar para implantar, discutir com as secretarias de saúde o programa, aí eu fui no caso para o Paraná. Éramos eu e Sonia, que era coordenadora de Alagoas...

FA: Sonia?

AS: Ai meu Deus como era o sobrenome de Soninha? 

FA: Não faz mal, a gente acha...

AS: Já faz tempo. Sonia. Moura.  Eu e Sônia íamos para o Paraná e eu fui muitas vezes para o Espírito Santo também. Eram dois estados.

FA: Com as secretarias estaduais?

AS: Com as secretarias estaduais...

FA: Quem era o secretário? [Armando] Raggio?

AS: Raggio do Paraná

FA: Qual foi o peso do Raggio? A gente está pensando em entrevistar o Raggio...

AS: Ah, era muito bom, minha gente! Muito bom. Muito bom. Ele teve um peso não só para a atenção básica, mas para o SUS também como secretário estadual de saúde que eu acho que foi muito importante.

FA: Acho que ele foi secretário municipal também, mas não da capital, né?

AS: Não sei se Raggio foi de Londrina.

FA: Acho que não... Acho que foi um município da grande Curitiba.

AS: Eu já o conheci como secretário estadual, e como Heloisa Machado é do Paraná têm uma interlocução, uma conexão grande de vários paranaenses com a atenção básica. Muito por conta de Heloisa mesmo. Do secretário estadual do Espírito Santo. Eu não lembro quem era.

FA: Você ia como consultora ou você já era uma funcionária do Ministério?

AS: Não, eu ia como consultora. Tinha um time de consultores contratados. Na verdade, eu acho que a gente era contratado na época.

FA: Provavelmente.

AS: Eu acho que a gente era OPAS na época e ia para esses estados e ficava semana. Eu viajei muito pelo interior do Paraná.

CP: Fala um pouco desse grupo, quem eram as pessoas que estavam nessas discussões?

AS: Tinha eu, tinha Soninha de Alagoas...

FA: Heloisa, né?

AS: Não. Heloisa, Fátima, Danusa e Alindelita elas eram gestoras lá no Ministério, na Fundação Nacional de Saúde. Mas elas chamavam algumas coordenadoras estaduais para apoiá-las nesse trabalho de discussão com as secretarias.

FA: Essa gestão é em 98?

CP: 95...

AS: 96, 97, 98 por aí... Nessa época.

FA: Quem era o ministro, hein?

AS: Boa pergunta... Jatene, Jatene... ministro...

FA: Foi uma trocação também...

AS: Uma trocação danada... Teve aquele do Rio Grande do Sul

CP: ... Albuquerque...

AS: Albuquerque...

FA: O Collor já tinha passado?

AS: Já tinha passado Collor. Não sei quem mais de ministro nessa época não. Mas com certeza Jatene. Bom, as duplas iam para os estados. Tinha Cristina que era do Maranhão, eu não lembro o sobrenome de Cristina também. Brasileira que não era coordenadora estadual.

FA: Essa você só sabe o sobrenome?

AS: Brasileira Cordeiro Lopes era o nome dela.

FA: Ah, é?

AS: Do Paraná também. Cristina e Brasileira eram enfermeiras. Soninha é assistente social, eu de médica. Meu Deus! Tinha as próprias quatro que eu disse, Heloisa, Fátima, Danusa e Alindelita.

CP: Mas essas eram do Ministério.

AS: É, mas muitas vezes eu ia, em algum dia Heloisa ía, abria a reunião na secretaria e depois eu. Entendeu? Ou Fátima ia...

CP: O que a gente está pensando é a maneira como Brasília, de uma certa maneira, percebe e reconhece lideranças no campo que estão sendo convocadas.

AS: Aí eu vou dizer. Elas foram precisas em como essa estratégia se montou. Acho que Heloisa, Fátima, Danusa e Alindelita elas tiveram assim uma visão... Danusa e Alindelita são da Paraíba e Fátima. Vão para Brasília, começaram como enfermeiras do DF, pelo menos Danusa e Alindelita entram no ministério e aí vem Heloisa, enfim.

CPs: Curiosamente só mulheres.

AS: E enfermeiras.

FA: Muita gente do Nordeste, né?

AS: Muita gente do Nordeste, mas tinha uma pessoa de São Paulo também, estou tentando me lembrar do nome dela, foi bem no início. Mas Heloisa sabe. Vocês já entrevistaram Heloisa? Vocês pensaram? Ainda não...

CP/FA: Não...

AS: Mas ela foi muito... Roseli, Rosangela... Deus, como era o nome dela?! Que era de São Paulo também. Eu não sei a formação dela, não sei se ela é médica. Bom, mas tinha esse time que andava de um estado para outro... Tinha Rosa e tem uma menina da Paraíba que era coordenadora, que era enfermeira também... Claudinha! Muito importante. Claudia também ajudou um bocado na implantação Brasil afora. Claudia Veras.

FA: E a interlocução elegida para isso são as secretarias estaduais?

AS: Isso.

FA: Por que essa escolha estratégica? Por que hoje se diz que os estados estão tão fora do SUS, que perderam peso com a municipalização.

AS: Já diziam naquela época.

FA: Já diziam naquela época

AS: Porque aí a história da municipalização foi muito forte e os municípios terminaram tomando um protagonismo muito grande. Mas se pensava que se a gente conseguisse convencer os estados e fortalecer essa gestão... Nunca foi assim, nunca mesmo, que o estado assumisse a gestão da atenção básica pelo município. Não era essa a proposta. Teve momento que “Ah porque os coordenadores estaduais estão se metendo nos municípios...”. Não era esse o propósito, apesar de que alguns estados tinham umas figuras que tentavam. Mas não era essa a diretriz da vinda dessas pessoas do Ministério. Era realmente ter um papel, e quando você vê que a implantação do PAB em 99 que tem um caderno com as atribuições, está muito claro qual é o papel do estado na atenção básica em saúde. De não ocupar a responsabilidade municipal, de não ocupar esse locus que a gente...

FA: E quais eram os seus recursos operacionais para realizar nas secretarias estaduais? Planejamento?

AS: Veja, as secretarias estaduais, pelo menos as que eu conheci, a não ser Alagoas que teve uma mudança muito importante lá em Alagoas, todas tinham as suas gerências regionais de saúde. Então a gente vislumbrava, e esse trabalho começava pela secretaria estadual, mas a gente ia para regiões de saúde para discutir com aquele grupo gestor da região de saúde, como é que poderia organizar melhor a atenção básica em saúde.

FA: A essa altura a questão da rede já era central, né? Imagino. Articulação com os hospitais secundários...

AS: Ainda não era tanto não, apesar de a gente puxar isso. Tinha muito conflito de...

CP: Não era aqui ou não era em termos nacionais?

AS: Eu acho que ainda não era em termos nacionais, mas com certeza não era aqui ainda. Não era aqui ainda. O que a gente dizia era “Ah, mas não vai ter resolução nenhuma com esses médicos aí que vocês estão pensando que vão ser os médicos de família”. Sim, mas a gente tem que começar, né? “Não é um monte de profissionais aposentados que vai ser médico de família”. Tá, tem alguns. A gente provou na prática que era 37% os aposentados, fizemos avaliação, dissemos que não era bem isso, que a gente tinha o extremo do recém-formado, tinha! “Mas é só aposentado?! “Não é... 37%...” “Aqui tem vinte e poucos por cento...” “Tem um meio aqui que é mais experiente...”. “Ah! mas não vai dá certo não... Esse povo não vai resolver nada e vai mandar tudo para os hospitais”. Sim, alguma hora vai ter que mandar para o hospital.  Isso foi muito forte aqui no meu estado.

FA: E a alternativa era o que? Reforçar os ambulatórios dos hospitais?

AS: Mas “não vai dar certo não... esse povo... é um bico vai deixar...” E a gente provou na terceira ou quarta avaliação. Óh: Olha o tempo de permanência do médico de saúde da família já é seis anos... “Ah tá” ... Então tudo tinha que provar como era que estava se dizendo que ia acontecer, e a gente provava.  Uma das maiores provas que eu tive que dar, e eu adoro ser desafiada...  “O Programa de Saúde da Família está aumentando a mortalidade infantil!” Eu ouvi isso num congresso de pediatria, eu na mesa, eu disse “Não, não é verdade!”.  “Não, mas a mortalidade infantil” ... “Sim...” Cheguei ao ministério e vamos fazer um estudo para a gente provar.

FA: Para enfrentar...

AS: Aí Fátima Marinho fez um estudo com [James] Macinko, vocês lembram desse estudo?

CP: Sim, com Macinko....

AS: Fátima topou a parada, chamou Macinko... Olha aí o Saúde da Família como é a mortalidade...

CP: A [Cecília] Minayo também no Ceará.

AS: Minayo?

CP: Cecília...

AS: Cecília Minayo fez alguma coisa no Ceará? Fez?

CP: Salvo engano meu, sim.

AS: Mas então a gente estava fazendo e avaliando continuamente. Tanto que criou o PMAQ e por aí foi. Mas enfim, essa discussão de rede é... O que é que diferenciava, por exemplo, quando eu chegava ao Sudeste, no Espírito Santo e no Paraná, realmente a estrutura física das unidades de saúde sem dúvida era melhor do que as daqui do meu sertão. As unidades retratam o que são as cidades.

FA: Claro...

AS: Se eu vou para um estado rico ou mais ou menos rico no sudeste e no sul do país eu vou ter outras estruturas. E uma coisa que se dizia era o seguinte..., “Mas Afra aqui tá bom a atenção básica da gente... Não tem que ter um médico generalista?” ... Aí eu dizia assim: “Mas minha gente é tão diferente. Eu sou pediatra, e uma coisa foi eu trabalhar como pediatra num ambulatório geral, outra coisa foi trabalhar em uma equipe que tinha enfermeira, que tinha dentista, que tinha clínico, que eu saía, eu via a criança e eu discutia com o agente que precisa ir nessa casa porque a mãe que acabou parir... Aí eu discutia com a ginecologista...”. E se a gente tivesse só um profissional que fizesse isso tudo? “Ah, mas...” É o cuidado da criança. Eu disse dá para a gente fazer. Nisso eu já estava pegando a maior briga nesse estado de Pernambuco por conta do AIDPI. Vocês já ouviram falar no AIDPI - Atenção Integral nas Doenças Prevalentes na Infância?

CP/FA: Não.

AS: É uma metodologia de capacitação, que veio pela OPAS, pelo OMS, foi para a África, mas que caiu como uma luva para capacitar os profissionais de Saúde da Família. Aí mais uma vez: “Não porque o médico, o enfermeiro, porque ninguém vai saber cuidar dos meninos” ... “Não sei o quê... porque a criança não é um adulto pequeno” ... Quantas vezes como pediatra eu ouvi isso?  A traidora da categoria que eu fui. Então assim, minha gente, a gente pode fazer diferente. “Mas não existe esse profissional!” A gente vai ter que formar, a gente vai ter que capacitar. Aí já vem os polos de Saúde da Família. Vamos começar a trabalhar a formação desses profissionais e vamos investir, vamos fazer capacitação...

CP: Isso foi quando?

FA: Isso já foi 2000...

AS: Nada. Os polos foram em 96. A gente já formou polo quando eu era gestora. Eu e Paulete Cavalcante.

FA: Então você está dizendo isso também em Brasília?

AS: Também em Brasília... E aqui a gente já estava implantando o polo de Saúde da Família aqui. Aí vamos capacitar todo mundo. “Vai dar certo não... Como é que médico vai capacitar enfermeiros” ... Vamos fazer. Vai ter uma hora que o médico vai estudar as especificidades dele como médico e a enfermeira vai estudar as atribuições dela como enfermeira. Isso mexeu com muita coisa minha gente. A questão do Ato Médico,...

CP: Em que momento de maneira mais sistêmica...

AS: Foi muito coisa, é muita história.

CP: Claro... Em que momento de maneira mais sistêmica a discussão sobre rede vai acontecer e ter certo protagonismo nos debates sobre saúde?

AS: Eu claramente vejo, com a força, na gestão Humberto Costa. Ministério de 2003 já. Eu vejo.

CP: Em que contexto isto vai se dar?

AS: Vamos dar um saltinho aí... Terminada a gestão estadual, eu passei um ano de volta aqui no IMIP e aí em 2000 eu recebi o convite para ir para o Ministério. Exatamente com Heloisa Machado e Jarbas Barbosa  já estava lá, Eu recebo o convite e Pedro recebe também um convite para ir para Brasília, e nós fomos. Nessa época Serra era o ministro, e aí a COSAC tinha virado departamento em 99, então em 2000 já era o Departamento de Atenção Básica, localizado na secretaria de atenção à saúde quando ele foi criado. Renilson veio da Bahia, quando ele foi criado, e Heloisa era diretora de departamento. O departamento foi criado com três coordenações e ela me chamou para ocupar uma das coordenações que era de expansão do Saúde da Família. Aí eu estava aqui no IMIP, tinha voltado nesse ano de 99 e eu disse, tá bom.

CP: Esse já era o projeto da Estratégia?

AS: Não, ainda era o programa de saúde da família. Era PSF, estratégia eu acho que virou em...

CP: Em 97 já não se falava em Estratégia?

AS: Não... Estratégia eu acho que foi em 2001, 2002 talvez... ESF foi depois. Daí eu mudei para Brasília, com família e com tudo. Então foi uma época que a gente tinha grandes desafios de expansão. Eu cheguei em janeiro, e em fevereiro o departamento, por decisão do ministro, ele sai da Secretaria de Atenção à Saúde e vai para a Secretaria de Políticas.

FA: Quem era o secretário?

AS: Claudio Duarte. O mesmo Claudio Duarte que foi adjunto que foi secretário aqui do estado. Jarbas estava na Fundação Nacional de Saúde e Claudio assumiu essa Secretaria de Políticas lá em Brasília.

FA: Foi iniciativa dele trazer isso para ele?

AS: Serra claro que concordou..

FA: Quem estava na atenção à saúde?

AS: Renilson continuou. Quer dizer quando eu fui para Brasília fui recebido pelo secretário Renilson “Afra muito prazer, ótimo você estar aqui em Brasília para trabalhar com a gente” ... Quando eu volto com as mudanças, aí já era meu conterrâneo, Claudio Duarte, colega de turma da faculdade. “Afra vai ficar aqui agora”. Tá certo vamos embora! Foi uma mudança importante.

CP: Você estava falando sobre...

FA: A rede...

CP: Isso... Quais são os sinais... Exatamente.

AS: Nessa época da secretaria de políticas, o Claudio tinha sido secretário de saúde de um município aqui da região metropolitana, chamado Cabo de Santo Augustinho, e tinha tido também uma boa experiência com implantação do Programa Saúde da Família e tinha deixado tudo... Antes de ir para Brasília o município ficou muito organizado. Mas tinha o entendimento que não era ainda bem rede, mas que para dar robustez, vamos dizer assim, a atenção primária, você precisava... Os programas então... Tanto que veio... Hipertensão, diabetes, tuberculose, hanseníase...Veio tudo para cá, para que isso caminhasse com a atenção primária. Não foi uma ideia ruim, de jeito nenhum. Foi uma boa ideia, uma boa concepção, de pensar o seguinte... Eu fortaleço a atenção primaria e eu fortaleço esses programas quanto mais eles estiverem articulados...

FA: Transversais...

AS: Transversais... Exatamente... Aí veio o Programa de Saúde Bucal... Foi quando começaram as primeiras equipes de saúde bucal na atenção primária, foi com Claudio, tá certo? Ele já tinha feito isso aqui no Cabo, e tinha alguns municípios que tinham começado também. Acho que Odorico [Monteiro] tinha começado também lá em Vitória da Conquista. Então a ideia era que realmente, a atenção primaria fosse esse carro chefe aqui da secretaria de políticas e foi, durante o tempo que ficou lá. E esses programas eles transversalizaram. Foi nesse momento que chego no Ministério, mas o meu papel era o da expansão dessa rede, então eu andava o Brasil inteiro nas secretarias estaduais, municipais, CONASS, CONASEMS e obviamente a Heloisa como diretora, cabia a ela... Ela era inclusive diretora de todas essas áreas. Problemas? Muitos. Essas áreas tinham décadas na Fundação Nacional de Saúde. Então teve muito conflito. Muito conflito dessas áreas. Não por falta de habilidade de Heloisa, Heloisa que é pessoa habilidosíssima. Teve gente nova, que entrou nas áreas, teve uma pessoa do Rio Grande do Sul, Beth, que era médica, e trabalhava com doenças crônicas, muito boa, mas ficou pouco tempo no ministério, por questões pessoais mesmo. Foi uma época muito de conflito e isso tinha que dar certo aqui para você pensar que a atenção básica ia ser resolutiva nessas áreas, e ser resolutiva para hipertensão, foi quando se começou a pensar em HIPERDIA.

FA: Hiperdia...

AS: Enfim, vamos pensar nisso aqui e como que junta alta e média complexidade? Né... E aí acho que já em 2002, a gente começou a pensar no que hoje são os NASF. Porque também já tinha um bocado de município com boa experiência de ampliação dessa equipe de matriciamento, com essas, vamos dizer com essa ampliação, com essa organização da equipe. Mas ainda era muito no território...

CP: Quais eram esses municípios?

AS: Aqui em Recife... Campina Grande com André Bonifácio. André teve uma experiência excelente com a academia das Cidades. Humberto Costa começou quando era secretário aqui de Recife, tinha o pessoal do Espírito Santo também. Então André tinha uma boa experiência. [Jorge] Sola também em Vitória da Conquista também começou a ampliar a equipe, mas eu posso dizer que eram redes municipais ainda. Pensar na rede municipal de atenção básica de saúde, incorporando e ampliando. Aí vem a saúde bucal...

FA: Mas já integrado com níveis um pouco melhor dos hospitais secundários e terciários?

AS: Olhe, fortemente isso eu digo a você pela atenção básica isso foi 2003. Foi claramente em 2003 quando Humberto vem, aí já tinha alguma experiência também Antônio Mendes, com Humberto secretário e Antônio Mendes era diretor de atenção à saúde, ele já pensava em algumas coisas. Adail Rollo de Campinas também já tinha algum embrião. Tanto que Adail depois continuou, tanto que essa discussão de rede foi toda com ele. Mas a gente fez uma proposta sim, de rede com hospital secundário, a gente criou um incentivo, a gente começou a estudar. Aí 2003, 2004, 2005

CP: Então você já está falando da sua gestão...

AS: Então assim, fortemente essa coisa de rede, eu digo à você, antes eu estava nesse outro espaço. Em 2003/2004 e meados de 2005 a gente pensou fortemente em rede, em articulação de hospital secundário.

FA: Você está falando como experiência pessoal ou isso era também o desenho da política?

AS: Não... Desenho da política!

FA: Desenho da política.

AS: Quando Humberto assume o Ministério da Saúde  o DAB ,volta para a SAS.

FA: Entendi.

AS: E aí muda essa história. A secretaria de políticas foi extinta, os programas foram incorporados para a SAS em diferentes departamentos, inclusive alguns continuaram com a atenção básica, como Saúde Bucal, Hiperdia continuou com a gente, mas outros foram realocados. Hanseníase e Tuberculose foram para a Secretaria de Vigilância. Então houve um rearranjo.

FA: Nessa altura o programa de AIDS era uma estrela da companhia, não era?

AS: Claro.

FA: Qual era a relação do programa de Aids, se teve, com a atenção básica? Se você identifica isso?

AS: Teve, teve sim. Agora deixa eu me lembrar, porque era Gerson nessa época. E eu não sei se foi nessa época que teve muita aproximação com saúde mental, com Paulo Delgado. Teve muita aproximação com o INCA. A gente teve bons momentos, porque a gente queria ver a promoção primária, secundária e terciária. Eu não sei se nessa época da AIDS a gente já tinha testagem rápida, não me lembro. Ou se é uma coisa que eu tô pensando na secretaria estadual (risos), porque eu voltei recentemente. Acho que não tinha ainda não.  Assim eu não me recordo se a gente teve uma aproximação maior especificamente com AIDS não.

FA: Você ia fazer uma pergunta?

CP: Só para a gente organizar datas, até para fins de registro. Você assume a direção do DAB em fevereiro de 2003 e fica até julho de 2005.

AS: Isso.

CP: Em uma hierarquia de importância, na sua agenda de trabalho, qual eram as suas prioridades?

AS: Tudo ao mesmo tempo agora (risos). Veja, na época tinha uma agenda muito forte, muito forte, da vinculação legal do agente de saúde. Então aí já com quase 100 mil agentes, como resolver a questão trabalhista desses agentes?

FA: E a identidade profissional também...

AS: Também.

CP: Precarização.

AS: Ah, isso era outra coisa “Ah! O Programa Saúde da Família precarizou as relações de trabalho.” Não, minha gente, o Saúde da Família está dando visibilidade a uma coisa que sempre existiu. “Prove!”. Aí a gente faz estudo, chama Célia [Pierantoni]. Vamos estudar isso aí para dizer que tá mostrando. Porque tem uma dimensão gigantesca, o problema aparece. Não foi o responsável pela precarização, é uma condição.

FA: Claro.

AS: “Ah porque os agentes comunitários são”. Tinha uma agenda muito forte nisso, de discutir e encontrar saídas para isso, até porque o Ministério Público do Trabalho estava com ação em todo o Brasil. O que a gente teve de audiência no Ministério Público do Trabalho com o procurador daquela região de Brasília, vocês não têm ideia... Acho que era uma vez por mês. Mas foi muito importante isso, primeiro porque eu acho que eles ajudaram a encontrar saídas, segundo...

FA: Pressionaram.

AS: pressionaram. Esse procurador, toda vez que a gente chegava lá, muitas vezes ia eu e [Jorge] Sola e os advogados do ministério e tal. Mas isso foi uma pauta muito demandante, em termos estruturais foi uma pauta que demandou muito tempo da gente. A outra questão era a própria expansão do Programa de Saúde da Família que na época, o agente comunitário já estava muito difundido. Muito, muito, muito, era agente em todo o país, no entanto vira um problema pelas relações precárias e tal. E o Programa Saúde da Família era um modelo sustentável ou não, era uma discussão grande em termos de ministério...

FA: Sustentável em termos de capacidade de financiamento mesmo?

AS: Financiamento...

FA: Formação...

AS: Formação e modelo.

FA: Como assim modelo?

AS: Por que um médico de oito horas e não dois de quatro horas? Por que um médico de três horas e não...? Por que um médico todo dia? Por que... Ninguém questionava isso em relação ao enfermeiro, mas... A corporação...

CP: É.

AS: “Que absurdo um médico de oito horas com este salário que não sustenta ninguém!” ... “E a família do médico” ... Bom... Era só esse o problema? Claro que não. Mas o modelo que a gente defendeu de 40h semanais, 5 dias na semana, clientela descrita, ampliando-se uma agenda com a saída da velha ideia que era o pacote básico, mas aí você já com uma série de programas, e a coisa mesmo da resolutividade, então... A gente teve um financiamento que na época foi o maior empréstimo que havia sido feito para a saúde que foi Banco Mundial, o PROESF, que era exatamente para a gente alavancar. Ele começou, a concepção do projeto vem da gestão Serra com o Banco Mundial, quando assume o presidente Lula e Humberto ministro, o recurso está chegando. Foi toda uma negociação internacional, envolveu o Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Planejamento, foi um volume vultuoso. E quando se pensou o projeto - que eu não acho que conceitualmente ele esteja errado - era para dar sustentabilidade nos municípios acima de 1 milhão de habitantes no país. Porque a saúde da família ele se expandiu nos pequenos municípios e com grandes dificuldades de entrar nas capitais, nas áreas metropolitanas. Escolheu-se quarenta municípios . O projeto tinha três componentes: O da expansão, que era nessas cidades; o de formação, que aí o modelo ainda foi dos polos de Saúde da Família; e o componente de avaliação do projeto. Quando Humberto assumiu o MS se rediscutiu. Os primeiros seis meses foram de muita rediscussão se esse recurso estava ok, se renegociava com o Banco. Chama o Banco de novo. Porque aí se aumentou o escopo dos municípios, eram 40, acho que passou para 140 municípios para financiar a implantação.

FA: Você participou dessa discussão com o banco?

AS: Sim, sim... Da origem do projeto participei menos como coordenadora, mas depois como diretora do departamento, sim.

FA: Como são esses interlocutores do banco? Eles têm domínio da concepção estrutural do projeto, são interlocutores de peso ou estão olhando mais para avaliação, racionalidade financeira. Fala um pouco dessa...

AS: Tinha gente com formação na área de saúde... O chefe da missão mesmo ele tinha uma formação em saúde pública... não sei qual era, mas ele tinha.

FA: Eram brasileiros?

AS: Não, não. Ele era americano, mas descendente italiano, tinham americanos e tinham brasileiros na missão também. E os brasileiros, obviamente tinham um conhecimento bastante interessante do Sistema Único de Saúde, conheciam de saúde pública e tal. E aí a contraproposta do ministério a época- vamos ampliar para mais municípios, eles resistiram bastante porque achavam que essa diluição ia diminuir o impacto do projeto, o que poderia ser verdade...

FA: É um raciocínio...

AS: a parte de formação de recursos humanos, a visão da SGTES à época era de que a proposta dos polos não ia avançar tanto, portanto vamos ver como que a gente trabalha essa questão de recursos humanos com as universidades mais...

FA: Quem estava tocando os polos? Era o Ricardo [Ceccim]...

AS: Ricardo, Laura [Feuerwerker]. Basicamente eles dois.

FA: Eles já tinham desde da tradição do... Porque você falou dos pólos lá em 96 e tal...

AS: Não, não... Acho que Ricardo sim, lá no Rio Grande do Sul tinha um polo, mas ele não concordava muito com aquela concepção que a gente até então vinha trabalhando. Mas eu acho que a gente conseguiu... Foi muito na lógica da roda.

 FA: Mas na roda do Gastão [Wagner]?

AS: Do Gastão. Então mudou essa concepção. Mas ao fim ao cabo, houve o acordo com o banco, os recursos vieram, foram selecionados os municípios. Além dos quarenta, outros tantos. Aí sim elencou vários critérios discutidos com CONASS e CONASEMS, apesar de que o projeto inicial tinha sido também aprovado, discutido com CONASS e CONASEMS aprovado em tripartite. Foi revisto e foi aprovado de novo, com CONASS e CONASEMS em tripartite. Mas como ampliou o número de municípios e de estados foi muito trabalho, foi muita discussão. Mas eu tinha um grande secretário, Jorge Solla junto comigo. Porque a estruturação vamos combinar, que o Programa Saúde da Família no Nordeste ele tinha mais uniformidade. Quem vinha do Ceará, quem vinha de Pernambuco então tinha certo um alinhamento...  Rogério de Sergipe, com Solla, a gente aqui em Pernambuco com Odorico no Ceará. Então a nossa concepção de trabalhar com o Sola foi muito importante. Sola também foi consultor do ministério. Solla, Rosana Aquino, Guadalupe Medina, Marília Fontoura, foram consultores nessa época que eu fui, em noventa.

FA: Solla, Rosana Aquino... Você mencionou um outro nome... Solla, Rosana...

AS: Sola, Rosana, Guadalupe... Guadalupe. Quando eu fui em 2000 para assumir essa coordenação de expansão, Guadalupe, Medina, vocês sabem quem é? Do ISC da Bahia? Ela e Rosana. Guadalupe assumiu a coordenação de avaliação também convidada por Heloísa, porque eles já, como eu, também trabalhavam como consultores também. Eu conheci Solla no movimento estudantil, indo para congressos. ECEM, vocês já ouviram falar? Encontro Científico de Estudantes de Medicina? Foi quando eu conheci Jorge Solla e a gente se reencontra como consultores no ministério, e anos depois ele foi meu chefe e secretário.

CP: Nessa entrevista com o pessoal da Escola Politécnica Joaquim Venâncio, fazendo um balanço sobre a sua gestão, você fala que uma das dificuldades que você teria enfrentado foi que os prefeitos compreendessem o PSF menos como um programa, e aí você usa a expressão, que deveriam compreender “como uma estratégia de organização da atenção básica”. Fala um pouquinho sobre isso. 

FA: Nessa linha assim... Eu queria que você falasse um pouco do significado desses conselhos de secretários municipais e estaduais. Qual é o peso dessas instâncias na arquitetura de uma política para o ministério...

AS: Na atenção básica de saúde, toda.  O Peso dos municípios... Se o município não quisesse, não tinha ministério que o fizesse!

FA: Mas é no conselho que isso se resolve ou é no encontro, digamos assim, bilateral. Entende o que estou querendo dizer?  Como é que o funcionamento do conselho ajuda ou resolve os problemas de organização?

AS: Quando Humberto chegou no Ministério da Saúde, a gente estava discutindo alguma coisa de implantação, acho que da Saúde bucal. Ele disse “É rápido?” Olha Humberto, se tu fosses secretário municipal de saúde, no município se você decidir alguma coisa hoje como gestor, amanhã está implantado na rede. No estado uns seis meses, aqui é pelo menos 01 ano.

FA: Aqui no ministério?

AS: No ministério. E é isso. Qualquer política do dia que você possa estar pensando, estruturando a política e diz: Tá pronta! Que pronta? Você não implanta nada, do Ministério da Saúde. Não sei hoje como é que está. Mas a visão que a gente tem do Sistema Único de Saúde se não for de forma tripartite, não tem jeito. Então quando eu digo, o modelo, que dizem: “Ah o Programa Saúde da família é o modelo...”. Você tem um modelo de atenção que tem hoje, eu digo que o modelo de atenção para mim é uma porta que gira. Que você entra no sistema, você pode circular até pelos os outros níveis de atenção, mas você volta para a atenção primária, atenção básica. Então eu nunca pensei que, nem o PACS, nem o Saúde da Família, até porque eles seguem o mesmo programa.... A gente aprende em saúde pública que planejamento tem começo, meio e fim. A atenção primária não. Ela é um locus de atenção. Vamos chamar de nível porque que a gente imagina que você está em um sistema em  rede mesmo. Hoje eu vejo isso, mas se nessa época eu já dizia, é porque eu penso assim mesmo. A forma, o meio que o Brasil encontrou dentro do Sistema Único de Saúde de organizar a atenção básica foi por esses meios aqui. Pra mim passa pelo PACS e pelo Saúde da família. Não que não existisse antes, longe de mim pensar que não existia organização de atenção básica, existia e funcionava. Mas pelo que a gente imagina como Sistema Único de Saúde com essa complexidade que a gente tem, a gente vai ter dois dispositivos muito potentes que se configuraram como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e a Estratégia Saúde da Família para a gente organizar esse nível de atenção ou reorganizar e aí a gente pode pensar em rede. Você tem uma porta. Uma das portas de entrada que eu costumo dizer, não é uma porta que abre, é uma porta que roda. Que o usuário está aqui, você entra e você tem uma equipe, você tem um território de intervenção e de responsabilização sanitária. Eu acho que isso ainda é pouco apreciado por quem está na saúde pública, que tem responsabilidade por este território, que tem que dá conta. Eu conversava muito com Solla isso... Não é possível numa equipe que tem uma escola que não está olhando para essa escola. Que tem um presídio aqui e não olha para esse presídio, que não entra. Que não vai ver vacina. Eu tenho uma fábrica aqui nesse território e eu só tô olhando para a família. “Mas o nome é saúde da família”. Aí a gente errou, se a gente não está só se prendendo ao nome. Então a base da organização da atenção primária, da atenção básica de saúde é o território. Eu tenho equipes que se responsabilizam por este território. A forma que a gente encontrou aqui foi organizar as unidades básicas de saúde com equipes multiprofissionais que saiam da unidade, pelo amor de Deus! Então vamos andar por esse território, vamos conhecer esse território, vamos nos responsabilizar por este isso. Acho que foi por isso que eu disse essa frase, eu acredito nisso.

CP: Com esse sentido e esse vocabulário, essa semântica é o que vai se apresentar na PNAB anos depois.  Agora evidentemente a PNAB não sai do vazio ela é fruto desse próprio processo que a gente está construindo. Fala um pouquinho desse processo de construção da política, dessa formulação que eu vou chamar de contemporânea e brasileira da atenção primária e como ela está dialogando com outras experiências mais no cenário internacional.

AS: Infelizmente quando a gente saiu do ministério em 2005 a PNAB estava quase pronta. Houve todo um movimento das NOBs, depois dos pactos e, obviamente, a Política Nacional de Atenção Básica a gente vinha acompanhando tudo isso aqui. Desde o financiamento, não é? Então em 99 quando foi instituído o Piso da Atenção Básica. O piso é isso porque a gente acha que a atenção básica é assim. Eu ainda não estava no ministério, eu cheguei no ano seguinte. Vamos trabalhar isso aqui. Vamos rever a política, vamos começar a estudar a política e ao mesmo tempo a gente já estava com o Brasil Sorridente aqui, com uma grande área aqui para pensar a saúde bucal e os NASFs estavam começando. Aí eu disse, vamos atualizar a política. A gente está precisando. Já tem muito mais coisa agora dentro disso que a gente está chamando atenção básica que não é mais o PACS e o PSF, tem muito mais coisa entrando e que a gente precisa articular. A gente sempre manteve uma lógica de trabalhar com as coordenações estaduais, e aí também os municípios. A gente chamava as coordenações estaduais, até porque eram grupos menores e a gente conseguia em dois, três dias reunir os 26 estados e mais o distrito federal ali. Sempre trabalhando com muitas mãos, muitas mãos, sempre. Saber o que estava acontecendo no seu estado e tal...

FA: Isso era o quê, seminários temáticos?

AS: Eram reuniões de avaliação da atenção básica, saúde da família e PACS. A gente chamava assim de Reunião de Avaliação Nacional, de Reuniões Nacionais.

FA: Como é que eles chegavam aos conselhos? Só para lembrar aquela minha pergunta.

AS: Aí vamos lá. Então isso a gente fazia aqui. Quando a gente ia discutir alguma política para implantação o que é que a gente fazia? Quem tem mais experiência no país? Então eu estou me lembrando de saúde mental. Aí vem Paulo Delgado. Então me lembrei dele falando: “A gente tem que implantar uma agenda na atenção básica de cuidado em saúde mental.” O que em cuidado de saúde mental? “O pessoal quer abrir...” Sim, mas o que exatamente? Aí entrava um pouco na saúde mental, mas também entrava um pouco nas epilepsias e não sei o que. Pera aí, vamos chamar quem está fazendo. Aí a gente chamava e reunia. No NASF a mesma coisa: Quem tem experiência consolidada já de saúde bucal. Antes até de ter a política desenhada. Vamos chamar quem... E sempre fizemos assim. Feito isso, a gente construía a proposta e vamos às rodadas para CONASS e CONASEMS. Senta com os conselhos. Os conselhos têm suas representatividades, é claro que o CONASS você está dialogando com os 26 estados mais o Distrito Federal... O CONASEMS você está dialogando com a representação de 5700 municípios. Então assim... Mas ambos têm grupos técnicos que também chamam sua... “fulano de tal estado tem mais vivência”. Assistência farmacêutica básica. Chama mais não sei quem, não sei quem e não sei quem, vamos sentar aqui para analisar a assistência farmacêutica básica. Sempre assim. A PNAB não foi diferente quem a gente chama para escrever junto com a gente. Vamos divulgar entre todos os coordenadores, vamos analisar quais são as políticas.

FA: Quando você sai do ministério esse processo já está bem avançado?

AS: Muito avançado. A PNAB eu acho que sofreu muito pouca alteração. O NASF, Humberto deixou a portaria publicada, mas Saraiva Felipe cancelou e aí só veio a ser lançado eu acho que em 2006 ou 2007 a nova portaria do NASF. Mas a PNAB foi logo depois que saiu junto... Já tinha começado os pactos e eu acho que logo na sequência saiu a PNAB.

FA: Você já comentou a sua saída do ministério, mas eu tinha uma pergunta sobre a transição entre os governos de FHC e Lula, entre Serra e Humberto. Pelo que a gente percebe, parte da equipe permanece. Como foi esse processo e qual o significado dele?

AS: Como toda mudança, em todo ministério foram grandes mudanças. Na atenção básica quando Solla me convidou, eu fiquei obviamente feliz, satisfeita. Heloisa Machado permaneceu por um período na assessoria de Solla. Isso foi muito bom. Acho que Regina foi para a Secretaria de Vigilância Sanitária, Regina Coeli, a Alindelita foi para outra secretaria. A Danusa continuou, Aline continuou. Tinha um núcleo. A coordenação de hipertensão e diabetes que era Rosa Sampaio continuou. Mudou a de saúde bucal, aí veio Gilberto Pucca. Foi um momento de grande mudança para mim pessoalmente, a definição de Humberto como ministro foi em dezembro. Havia assim um movimento da minha família de voltar para Recife, meus filhos ainda eram muito pequenos, principalmente as meninas. E aí de repente volta tudo aqui. Então foi um grande impacto na vida particular. A gente tinha toda uma preparação, a gente já tinha matriculado as crianças em escola aqui de Recife. Então... Cancela a matrícula, vai para Brasília, era um misto de alegria e preocupação.

FA: Essa coisa aconteceu com Pedro também de alguma maneira ...

AS: Sim, sim, com Pedro também. Porque Pedro estava na Fundação Nacional de Saúde e foi convidado para ir para o Ministério. Então foi um movimento que você está construindo uma volta e daqui a pouco você está construindo uma permanência. Na cabeça das crianças isso teve uma repercussão importante.

FA: Vocês tinham militância partidária?

AS: Sempre tivemos.

FA: Ou seja... Isso é uma questão para a gente refletir... Na própria gestão Serra ele recebe na equipe, convida...

AS: Havia oito nomes para o departamento de atenção básica...

FA: São os petistas que eu conheço lá de Pernambuco..., no entanto são recebidos... E aí troca de governo e isso se mantém... Qual o significado disso? O que isso quer dizer? Quer dizer que os quadros profissionais da burocracia pública brasileira estão se profissionalizando... É isso?

CP: Naquele contexto...

FA: É naquele momento... Porque o debate é... Não tem desenho fisiológico ali... O que estava em jogo aí...

AS: Na verdade, assim, quando a gente foi para o Ministério da Saúde e que foram alguns pernambucanos como eu disse, quando o Serra era ministro, houve muita desconfiança dos pernambucanos. Houve, obviamente, a chegada de vários quadros nacionais em Brasília que não necessariamente conheciam quem eram os pernambucanos que estavam lá. Havia alguns nomes para o departamento

FA: Para a atenção básica?

AS: Para a atenção básica... Aí Solla definiu que seria eu.

FA: Baseado em uma ideia de continuidade, suponho...

AS: E de conhecimento do trabalho. Eu do trabalho dele e ele do meu trabalho. Não é simples assim, nunca é.  E principalmente em um departamento com a visibilidade que o departamento de atenção básica tinha na época.

FA: Claro...

AS: E com essa possibilidade de expansão mega, com projeto com tanto recurso como foi o PROESF. Mas foi.

FA: Vamos saltar: Aí você deixa o ministério, como foi a saída?

AS: Foi duro, foi uma discussão dura. Tinha dois cargos: “Ah esses dois cargos são técnicos: Afra e fulana” ... E sempre assim... “Não é cargo político, é cargo técnico...”

CP: Posso fazer uma pergunta, que vai ficar como um parêntese, como é que é instituir uma política nacional, que no final das contas é instituir um parâmetro, para um País desse tamanho, com experiências, algumas das quais simultâneas, que nós chamaríamos de atenção primária. Como é que vai se dar essa tensão?

AS: É tenso mesmo. Na mesma hora que a gente tinha que segurar na marra aquele princípio, não dava para desconsiderar uma secretária lá do interior do Pará que me dizia assim: “Afra minha equipe de Saúde da Família passa quinze dias dentro de um barco... subindo rio, descendo rio... Os outros quinze dias ela vai ficar em casa e não tem quem não me faça fazer isso”. Ou uma secretária de saúde, aqui do meu interior, de zona de engenho de cana, que dizia assim... Isso conversando com Pucca: “Eu quero uma unidade móvel de odontologia”... “Ah porque unidade móvel não é resolutiva, vai num dia, não vai a outro, não tem continuidade da atenção”... Ela disse: “Está certo... Então bota uma unidade, no engenho, que quando chove só se passa a cavalo... 5 meses num ano” ... Então assim... Ou você respeita esse tipo de situação e você chancela em alguma medida isso... Vamos discutir o NASF, o secretário do Pará bateu assim na mesa e disse assim “o Norte não aprova não... viu Dra. Afra? Porque se não tiver um psicólogo para duas equipes do NASF, eu sei que eu não vou ter esse psicólogo nunca”. Ou resolve assim... O NASF da região Norte... (risos)... Entendeu? Então assim, em que medida você abre mão, abre mão, você flexibiliza sem perder a diretriz... É muito difícil, minha gente... É muito difícil.

CP: A segunda PNAB em certo sentido é isso?

AS: Também. É isso também. Então assim, flexibilizar eu acho que dá uma noção de que você está abrindo mão. Eu prefiro dizer que você vai adequar. Porque você tem que entender essas realidades. Não dá, não dá minha gente...

FA: Como era o diálogo com os paulistas, que além de diferentes, são fortes institucionalmente? Tão estruturados...

AS: Veja... Se ele não era acadêmico, era muito melhor (risos)... Era muito melhor...

FA: Se era um cara do serviço.

AS: O do serviço entende... Está lá no dia a dia, ralando para caramba e entende que você tem muitas diferenças... É bom quando junto o acadêmico com o de serviço, aí é o paraíso... Porque entende as duas coisas.

FA: Mas você estava falando da sua saída no ministério. Foi transição por que mudou o ministro?

AS: Foi...

FA: Veio o Saraiva, não é isso?

AS: Veio o Saraiva em 2005. O Humberto saiu e de imediato Solla saiu.

FA: Humberto saiu para concorrer ao governo do estado?

AS: Não. Ele saiu porque houve a necessidade do estado de recompor a base e o ministério ficou com o PMDB e Saraiva assumiu o ministério e fez uma composição, alguma secretaria ficou, me parece que sim, mas Solla saiu e aí veio o Temporão. Aí assumiu Luiz Fernando Sampaio , que tinha trabalhado com a gente na época que Heloisa era a diretora do DAB. Luiz era secretário municipal de saúde em Minas, no interior de -Minas, Luiz trabalhou na coordenação que eu coordenava quando Heloísa era diretora de departamento e ai ele foi convidado. Ele passou um tempo no Canadá e aí foi o tempo que ele voltou e o Temporão convidou, e ele ficou no Departamento de Atenção Básica. Depois foi Claunara, nesse tempo eu fui no CONASEMS.  Eu passei um ano no Conselho Nacional de Secretarias Municipais.

FA: Na secretaria?

AS: No grupo técnico...

FA: Grupo técnico de atenção básica do conselho, é isso?

AS: Na verdade era em uma assessoria que tratava de tudo. Mas especificamente, como eu tinha muita experiência na atenção básica, eu fiquei.

FA: Quem era o presidente?

AS: Silvio Fernandes que foi secretário de Londrina, Silvio foi quem me convidou e ele era o secretário executivo do conselho, Beatriz Dobashi que foi secretaria de Campo Grande, também fazia parte desse grupo. Nilo de Minas Gerais, Joeliton de Alagoas. Eu fazia parte de um pequeno grupo, que fica em Brasília e que assessora o CONASEMS até hoje, como o CONASS também tem.  Aí eu passei um ano exatamente lá.  Com a saída Saraiva Felipe , assumiu Agenor, quando Agenor assumiu Jarbas Barbosa  saiu da SVS e virou secretário executivo do ministério...Fabiano Pimenta assumiu a Secretaria de Vigilância, e me convidou para ser chefe de gabinete da Secretaria de Vigilância em Saúde. Passei seis meses lá, como chefe de gabinete da SVS. Saí do CONASEMS e foi importante ser chefe de gabinete da Secretaria de Vigilância. Aprendi tanto, tanto, tanto, porque nunca tinha convivido assim tão perto com a vigilância, aprendi muito. Aí em janeiro desse ano, no segundo mandato de Lula, foi 2008, não é? Foi 2007. Aí em janeiro de 2007 Temporão foi ministro. Nesse período que eu estava na SVS Pedro ainda estava na SEGETES. Aí em 2007 a gente decidiu o seguinte: Se a gente não voltar agora para Recife a gente não volta mais nunca. As filhas estavam entrando na adolescência, o mais velho já estava na universidade...

FA: Universidade de Brasília?

AS: Universidade de Brasília... na UnB ele já estava lá. Tem uma diferença grande entre eles, e aí a gente falou que a gente vai voltar para Recife. E o mais velho ficou. Eu voltei e deixei ele lá em Brasília. Ele quis ficar para terminar a universidade lá.

FA: Ele continua lá ou veio para cá?

AS: Nada. Este menino é um andarilho

CP: Ele faz o quê?

AS: É engenheiro mecânico. Fez o mestrado dele na Holanda, o doutorado no Japão e agora está morando na Suécia.

FA: Um andarilho.

AS: Um andarilho.

FA: Que bom... Não para mãe.

AS: Não... não... Essa semana ele está aqui... Ah, meu Deus do céu!

CP: Essa semana ele está aqui e a gente aqui segurando ela...

AS: Não... não... Ele está aqui, mas está lá trabalhando na Suécia. Minha nora... Ele fez doutorado no Japão e aí minha nora foi fazer mestrado na Suécia, aí ele foi...

FA: eu tinha umas perguntas pra fazer, mas me esqueci...

AS: Até dos filhos eu estou falando... Já falei do marido... Enfim. Quando eu voltei para Recife, eu voltei para o projeto de extensão comunitária, minhas origens. Voltei pra cá, a pessoa que me substituiu uma parte desse período, foi para a Secretaria estadual e eu voltei pra cá. E comecei a trabalhar na Faculdade Pernambucana de Saúde que é vinculada ao  IMIP exatamente no que nós chamamos de prática de atenção primária. Comecei a coordenar a inserção dos estudantes nos diferentes cursos da faculdade na atenção básica. Então passei a fazer isso.  Fiz mestrado em saúde pública...

CP: Eu tenho mais uma pergunta...

FA: Me lembrei da minha pergunta...

CP: Uma pergunta geral que os entrevistadores não gostam não...que é o tal do “se” você é uma das arquitetas da atenção básica do país...

AS: Ai que honra. Nunca ninguém tinha me dito isso não...

CP: Não temos dúvida disso... Olhando para sua trajetória, dos processos que você conduziu, que interferiu e tal, e para os seus resultados o que você teria feito diferente?

AS: Nada. Nada. Eu acho que não teria feito nada diferente não. Eu não costumo me arrepender das coisas não. Eu penso muito antes de fazer as coisas. E eu acho que nada. Acho que fiz as escolhas que foram se apresentando e duras. Carreguei a família para cima e para baixo, isso não é muito fácil não. Outras pessoas foram para o ministério deixando suas casas. Ainda bem que na ida tínhamos propostas que foram factíveis. Pedro pode ir também. Eu acho que a gente voltou no momento que tinha que voltar mesmo. Mas, tem uma coisa que, como se diz na minha terra, me aperreou durante alguns anos. Foi eu ter começado o mestrado no ministério. Formou-se uma turma, era a UERJ oferecendo ao ministério para a turma que estava lá. E aí fiz.

FA: O Instituto de Medicina Social? IMS.

AS: O IMS... Célia Pierantoni era minha orientadora e eu estava vendo exatamente o vínculo dos profissionais de Saúde da Família por conta dessa precarização e eu disse “Vou estudar esse negócio”. Aí eu assumi o DAB quando faltava muito pouco, quando peguei as coisas para consertar a minha dissertação inacabada. E eu entrei no DAB e entrei na roda viva.

FA: Mas você terminou o mestrado?

AS: Não terminei. Não terminei esse mestrado. E aí eu tive que fazer uma escolha. Gerenciar o DAB e entrar numa roda viva de Ministério da Saúde, que a gente trabalhava até três horas da manhã. Jorge Solla é uma figura, mas se você o acompanha, o ritmo dele é esse. É chegar às sete horas da manhã e sair às três da manhã. Com Helena pequena, duas meninas pequenas, foi bem difícil. E essa talvez eu faria diferente, era ter insistido mais e vê se conseguia terminar esse mestrado. Célia não se contentava... “Afra tá faltando tão pouco, vamos terminar”. Aí eu dizia, mas eu não consigo, eu não consigo dar conta disso não.

CP: Ela se aposentou, né? Acho que agora ela é professora associada lá no IMS.

AS: A gente ia encontrar agora no sete de setembro, mas terminou que nem... Isso eu faria diferente. Mas, quando eu cheguei aqui, aí eu fiz o meu mestrado profissional aqui na Fiocruz no NESC, consegui, defendi e foi ótimo. Mas eu passei uns anos com aquela coisa incomodando aqui.

FA: Faz parte.

AS: Faz parte. Bem difícil essa época. Talvez, se eu tivesse conseguido terminar, o que não deu. Eu nem quero pensar nisso, porque quando penso fico assim...

FA: Emocionada...

AS: É...

FA: Minha pergunta é... Vai ficar na história que você se emocionou e tudo... Então para o documento é até bacana...

AS: (Risos). Mas eu sempre sou assim, tem uma amiga que diz assim: “Você vai dar outra entrevista para o doutorado, você vai chorar de novo”. Porque toda vez eu me emociono. Faz parte, eu sou chorona, quanto mais...

FA: A minha pergunta é mais prosaica...

AS: Diga...

FA: Eu queria te ouvir, na condição de uma gestora de política pública, como é que são os processos nas conferências nacionais de saúde? Como é a preparação a partir do ministério, a partir do núcleo da política e esse processo?

AS: Eu separei um dos documentos, mas vocês devem ter, a décima segunda... Eu peguei a décima segunda. Tudo no Ministério é isso, pelo menos um ano. É muito trabalho. Ao mesmo tempo o que o bacana de você trabalhar na gestão municipal. Eu conheci minha cidade quando fui trabalhar na Secretaria de Saúde.  Eu como recifense eu não tinha ido às comunidades e nas dificuldades da minha cidade como quando eu trabalhei na secretaria municipal. Pernambuco tem 185 municípios mais Fernando de Noronha, eu conheci de ir em 65. Tem gente na secretaria que conhece todos. No ministério só não conheci três estados, infelizmente, e foi horrível não ter ido ao Acre, Rondônia e Roraima. Todos os outros eu fui. Fui pro Amapá. Então essa diversidade, você vai do seu Estado ou você sai da sua cidade para gerenciar a atenção básica aqui no estado e você acha que o que você estava fazendo é o mais legal, o mais bacana... É nada! Tem mil cantos, mil jeitos, mil formas, mil pessoas que estão aí fazendo diferente. Então eu acho que o grande barato de você ir para o Ministério é você ver isso. Que tem tanta gente fazendo tanta coisa e tem tanta gente boa fazendo tanta coisa boa. E você conseguir dialogar com as outras experiências e isso é o retrato da conferência nacional de saúde. Você junta alguns milhares de brasileiros que vem de suas realidades que acham que estão fazendo, e estão fazendo o melhor, e que o seu jeito de fazer o SUS é o melhor. Mas o que é que você em âmbito nacional depois de conhecer esse todo você pode dizer? O que você deve dizer? O que você precisa defender para garantir esse sistema? É muito trabalhoso. É um exercício muito prazeroso e desafiador, porque uma Conferência Nacional de Saúde tem milhares de interesses em jogo. Além dessas realidades. Os grupos, sempre em tripartite. No Conselho Nacional de Saúde você vai defender o NASF, você leva uma proposta já aprovada pelo CONASS, pelo CONASEMS, pela tripartite, chega no Conselho. “De jeito nenhum!”. Sindicato dos Farmacêuticos “Não pode ser desse jeito não, porque o farmacêutico isso, o farmacêutico aquilo”, aí você volta com a proposta. Dá um monte de frustração, mas quando você vê a política aprovada, implantada, para mim é uma satisfação imensa. É muito laborioso, mas agora não tem um aprendizado melhor não. Para qualquer pessoa fazer esse percurso, é objetivamente a preparação. O que é que a gente precisa levar como proposta e como que você defende isso. Então, é muita tenacidade.

FA: Mas vocês vão às conferências estaduais? Escutam? Como é que se dá esse processo? Ou não leva nada, na hora na relatoria, nos diálogos...

AS: Não havia, até porque a gente não tinha perna para ir para as conferências estaduais. O máximo que você conseguia era ver um ou outro relatório das estaduais antes de começar a Conferência Nacional. Mas tinha uma coisa boa, a gente não conseguia escutar a população, a não ser se viesse o documento. Mas a gente conseguia escutar os gestores antes. Então como eu disse a vocês, como a gente tinha encontros muito periódicos com os gestores, a grande maioria mulheres, gestoras, depois começaram a chegar mais. E eram muitas enfermeiras e depois começou a mesclar mais isso. Exatamente por essa coisa que a gente não está falando só do Programa Saúde da Família nem do agente comunitário, a gente está falando de organizar esse nível de atenção, então as coisas começaram a abrir um pouco mais. Alguns saudosistas acharam isso ruim. Eu não acho isso de jeito nenhum. “Ah, porque a saúde da família foi perdendo sua identidade”. Não acho, não acho. Nunca pensei que era PSF para sempre.

CP: Dê um exemplo de uma figura saudosista? Quem está defendendo esse tipo de posição?

AS: Algumas coordenadoras estaduais que seguravam aquilo assim... E alguns estados aqui do Nordeste sentiram muito quando... “Ah eu não sou mais a coordenação, o Secretário resolveu colocar uma pessoa que não sabe bem o que é o Saúde da Família”. Eu não achava que era isso. De um grupo que eu comecei quando coordenação e que eu vi que algumas pessoas permaneceram durante muitos anos e se apegaram aquele modo. E quando entrava algum secretário ele dizia, “vamos abrir isso aqui para ter mais” ...

FA: Você está antevendo a possibilidade de uma reconfiguração da saúde da família para um novo modelo de atenção básica, é isso? Como tendência sistêmica? Ainda que pese toda a incerteza que vem pela frente.

AS: Veja Fernando, eu não consigo nem enxergar. Porque realmente acho que hoje... Aqui no meu Estado, a ABRASCO acabou de lançar um documento que é o aumento da mortalidade materna. Amanhã a gente tem uma reunião para discutir isso aqui. Nós somos uma das maiores maternidades do Estado, a gente só perde para Petrolina em número de partos.

FA: O aumento foi aqui ou nesta maternidade?

AS: Nesta maternidade e aqui em Pernambuco, tá certo?  E a ABRASCO lançou esse documento do aumento da mortalidade materna em nosso país e eu estava comentando com esse colega que faz a supervisão da emergência aqui. “Eu estou tão preocupada, daqui a pouco a mortalidade infantil começa a aumentar de novo” ... Aí ele disse “daqui a pouco?” Já começou. Daí a poucas semanas depois sai o documento do ministério, a mesma Fátima Marinho com os dados da mortalidade 2016, e mortalidade materna. Aí eu disse “mortalidade infantil temos, mortalidade materna temos, baixa cobertura vacinal, temos. Tá faltando o quê? Classicamente quais são os indicadores que você olha mais de perto para ver a condição de saúde da população? Esses três, pelo menos. Então assim, eu estou muito triste, apreensiva, preocupada. Nós, né, estamos. Sem saber o que vai acontecer. E assim, o que vinha bem, que eu comecei a contar para vocês o que eu voltei para fazer, quando eu voltei em 2007 e fui lá para a faculdade, mas de 2011 a 2014 eu voltei para a Secretaria Estadual de Saúde. Antônio Carlos Figueira, foi secretário e eu voltei para a atenção primária e assessoria da Secretária de Atenção, executiva de atenção à saúde da Secretaria Estadual. E a gente fez um trabalho muito bom e estávamos em franca expansão do NASF e estávamos... implantamos um projeto de acompanhamento de desenvolvimento infantil, chamado aqui no Estado de “Mãe Coruja”, que envolveu não só, obviamente o óbito e a qualidade do pré-natal, óbito neonatal e a qualidade do pré-natal, mas também o desenvolvimento infantil. Então, fizemos umas coisas muito bacanas aqui na Secretaria Estadual nesse período até 14.  De lá pra cá foi só bomba, só bomba... Só desmonte, só desfinanciamento. Então assim, a gente teve uma experiência super rica aqui no Estado com a Bahia, que a gente chamou de “Rede PeBa”. Fomos eu, Ana Paula Soter e outra sanitarista daqui que é Reneide Muniz, Reneide foi secretária de Camaragibe também, e a gente foi lá para Petrolina e Juazeiro e montamos uma rede interestadual. Solla secretário na Bahia. O ministério disse, na época ainda era governo Lula e disse “Vamos montar uma rede interestadual que praticamente já existe”. A gente fez um projetão, implantamos a Rede Peba de atenção, exatamente isso. Eram 50, são 53 municípios, a rede existe, com muitos percalços, a rede existe, são 53 municípios. O que a gente viu? A gente mapeou isso aqui de atenção básica. Pernambuco, o que falta? Fizemos seminários com os secretários municipais dessa região todinha, alto sertão pernambucano e mais o baiano, montamos a rede Peba, da atenção básica à alta complexidade, oncologia vai ficar em Pernambuco, infectologia vai ficar...

FA: Isso na região fronteiriça, assim?

AS: É. Petrolina e Juazeiro. A gente se junta na Bahia lá em cima.

FA: No São Francisco.

AS: É ali no São Francisco. Montamos essa rede, porque apostamos nessa proposta de rede e a partir da atenção primária de saúde, da atenção básica, onde é que está faltando equipe de saúde da família, onde é que tem área mais vulnerável, com menor cobertura , o que é que dá de média complexidade para a gente montar aqui. Na Secretaria Estadual de Saúde...

FA: Isso agora a pouco tempo?

AS: Isso foi 2008 e 2009. E aqui na Secretaria Estadual de Saúde a gente desenvolveu uma unidade pernambucana de atenção especializada. Exatamente com isso. Como é que na atenção secundária a gente atende essa demanda? Escrevemos uma proposta que ficou muito bacana, a gente a partir da atenção primária do Saúde da Família só poderia ser referenciado por essas unidades se fosse uma referência regulada pela atenção básica para essas unidades de especialidades de grande resolutividade, mas tinha que vir daquele conjunto de municípios daqui que referenciasse. Que montasse uma rede mesmo! E aí a gente conseguiu na época.

FA: E a Rede PeBa, existe ainda?

AS: A Rede PeBa existe ainda, está se sustentando. Então tem uma central de regulação que atende esses dois estados, uma referência, uma base SAMU que atende essa região, então as bases foram montadas do lado da Bahia, do lado de Pernambuco.

FA: Está publicada essa experiência?

AS: Olha, Reneide ,que é essa colega que falei, a tese de doutorado dela foi um pouco sobre isso, mas não sei.  A gente escreveu documento na época, fizemos um diagnóstico bem importante, eu nem sei se tenho isso, mas não é difícil de conseguir isso não.

CP: Mas apesar da dificuldade é essa rede que vai dar conta da zika, mais recentemente, da captura de casos... Foi muito forte aqui...

AS: Muito forte... O IMIP acompanha o maior número de casos. Margaret Chan veio aqui no IMIP, visitou, no auge da crise. E o nosso centro de reabilitação tem toda uma dinâmica para atender essas crianças, temos um centro bem legal aqui no IMIP. O IMIP realmente é um hospital quartenário, a gente faz da vacina ao transplante.

FA: É o que? Um hospital filantrópico.

AS: É filantrópico...

FA: Quem é o mantenedor aqui?

AS: O SUS...

FA: Não, mas...

AS: É o seguinte... O IMIP é filantrópico, é privado sem fins lucrativos, nosso faturamento, 96 quase 97% é SUS, porque a gente é 100% SUS, a gente tem 1075 leitos.

FA: 100% do SUS?

AS: 100% SUS... E tem uma Fundação de apoio ao IMIP que capta esses 2,5% que a gente gasta...

FA: E como é a gestão do IMIP? É o quê? Uma Fundação, uma sociedade?

AS: Tem sócios, tem uma presidência e tem uma diretoria. Que tem um conselho consultivo...

FA: Não tem conexão com igreja nenhuma?

AS: Não...

FA: Interessante.

AS: Apesar de que no estatuto diz que é uma instituição católica. Mas não tem uma vinculação.

FA: Uma cúria...

AS: É. Não diz que é católica, diz que é cristã.

FA: Pelo prédio antigo.

AS: O Pedro II, esse prédio, o Pedro II é da Santa Casa. Foi hospital universitário há muitos anos, da Universidade Federal de Pernambuco. Eu cheguei a ter aula nele.

FA: Viu o que te falei, isso aqui parece uma Santa Casa...

AS: É Santa Casa. E o prédio é da Santa Casa e foi, por anos, utilizado pela Universidade Federal de Pernambuco. Quando o Hospital das Clínicas saiu, que era aqui e foi para o campus, aí o prédio foi utilizado pela Secretaria Estadual de Saúde e funcionou aqui a primeira regional de saúde. Um bom tempo. Nesta época, foi quando o NESC foi constituído. O NESC funcionou no Pedro II por um tempo. As primeiras turmas de especialização em saúde pública aconteceram aqui. Aqui funcionou a primeira regional de saúde. Regional de saúde mudou, saiu daqui desse prédio. O NESC saiu também e foi para o campus da Universidade Federal. É lá que funciona o Instituto NESC Fiocruz. Aí todo o prédio ficou abandonado anos. Em 2005, o IMIP passou a ser um hospital integrado, deixou de ser materno infantil.

FA: Ele já funcionava do lado?

AS: Aí ele funciona. O primeiro prédio é o que a gente chama de HGP – Hospital Geral de Pedriatria.

FA: Já existia?

AS: Desde 1960. Começou com um prediozinho pequeno da emergência pediátrica, depois construiu o prédio de seis andares da pediatria. Depois disso, quando eu estava terminando a minha residência foi construído o prédio da maternidade. Aí começou a parte da saúde da mulher, isso foi em 88,89. Só em 2005 tem o outro prédio no meio desse do HGP e do Pedro II, que é a Fundação Martiniano Fernandes, que é onde funciona a clínica médica e a clínica cirúrgica. Aqui no Pedro II funciona oncologia, transplante, cirurgia cardíaca, nefrologia, radioterapia...

FA: Mas mantém o foco na saúde da mulher e da criança ou hoje expandiu tudo?

AS: Não. Tudo, tudo, tudo. As áreas dizem que nós somos materno infantil, que os pediatras são os que mandam em tudo, mas...

FA: Sei...

AS: Tem uma tradição de hospital de pediatria.

FA: É o hospital mais importante de Recife, posso dizer isso?

AS: Público, 100% SUS, sim. É o maior hospital em número de leitos do norte e nordeste.

FA: Caramba.

AS: Do norte e nordeste, a gente em números de leitos que atende, fazendo algumas ressalvas, 100%... Só a Santa Casa de Belo Horizonte que tem mais leitos que a gente. É muita gente. O ambulatório tem 160 consultórios. Quando eu digo que são três mil alunos é porque é tudo mega, é muita coisa.

FA: Você diz em todos os cursos ou anualmente?

AS: Não, anualmente circulam.

FA: Entram 3000 alunos, e saem... Essa é a contagem?

AS: É um pouquinho mais de 3000. Todos os alunos da Faculdade Pernambucana de Saúde, a partir de determinado ano, vem para cá porque tem campo de prática, Nutrição, Psicologia, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Medicina. E a gente recebe aluno da universidade estadual e federal. Não são muitos, da federal, de medicina, de nutrição, são cem por mês, mais ou menos e da UPE deve chegar a uns 80. A gente tem mais residente aqui do que treze Estados da federação

CP: É muita coisa.

AS: São 62 programas de residências, 42 são de residência médica, e os outros são ou uniprofissionais ou multiprofissionais. A gente tem de Saúde Coletiva, a gente tem de Saúde da Família, a gente tem...

FA: Tem tudo.

AS: Tem tudo, quase tudo.

FA: E a faculdade de saúde, quais são os cursos que ela oferece?

AS: São seis com a possibilidade de abrir Odontologia . Medicina, Enfermagem, Fisio, Farmácia, Psicologia... Já disse farmácia?

FA: Disse.

AS: Nutrição.

FA: Enfermagem?

AS: Enfermagem e medicina, foram os primeiros que começaram

CP: Quase tudo. Qual o sétimo possível?

AS: Odonto. Aí tem de tudo. Gente, nas segundas feiras circulam 20 mil pessoas aqui. É uma cidade. Maior que muitas cidades do Estado. Porque são cinco mil e poucos funcionários, esse monte de estudante, esse monte de paciente. A gente é referência. Tem uns serviços aqui que são referência credenciados pelo Ministério por estarmos no Norte.  Tem um grupo que trabalha defeito no crânio e na face, que vem gente do Amazonas, vem gente do Acre. Então por isso essa coisa de ser de saúde integral... É muita gente. E aí me chamaram, eu estava de volta quando saí da secretaria estadual de saúde, eu estava de volta na faculdade. Agora eu vou me aquietar aqui. Aí a minha superintendente geral, que é Teresa Campos, minha amiga de muitos anos disse: “Venha para a superintendência de ensino e extensão!” ...Eu vim e estou aqui.

FA: Que bom.

AS: Acompanhando aí um outro aprendizado, que não tinha, a não ser na época que eu fiquei lá com os polos de Saúde da Família, mas não tinha essa inserção assim acadêmica. Minha vida é essa...

FA: E aí, finalizamos? Você tem alguma coisa que você queira colocar?

AS: Eu acho que eu cansei vocês, não foi... risos.

FA: Não, ao contrário a gente estava, se você não estava se cansando.

AS: Que nada... É um prazer falar.

FA: Excelente entrevista, aprendi muito.

AS: Muito obrigada, é uma honra para mim.

CP: Você tem o contato do Raggio?

AS: Tenho não... Eu nem sei se Armando está morando em Brasília.

CP: Eu fiquei com essa impressão.

AS: Eu tenho a impressão que Armando...

FA: Ele teve dirigindo um hospital de base.

AS: Ele coordenou a implantação do curso de medicina da fundação de...

FIM.

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