Rede observatório. Recursos Humanos em Saúde

Estação de Trabalho OBSERVATÓRIO HISTÓRIA E SAÚDE

Entrevistas

Armando Martinho Bardou Raggio

Entrevistado: Dr. Armando Raggio. 

Entrevistadores: Carlos Henrique Paiva e Fernando Pires-Alves.

Local: Fiocruz – Brasília.

Data: 19 de outubro de 2018.

Duração da entrevista: 2 horas e 55 minutos.

 

CP: Então Dr. Armando. Posso chamá-lo Armando?

            AR: Claro. Imagina!

            CP: A gente queria, então, formalmente agradecer a oportunidade desse registro, dessa entrevista. E eu queria que o Sr. por favor, começasse falando um pouquinho da sua origem familiar.

AR: Nós que temos algum traço branco ou predominantemente ou absolutamente, somos importados, ou exportados. Eu sou de quarta geração talvez de origem, de família catalã, italiana e portuguesa predominantemente, e francesa também. Assim que meu nome é Bardou Raggio. Eu tenho esse nome em homenagem ao meu avô Armando, e meu pai tinha essa intenção de dar aos filhos a letra A, ele se chamava José, chamada da escola, ele achava que o A era melhor, e pôs o nome do sogro no filho. Quando chegou no cartório pensou assim: “Mas o meu pai não vai gostar”. E daí pôs o Martinho, então Armando Martinho é o meu nome próprio, que pode ser muito bem nome e sobrenome. Eu sou neto do Armando Bardou e do Martinho Raggio. Meu pai e minha mãe são pelotenses, nascidos em Pelotas e vieram recém casados pro Rio de Janeiro, que o pai dele havia separado da minha avó já há alguns anos e mandou chamar, chamou os filhos, se não queriam ir pro Rio de Janeiro estudar, iniciar a vida profissional, etc, porque ele vivia no Rio. Eles aceitaram. E meu pai já era casado, então para ele estudar era mais difícil, mas o meu avô que trabalhava entre São Paulo e Rio de Janeiro conseguiu colocar o meu pai como aluno da Escola Agrícola de Guaratinguetá. Mas ele não podia ser aluno, então foi lá na Secretaria de Agricultura de São Paulo e pediu para contratarem ele. Daí ele contratado, com a esposa, tinha um pequeno apartamento em Guaratinguetá, dentro da escola. Aquele lugar onde ficaram internados os alemãs do Windhuk. Sabe a história do Windhuk? O Windhuk era um navio que na declaração de guerra da Alemanha ao mundo ou vice-versa, ele estava em alto mar, então eles vieram pintando o navio de tudo que disfarçasse para não identificá-lo como alemão e atracaram no Brasil. Parece que foi uma tripulação tão grande que eles tiveram que dividir. Então ali naquela escola foi feito um campo de concentração à brasileira, não era para maltratar, mas os caras tinham que ficar contidos ali, então nesse lugar onde os alemães ficaram lá detidos durante a segunda guerra. Meu pai chegou lá em 48, fez o curso de Técnico. Eu estou contando essa história para dizer como é que eu nasci no interior de São Paulo. Aí meu pai que era criado lá na planície do Rio Grande, recebeu, ele era o primogênito, recebeu uma missão do pai. “Meu filho, tu vais procurar aí uma propriedade para montarmos uma estância para família aqui no Vale do Paraíba”. E meu pai procurou muito e não achou porque aquele jeito daquela geografia do Vale do Paraíba e ele tinha pavor de subir e descer em busca de vaca e de observação de terrenos praticável, ele achava que muito pouco daquilo era praticável. Aí um dia o pai perguntou assim. “Meu filho, já que tu não encontraste nada eu vou tomar uma decisão”. E comprou a fazenda no interior de São Paulo e meteu os filhos tudo lá, era um pequeno campo de concentração dos filhos dele, e eles eram empregados do pai.

FA: Na região de Guaratinguetá, não?

            AR: Não, mais para dentro, na região de Avaré, entre Avaré e Itapetininga. Avaré, Itapetininga, Buri. É o ramal da Sorocabana que vai para Itararé e vai pro Sul, que nós lá, criados lá, chamávamos de ramal da fome, que é o lugar mais pobre, sudoeste de São Paulo. Era mais pobre que a Alta Sorocabana. Então eu nasci em Itapetininga, estudei o primário em Paranapanema e fiz o ginásio, ainda havia ginásio, e científico, em Itapetininga. Me engajei no movimento estudantil lá por 66, 67, e em 68 eu fui presidente do grêmio estudantil da cidade, tinha uns dois mil filiados, por aclamação. Logo eu entendi porque era por aclamação, não tinha adversário. Claro né? E eu lá fora de casa desde os 17 anos de idade, tinha liberdade, acho que isso me ajudou na minha formação, os pais não eram ausentes em relação à responsabilidade, mas não eram presentes fisicamente, então eu tinha certa liberdade. Minha mãe só dizia assim: “Cuidado!!!!” Meu pai também tinha ideias numa perspectiva de uma sociedade republicana democrática participativa, etc, mas ele estava lá tocando a vida no fazer cotidiano dele na propriedade que o pai transferiu para os filhos. Aí de Itapetininga ao fim de 68 veio aquele efeito 69 do AI 5. E a gente era organizado, a gente se organizava conforme quem nos convidasse, a gente entrou no movimento estudantil, eu fui liderança nesse trecho de Sorocaba e Itararé, viajando para cá e para lá, e nos organizando, e fazendo manifestação em São Paulo, e em 69 deu uma baixa assim total, as pessoas ficaram desorientadas, nós também ficamos sem contato. Até um companheiro nosso que militava no movimento estudantil, depois universitário, depois movimento operário mesmo, fez a opção de radicalizar mesmo e numa ação armada, na primeira ação armada dele, ele foi baleado e morreu. Essa era uma emulação do nosso empenho de mudar as coisas embora ninguém outros tenhamos, daquele grupo em que eu militava, ido para essa opção. Bem. Aí surgiu uma coisa que eu acho romântica, mas tenho que dizer, que era, eu era filho de gente que lidava com lavoura, pecuária, eu ia fazer agronomia, por exemplo, cheguei a ir para Piracicaba, no começo do ano de 69, e lá fiquei três ou quatro meses. Meu pai adoeceu e eu também não estava muito entusiasmado, e você começa a mudar o objeto. “Ah! Vou fazer economia, estudar economia, mas vou fazer economia rural, vou fazer genética na agricultura, ou cientista político ou cientista da tecnicalidade”. E no entanto uma amigo que era muito fraterno, a gente convivia muito, cujo pai era médico, já fazia economia na USP, cogitou que a gente tinha que mudar, fazer uma coisa que era tão imponderável que ia acontecer no país, fazer alguma coisa que pudesse ser útil socialmente independente de regime. “Ah! Então vamos fazer medicina”. E assim eu que não cogitava, resolvi fazer medicina e fui para Curitiba que o pai estava com dificuldade econômica, não tinha condições de me manter em São Paulo só para estudar. Até tentei ficar em São Paulo. Itapetininga é perto de São Paulo, então vendo que as coisas não progrediam, eu tinha um primo estudando em Curitiba. “Ah! Por que você não vai para lá?” E assim eu fui para Curitiba. Fiz o pré vestibular lá em 70, entrei na escola em 71, formei em 76, com expectativa de fazer medicina. Na época, as melhores e mais próximas das nossas ideias era a medicina preventiva e social, como a USP tem, como todo lugar no Brasil tinha aquele movimento das preventivas, então eu fui fazer isso também. Mas a escola...

            CP: Mas quando exatamente?

            AR: Durante o período de graduação. Mas na graduação de Curitiba, que é uma escola de boa qualidade, uma escola federal, antes estadual, aliás a segunda universidade criada com o nome de Universidade do Brasil se não me engano. A primeira era a Universidade do Amazonas em 1908, e a segunda, eu pensava que era a primeira, por isso que eu tô sabendo do Amazonas, e a segunda é a do Paraná de 1912. Isso era uma revelia dos estados, porque a rigor a constituição brasileira só admitia que a universidade fosse criada pela união. Por isso que, por exemplo, que a USP é de 34, então criavam-se faculdades e tal, mas o Paraná tem uma história interessante, a partir da extração da erva mate, a erva mate para o cone sul é muito importante, uma bebida tão importante quanto o café para o mundo, a erva mate concorre com o café, o cara pode não ter café, mas se não tem erva mate ele não passa, e a erva mate cresce embaixo da floresta de araucária, original, autóctone, e isso faz diferença. Os lugares que a erva mate é cultivada ela não é tão boa como a do Paraná. E o Paraná virou exportador da erva mate para todo o cone sul e era  uma região rica, e tinha dinheiro para criar uma universidade, coisas assim. Depois eu me tornei autoridade lá e aprendi bastante coisa, por força da tarefa ou por curiosidade, e vi que muito da modernização técnico-cientifica do Estado, da presença do Estado na promoção da saúde, da agricultura, da pecuária, da exploração, enfim, das riquezas, o comportamento do Paraná foi muito semelhante ao de São Paulo, diferente de ser proporções menores. Mas como tem o IBPT em São Paulo, tinha o Instituto de Biologia... Como é se se chamava o nosso lá? Agora não estou lembrado da sigla mas eu tenho até um livrinho que a gente teve a oportunidade de compartilhar na produção dele lá no Paraná contando essa história. Tais quais os institutos das diversas áreas de atividades de São Paulo e Rio faziam, o Paraná também foi fazendo. Eu tenho esses detalhes porque eu mudei de São Paulo para o Paraná, minha família era sulista, eu fui ficando interessado de conhecer esse universo, e foi muito bom ter participado lá. Mas a saúde pública que eu procurava na escola de medicina não tinha a importância, a atenção como outras escolas de medicina desenvolvia.

            FA: Esse seu interesse assim pela saúde pública especificamente vem do seu engajamento no movimento estudantil? Decorre daí?

            AR: Exatamente. Do engajamento político. Eu me aproximei da medicina mais como uma ciência social, como uma aplicação do conhecimento a serviço da sociedade, do que o viés da ciência, da pesquisa biológica do corpo humano, da fisiologia etc.

            CP: E qual foi o ambiente que o Sr. encontrou na universidade, digamos assim, que atendesse a essas expectativas?

            AR: Não atendia muito. A área de saúde comunitária como era chamada lá tinha um ou outro professor com essa vereda do social, mas dominantemente era tecnicista, conservadora e havia um professor que era um grande reacionário. Ele dizia, por exemplo, enquanto eu for professor aqui barbudo não entra.

            CP: Ainda bem que eu fiz a barba ontem. Estava imensa.

            AR: Teve um concurso ainda quando ele era diretor do departamento, que eu e o Rosinha participamos. Eu e Rosinha formamos no mesmo ano. Eu me formei na federal...

            FA: Rosinha é barbudo para caceta.

            AR: Rosinha até hoje. Rosinha se formou na católica no mesmo ano. Daí militamos juntos no movimento de residentes. E eu e Rosinha fizemos um concurso para atenção primária, para ser docente, professor auxiliar de ensino, e foi quando esse homem declarou. Enquanto... Eu tenho isso no depoimento de uma colega dentista a quem eu   escrevi quando eu defendi meu memorial de notório saber aqui, escrevi a ela. Beth. “Beth! Lembra aqueles tempos?” Daí a Beth escreveu uma coisa linda, disse assim: “E o professor dizia que enquanto ele estivesse lá barbudo não entrava. Você e o Rosinha... Passou em primeiro lugar no concurso o cirurgião vascular, com residência em vascular e mestrado em vascular, e eu e Rosinha em segundo e terceiro lugar.

            FA: Para uma cadeira de...

            AR: Uma cadeira de saúde pública. Para dar aula em atenção primária à saúde. Eu sou aprovado em 1985, por aí, para ser docente, nunca contratado, que só tinha uma vaga, e quem ganhou foi o cirurgião vascular, que não era barbudo e higiênico, bonitinho, certinho como a escola esperava talvez. Com o cuidado de não ser grosseiro com essa memória deles, o cara foi lá e se inscreveu, um médico que queria dar aula, queria ser professor, foi lá e se inscreveu. E a banca foi modificada no percurso.

            FA: Quem era essa figura que dirigia a faculdade?

            AR: Coriolano Caldas Silveira da Mota.

            FA: Como é que é o primeiro nome?

            AR: Coriolano. Coriolano Caldas Silveira da Mota. E esse aqui é o lattes né? Tá bem atrasadinho, a gente nunca atualiza isso. Eu não sou muito acadêmico.

            FA: Você fez medicina onde? Você fez algum memorial é isso?

            AR: Eu fiz aqui. Eu fiz como o Agenor, eu defendi aquele título de notório saber. Como diz um amigo professor da UNICAMP. “Pô! Você resistiu a entrar”.Era sempre crítico da academia convencional, sempre entre fazer e ficar estudando eu ia fazer, e assim foi... “Pô Armandinho! Você resistiu, mas não teve jeito. Agora é Doutor né?” Porque considera-se equivalente. Há lugares que questionam, mas aqui a Fiocruz considera assim, eu colaboro aqui como docente...

            FA: O Sr. poderia considerar a possibilidade de nos ceder uma cópia do seu memorial?

            AR: Sim, claro. Agora o Zé Rubem tá editando para mim. O Zé Rubem. O Zé, a gente tem uma simpatia, uma amizade há muitos anos, e ele veio, assistiu, ficou entusiasmado com as histórias que eu conto lá, mas não tem a métrica de uma tese não. Um memorial livre, você vai escrevendo.

            FA: Para nós é excelente. Que é um depoimento.

            AR: Eu passo para vocês.

            FA: Então voltando, o Sr. tava...

            AR: Agora eu contei essa história inicial aí, agora vamos dar mais foco, mas para a gente se ambientar que eu fiz essa...

            CP: O Sr. estava estudando no Paraná e estava insatisfeito com a ausência de uma pegada mais de medicina social, digamos assim.

            AR: De uma pegada mais para medicina social.

            FA: Como é que você resolveu isso?

            AR: Como eu tinha que trabalhar e eu tinha um bom rendimento no cursinho onde eu fui aluno bolsista, tinha que fazer todos os simulados e tirar nota dez, ao fim, aprovado, eu me tornei professor do cursinho. Então de 71 a 76, em que pesa toda a crítica que eu tenho a essa estrutura educacional, e o cursinho é o cobrador de pedágio da não disponibilidade de vagas na universidade. O Digenes ficou rico assim. E depois eles ficam fazendo elucubrações sobre o que deve ser uma boa política de educação. Mas eu trabalhei de 71 a 76 num cursinho, me casei em meados desse período, 73 para 74. E militava e fazia o curso de medicina. Então eu me agarrei no outro lado. Bom! Já que eu não tenho a expectativa de me engajar aqui na área social, da medicina comunitária, que era uma medicina comunitária. Esse Coriolano ele se interessava pela saúde do escolar, então ele militava na prefeitura, fazia a saúde do escolar. Ora! A condição de escolar é a condição mais saudável, porque não morreu na mortalidade infantil, vai ter problemas odontológicos, alguns outros, não desprezando que não se deva dar atenção para o escolar, mas você sabe muito bem que o escolar é o mais sadio momento da vida das pessoas, se não faltar alimentação e higiene.

            FA: E já tá sendo atendido pelo Estado.

            AR: E ele fazia isso. E foi secretário de educação. Lá chamava Diretor de Departamento da Prefeitura de Curitiba, numa área chamada Bem Estar Social. E lá tinha serviço social, educação e saúde. E ele tocava isso e o interesse dele era fazer trabalho sobre saúde. Ele não sabia que eu iria sucedê-lo. Ele não sabia e eu também não.

            FA: Barbado ou não né?

            AR: O que que eu fiz? Eu me dediquei à patologia. Eu fiz histologia com uma senhora professora, uma senhora farmacêutica, esposa de um professor de anatomia patológica que era o mais conceituado, que tinha feito residência no Rio de Janeiro com o Professor Barreto, que é uma baita referência em patologia no Brasil, e esse era um fiel aluno, um cara dedicadíssimo, muito qualificado, chamado Afonso Coelho. E a esposa dele dava aula de histologia. E eu não ia muito bem, não me adaptava muito com aquela coisa. E ela disse: “Olha! Porque vocês não frequentam...” E nos levou a visitar a anatomia patológica. Aí eu tinha um amigo do meu primo que já estudava lá, que fazia residência em anatomia patológica, eu fui me aproximando da anatomia patológica e me interessei, fiquei quatro anos lá fazendo autopsia, vendo lâmina e tal, aprendendo histologia. Eu lembro que o professor de histologia me perguntou uma vez numa prova que eu fiquei para segunda chamada, eu repeti histologia, fiz histologia de novo. Um homem muito bom que eu descobri depois que era do PSB, aquele PSB, esquerda democrática da UDN sabe? E o professor disse assim: “Dr. O que é mucosa? O Sr. defina para mim o que é mucosa”. Eu sabia dizer o que era, mas não tinha o palavreado para dizer para ele. (Balbuciando) “Mucosa é uma coisa assim”. Não dava. Pô! Eu tinha que me alfabetizar em histologia.

            FA: “Para efeito de registro, o professor mostrou a face interna da bochecha dele.” (risos)

            AR: Isso é mucosa. E daí a Olinda Pelentièr, esposa do Dr. Afonso nos recomendou, só eu e mais um colega, e nos interessou. Esse colega depois que se formou foi fazer com Zildo Andrade da Bahia, que era onde eu devia ter ido, e eu fiquei ali na escola mais conservadora, porque já casado, vivendo ali em Curitiba, meu pai já morava lá e gravemente doente e tal, fiquei na dúvida.

            FA: O Zildo estudava endemias rurais lá na Bahia?

            AR: O Zildo era patologista, e daí ele fazia patologia infectoparasitária, mas era um homem erudito em patologia, ele e em Pernambuco o... Agora não estou lembrando o nome, mas um líder lá de uma formação respeitável e que foi Presidente da Sociedade Latino Americana de Patologia também. Quanto mais ao norte mais envolvido- como o Samuel Pessoa fez, e com as questões de interesse médico social. Quanto mais ao sul mais tecnicista, mais board, mais formação americana. Por exemplo, o Afonso era muito qualificado, e eu não diria que ele fosse politicamente tão ruim assim, tão negativo, ele compreendia das coisas, mas era do pessoal do serviço de patologia, tocar serviço, ganhar dinheiro com patologia, bom, em troca do trabalho tudo bem ser remunerado, mas você sabe como o INAMPS financiou a patologia, todo o laudo cirúrgico tinha que ter o exame anato patológico, nem que fosse obvio, se não tivesse não pagava e isso nutriu o desenvolvimento dos laboratórios de patologia médico cirúrgica no país, foi útil. Operou de apendicite. Ora! Apendicite precisa fazer anato patológico? Precisa. Até porque pode ter neoplasia junto, etc, mas era um rigor exigido assim e os laboratórios foram automatizando isso. Agora, o Afonso era o cara que quando ninguém sabia perguntava para o Afonso.

            FA: Você tá dizendo de Afonso...

            AR: Afonso Coelho, que foi aluno do Barreto, depois fez o board, foi para Marilândia do Sul, fez o American Armed Forces Institute of Pathology em Washington, ele era instalado em Washington. Ele era um cara com uma formação muito boa, já faleceu há pouco.

            CP: Aí a gente já está nos anos 70, não é? Nós tivemos acesso a uma literatura, eu estou me referindo ao trabalho assinado pela Maria Alice Pedote e o Moisés, que trata...

            AR: Maria Alice Pedote, socióloga, amiga da minha mulher, formou junto com ela e eu a contratei na prefeitura como socióloga quando eu fui diretor de saúde da prefeitura.

            CP: Pois então. Eles tratam das primeiras experiências institucionais na área de saúde em Curitiba e eles, se a gente bem entendeu, eles compreendem que em meados dos anos 60, até 68, teria desenvolvido, naquele município, experiências, vamos dizer assim, embrionárias de uma atenção primária à saúde.

            AR: Era eu que era o diretor que tocava isso.

            FA: Era um pouco antes...

            CP: Era de 64 a 68...

            FA: Gestão de...

            CP: Você ainda não tinha entrado na faculdade?

            AR: Ivo Arzua Pereira foi Ministro da Agricultura em 68 quando foi assinado o AI 5, ele era engenheiro, mas era um homem com sensibilidade para as questões da sociedade, do desenvolvimento urbano, e ele foi o criador do IPPUC, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba que depois gerou a geração do Jaime Lerner e seus colaboradores e eu fui beneficiário de conviver nesse período da década de 70. Isso foi feito por aproximação com a Fundação SESP, Então Ivo Arzua chamou a Fundação SESP, num lugar chamado bairro do Cajuru, em Vila Oficinas, oficinas da rede ferroviária Paraná/Santa Catarina, eles criaram ali uma unidade com orientação de trabalhadores da Fundação SESP, médicos paranaenses que tinham optado, era uma raridade também, e aliás gente muito boa, um deles até pai de um colega de turma meu, Dr. Boscardin, e eles orientaram essa unidade, e uma unidade em Toledo, em Curitiba como um lugar urbano concentrado com a Vila Oficinas necessitando de atenção, uma fronteira na perspectiva do adensamento, e do outro lado em Toledo, que é a fronteira de exploração do oeste do Paraná, como era a índole da Fundação SESP, ir à lugares inusitados, que estavam sendo explorados, mexendo com equilíbrio original e causando problemas diversos e tendo que atender as pessoas. Então lá a Diretoria Regional do Sul do Brasil da Fundação SESP era sediada em Curitiba. E foi assim que o Ivo Arzua fez essa parceria. Eles não diziam necessariamente atenção primária, mas era a saúde comunitária, era o jeito Fundação SESP de fazer.

            FA: Muita educação sanitária suponho.

            AR: Muita educação sanitária, tinham as educadoras sanitárias, aquele viés higienista, mas tinha uma dimensão respeitável que era a responsabilidade, o cara não era médico para atender pessoas com sintomas, ele era um médico da saúde à disposição para, com enfermeiros, educadora sanitária, visitador sanitário, ensinamento sobre instalações higiênico sanitárias do domicílio, investigação sobre parasitose, essas coisas se faziam muito. Quando nós passamos na saúde comunitária, a gente fazia o estágio lá. Eu achava ridículo aquilo em termos já de anti-helmínticos potentes como mebendazol  e a gente tá lá colhendo fezes para examinar, para dizer que tinha o ovinho, que tinha que tomar o remedinho assim, dois mebendazole uma vez, duas vezes por ano resolvia isso, a gente podia fazer as outras coisas.

            CP: Qual é o lugar dessa experiência se tomarmos como referência o que virá? Como que ela vai informar, por exemplo, as ações na década seguinte? Eu estou fazendo essa pergunta porque, regra geral, pelo menos parte do campo da saúde pública ou saúde coletiva, tende, às vezes, a demonizar um pouco a ação da Fundação SESP, haja vista uma série de adjetivos que são mobilizados para desqualificar essas experiências. A gente, contudo, queria entender um pouco essas experiências.

            AR: É interessante, porque o Paraná, com a liderança de um Sr. chamado Professor Vitor Ferreira do Amaral, formou-se no começo do Séc. XX na Nacional no Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, com ainda aquela força do modo como a medicina veio para o Brasil com a índole europeia, do general practitioner, essas coisas. Ele era um médico assim, e ele tinha uma liderança intelectual e social importante, ele foi inspirador na criação da universidade a partir do curso de medicina, então até a década de 50, a força de formação, a orientação filosófica da formação médica no Paraná era mais na perspectiva da medicina da Europa, e depois com o crescimento do Paraná, apesar de ser uma economia regional limitada, etc, ela tinha força, então ela mandava os seus formados para a Europa diretamente sem a mediação do Rio de Janeiro, mandava para Argentina, que a gente sabe que a Argentina, a Universidade de Buenos Aires é de 1808, a república foi fundada em 1808 na Argentina,  a Argentina é muito europeizada também, então o Paraná tinha muito essa vinculação. A gente tinha professores que fizeram residência na Argentina, etc. E o diretor que mais influiu durante esse meio século de Universidade do Paraná, na área de saúde, além do Vitor, o sucessor dele, foi Nilo Cairo. Nilo Cairo era um homeopata reconhecidíssimo, e o nosso diretório acadêmico era Diretório Acadêmico Professor Nilo Cairo, o DANC. Eu estou falando isso para dizer o seguinte, a modernização de influência sesperiana de saúde no Paraná foi da década de 50 para cá. Até então o Paraná era uma fronteira e como fronteira acolhia muito bem a Fundação SESP. É interessante isso. Tem sulistas, por exemplo, Eduardo Costa, formou no que é hoje a Federal de Saúde, junto com aquele colega que foi vice presidente da fundação de vacina lá de Washington, ele já faleceu, e que controlou varíola no Paraná demonstrativamente, depois ele foi para Etiópia aplicar o que ele tinha aprendido, é o Cid... Você sabe de quem eu estou falando, né? Tá no meu memorial, acho que é interessante a gente lembrar, daqui a pouco volta o nome dele. Essas pessoas se descolavam lá do Sul e iam para Altamira, como ele foi, e como Eduardo foi, e tentar fazer de outro jeito. E no caso da prática de saúde na perspectiva de saúde comunitária do Paraná acho que também tem uma influência da colonização não original portuguesa, mas depois de europeus outros, italianos, alemães, e depois ucranianos e poloneses e por último, japoneses. Eram colônias que tinham que se auto cuidar, porque o império era muito generoso para receber, mas não correspondia com os compromissos que fazia, então eles tinham que... Aquela catedral de Curitiba foi construída por um mestre de obras, não tinha nenhum engenheiro ali, ela tá lá em pé há cem anos pelo menos, acho que muita coisa no mundo foi assim, mas é interessante que havia essa índole de cuidar, de se auto cuidar.

E daí o Estado teve uma modernização importante na década de 40 com Moises Lupion. Moises Lupion é muito mal falado como o homem que dava terras ou vendia terras em vários pavimentos ou o mesmo terreno várias vezes, várias coisas assim para desqualifica-lo, mas ele quando foi governador, ele fez uma rede de educação e de saúde muito importante que adentrou todo o Estado do Paraná, e criou uma coisa que eu nunca vi em nenhum outro Estado, uma carreira de higienista, paramédicos, igual a carreira de Promotor de Justiça do Estado. Eu tive pessoas que me inspiraram, Dr. Agostinho Saldanha de Loyola, por exemplo, que eu homenageei nesse memorial, que ele entrou como médico de carreira do Estado ganhando igual promotor público, no  posto de higiene número dois de Morretes e fez uma carreira maravilhosa, esse homem era muito preparado e a última coisa que ele fez foi de Delegado Federal de Saúde no Paraná, quando eu comecei como Diretor de Saúde de Curitiba. E também tinha outra coisa interessante, que essa coisa do sul. O jeito bismarckiano, lembra dele? Bevere John Bismarck, então o jeito bismarckiano é o seguinte, nós nos havemos, nós nos cuidamos, a gente se contribui, se ajuda e se cuida. Então em Curitiba não tinha muito a presença do Estado inicialmente na atenção à saúde. Isso é uma razão que Curitiba teve uma modernização tardia, e se destacou tanto, eu fiz parte e tive a felicidade de ter formado lá, saí da residência de patologia para  ser Diretor de Saúde de Curitiba, nós tínhamos sete unidades de saúde em 1979, e contratei os companheiros de militância que tinha então na época, e era possível fazer, e fomos lá fazer alguma coisa com a declaração de Alma Ata na mão, mas o que predominava lá era uma associação beneficente chamada Saza Lattes, de uma senhora tia do Cesar Lattes, sabe que o Cesar Lattes é paranaense, curitibano. Talvez o cientista brasileiro de maior projeção na física mundial, com a descoberta dos mésons e tal, ele era uma figura e tá aí o nosso currículo chamado lattes em homenagem a ele. E a tia dele era uma senhora artista, bem feitora, que organizou uma Associação de Proteção à Maternidade e à infância, e a rede maior de atenção que havia então em saúde comunitária era a Rede Saza Lattes, que era privada beneficente para você ter uma ideia.

Depois o Estado foi crescendo com a sua organização e daí havia em Curitiba uma rede um pouco menor, talvez com mais servidores, mais organizada, que era do próprio Estado. E Curitiba mesmo só passou a ter unidades de saúde a partir daquela de meados da década de 60, de Vila Oficinas, depois uma aqui, outra acolá, até que chegou na ditadura, você lembra do projeto de Centros Sociais Urbanos? Aí o regime financiou a criação de Centros Sociais Urbanos nos aglomerados da cidade que crescia, e daí fizeram lá as unidades de saúde, orientadas por esse Professor Coriolano, só para fazer saúde do escolar.

            FA: Era inclusive no mesmo prédio, associado à instalação escolar.

            AR: Era, exatamente.

            CP: Você está usando, você já usou algumas vezes a palavra “rede”. Você está usando essa palavra no seu sentido, digamos assim, conceitual que a gente mobiliza hoje?

            AR: É. O primeiro documento que a gente produziu com o IPUC, com a Zélia, com a Zélia que era uma colega professora.

            FA: Zélia de que? Desculpe.

            AR: Zélia Passos.

            FA: Zélia Passos.

            AR: Zélia Passos. Era Zélia....

            CP: Não faz mal, depois você ajusta isso.

            AR: A Zélia Passos tem uma história muito interessante como Diretora de Educação do Jaime Lerner, e ela tinha uma história de militância e aí tem um conflito enquanto ela era diretora dele, eu já conto logo, e ela foi presa grávida, esperando o segundo filho dela que é o André, hoje sucede o pai como advogado, e ela era diretora do Jaime. O pessoal as vezes só conta coisas do urbanismo do Jaime e as vezes os projetos que se permitem criticar, não reconhecem algumas coisas da maneira dele de se comportar. Ele a manteve Diretora de Educação durante todo tempo que ela esteve presa, visitava ela na cadeia e dava toda a retaguarda até ela sair, e quando ela saiu daí por acordo entre eles, ela ganhou o bebê e tudo e saiu da prisão e não voltou, depois superou lá o processo e depois ela ficou como colaboradora e coordenadora do IPUC.

            FA: Era um processo de natureza política?

            AR: Era um IPM, político militar contra ela, e ela militava na AP.

            FA: No começo dos anos 80... Bom! Você tem um percurso que esse seu interesse na patologia vai te levar para medicina legal né?

            AR: Porque como eu era residente, abriu um concurso na medicina legal, e era a oportunidade de ter um emprego público, e nós que fazíamos residência em patologia passava de tala erguida, como fala o gaúcho, então todos nós que éramos residentes fizemos o concurso, passamos. Terminamos a residência em 78 e 79 e em 82 eu fui contratado. Agora em janeiro de 19 eu vou completar 37 anos, quais dois eu tive afastado, como médico legista e me aposentar numa carreira que, aliás, depois serviu de substrato para eu ter liberdade de aceitar tarefas sem subordinação que humilhasse ou que impedisse de fazer o que eu achava que devia fazer. Então como residente de patologia o concurso foi tranquilo e eu e outros colegas, nós éramos três R1 e fizemos residência junto, entrei eu, Roberto e Antônio Carlos, e todos nós passamos e fizemos carreira como médico legista, e sendo patologista, a gente fazia exame histopatológico para colegas não patologistas, dos casos que eles examinavam, e em Curitiba, por lei, o Estado instituiu o SVO que a gente luta tanto para  ter no Brasil inteiro, por conta dos municípios, no IML.

            FA: Que é o que o SVO?

            AR: Serviço de Verificação de Óbito. Para esclarecer morte sem causa conhecida, que não é violenta, que não é suspeita, que não é de causas externas, que não é assassinato, suicídio, nada disso, morte natural, então nós patologistas fazíamos exames de morte natural. Como fui gestor depois de muitos anos, eu era cedido, oficialmente sempre, nunca na gaveta, cedido oficialmente, com ressarcimento quando era uma entidade externa ao Estado, ou não Estado ou Município, ou por conta do próprio Estado. O primeiro cargo que eu ocupei no Estado foi de 83 a 87 como Diretor da Fundação de Saúde na equipe do Cordonni.

            FA: Mas antes disso você vai aprofundar sua guinada para a saúde pública, você vai para ENSP, fala um pouquinho dessa...

            AR: Eu fiz na USP. Eu fiz o décimo quarto curso de formação criado com base na inspiração do Lezér e eu fui aluno lá do Orivaldo, fui aluno dos clássicos professores lá da escola. Ao fim no quarto ano da minha condição de Diretor de Saúde de Curitiba, o prefeito então era o Jaime Lerner, concordou com meu pedido, mediado pelo meu diretor geral, Curitiba não tinha secretaria, sabe? A prefeitura era muito centralizada, muito tecnicista, e os secretários eram diretores gerais de departamentos. Dentro da diretoria geral de um departamento de desenvolvimento social tinha uma Diretoria de Saúde, e eu ocupei essa diretoria. E eu fiz a especialização em São Paulo, fiz um curso de antropologia médica na faculdade, na medicina na Paulista, hoje é a UNIFESP, lá da escola paulista, mas era um curso de aperfeiçoamento só, mas foi interessante.

            FA: Você não fez um curso na ENSP?

            AR: Da ENSP eu frequentei alguma coisa dos CLAVES [Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli] mas nunca um curso com título de, no mínimo, de aperfeiçoamento. Nunca fiz. Tá aí como ENSP?

            FA: Parece que sim, mas eu também posso ter feito uma leitura...

            AR: Mas sempre próximo da ENSP, frequentava muito, gostava das oportunidades que havia lá.

FA: Nessa altura você está vendo a segunda gestão de Jaime Lerner na prefeitura, 79 a 82, enquanto você está fazendo esse percurso.

            AR: Eu fiquei seis meses em São Paulo e fiz o curso e voltei.

            FA: E aí a gente tem aqui notícias de certo modelo de saúde regionalizado e hierarquizado de Curitiba, uma ação comum da Sesi, Inamps, prefeitura, da Saza Lattes não é isso?

            AR: Isso foi escrito ainda governo Figueiredo aqui, Jair Soares, eu vim com Jaime Lerner com esse documento, pedi o apoio do Jair Soares, e tivemos franquia dele para fazer, e começamos a fazer com o Superintendente Regional do INAMPS de então que era o Alcenir Guerra.

            FA: Mas você já estava na...

            AR: Eu era o Diretor de Saúde. E porque eu estava falando da Zélia Passos? Porque ela era diretora da área social do IPUC, e foi com ela que a gente produziu esse documento.

            FA: Na segunda gestão do Lerner você já estava no departamento?

            AR: Foi então que eu fui nomeado por ele, eu fui nomeado no cargo de confiança como diretor de saúde, e sucedi o Coriolano que tinha sido no passado o diretor de saúde e depois tornou-se diretor do departamento que incluía a saúde, e nesse governo do Jaime ele desmembrou o bem estar social, pôs educação como o departamento de educação, e chamou a outra parte do social, a assistência social, creches e saúde de Desemprego e Desenvolvimento Social, e um jornalista chamado Luiz Carlos Cunha Zanoni, que era meu amigo, conhecia meu interesse, me convidou para um grupo de trabalho, pro que o Jaime ia fazer dentro desse DDS, e me surpreendeu com o convite para eu ser diretor, me surpreendeu mesmo, que eu tinha tesão para fazer aquilo, mas eu não estava pedindo, surpreendeu e eu fiquei assim: “Mas eu sou patologista, eu não fiz especialização em saúde pública”. Você vê como a gente era condicionado por esse modelo, eu achava que tinha que ter a credencial de sanitarista, aí pedi uma semana de prazo, consultei os amigos todos, aí: “Não! Você tem vontade, tesão de fazer isso, vai fazer, você é médico, tem o diploma de patologista e pode muito bem contribuir”.

            CP: Antes de a gente entender um pouquinho esse modelo, eu queria falar sobre ele, quando você assume, qual o diagnóstico que você tinha ou o seu grupo tinha sobre a organização da saúde pública lá?

            FA: Em Curitiba né?

            AR: Nós queríamos montar uma rede, com uma só coordenação, você vê, era o conceito já, cabeça nossa lá, pegando a orientação do IPUC organizando as cidades, de modo que as unidades do INAMPS, as unidades da Saza Lattes, as unidades da prefeitura fossem todas geridas pela prefeitura...

            CP: Integradas.

            AR: ... Mediante um acordo e a gente construiria um coletivo para reportar as decisões e ir progressivamente fazendo. Dez anos depois eu consegui fazer isso, mas antes enfrentamos dificuldades, e curioso, Jaime e Alcenir davam-se bem, tinham uma sintonia, como, vamos dizer assim, os liberais dentro do establishment, de um conservadorismo, e para o lado do Nei Braga e o genro dele que era o Oscar Alves, o pessoal, o Zé Maria, escrivar, pessoal opus dei. Quando terminou essa gestão do Jaime, e ele sempre era muito amistoso, brincalhão e reuniu todos, o primeiro ele fez isso também, na segunda ele nos reuniu todos e passou na nossa mesa, sempre conversando e disse assim: “Duas coisas que me deram muito trabalho, a ficha amarela do IPUC”... Que era a ficha que autorizava fazer a obra naquele lugar, geralmente as pessoas queriam fazer contra a regra, e a ficha vermelha do DDS, vocês da saúde. Porque o o genro do Nei Braga era o Secretário de Estado da Saúde e o cara era tão obsessivo, tão louco, tão paranoico, que nós criamos, a primeira unidade de saúde que era o emblema do que nós queríamos fazer, que era o Posto Médico Comunitário da Vila São Pedro. Esse homem, faltando o que fazer no Paraná inteiro, teve a pachorra de criar uma unidade dividindo o terreno conosco para ter a presença da Secretaria de Estado, Oscar Rodrigues Alves, acho que a única coisa importante de ter era o nome Rodrigues Alves, Oscar Rodrigues Alves, um médico, tá atuando até hoje, foi Presidente do Conselho de Educação no Paraná, mas um reacionário assumido, um PDC de extrema direita, genro do Nei Braga, esse era o cara que via comunista embaixo da cama, e ele dizia para o Jaime tirar nós de lá, e o Jaime não tirava, como não tirou a Zélia, entendeu? Não que o Jaime fosse de esquerda, não nesse sentido, mas um homem com uma cabeça aberta.

            FA: Você tinha alinhamento partidário?

            AR: Tinha, antes de poder ser do MDB, eu militei primeiro na Ala Vermelha, depois fui pro Paraná, não tinha... Em 69 a Ala Vermelha sumiu, era pequenininha, a gente achava que o João Amazonas era pouco, a gente tinha um documento de recrutamento que se chamava tremendão, se você não soubesse o tremendão... E esse negócio começou pela admiração pela Revolução Chinesa e tal, mas na verdade quem primeiro nos convidasse como secundarista incomodado a gente criava, desde que não fosse o partidão, que lá em Itapetininga tinha muita gente do partidão e a gente xingava muito. “Vocês não fizeram nada no golpe!” E daí tinha um que dizia assim, o Ivan Barçante, “Mas nós saímos procurando revólver”. E eu: “Pô! Que vocês iam fazer com isso?”. Aí quando a gente foi para  Curitiba, quando a gente tem essa índole, você não fica muito tempo, aí eu me dediquei ao cursinho, estudei, estudei, estudei, aí eu me projetei lá porque eu tinha que dar certo, aí depois eu virei arrimo de família, meu pai foi quebrando, quebrando, ficando sem nada, e felizmente eu tomei essa decisão de estudar e tal, então um, dois anos depois que eu estava eu Curitiba eu já estava engajado de novo, na POLOP, aí eu ponho no memorial isso, nós éramos os peguistas, nós éramos dogmáticos demais nesse negócio, qualquer coisa que acontecesse era política educacional do governo, isso não tava certo.

Não deixava de ter uma razão, mas tinha um mecanicismo nisso, os peguistas, nós éramos os peguistas. E o pessoal do partidão construindo a perspectiva de juntar todo mundo, que eu acho que a gente vai ter que fazer de novo, né? Então criou as perspectivas das liberdades democráticas, e daí a gente confundia com Libelu, ficava puto, mas eles estavam certos, até teve uma assembleia que eu ganhei, e a gente não sustentou a palavra de ordem que eu defendi, e eu digo no memorial que a gente não devia ter feito aquilo, que a gente não sustentava, e daí um dos nossos companheiros foi para cadeia e quem tirou ele da cadeia foi o Liberdade Democrática, que teve consistência para mobilizar e tá tá tá.

            FA: Agora, quando Jaime montou as equipes da gestão dele, ele era receptivo a essas forças ou estava encontrando pessoas, tá entendendo?

            AR: Era mais com pessoas, porque a pessoa que me recomendou para ele era muito próxima dele e também, em que pese o jeito de uma pessoa mais entre o Jaime e nós à esquerda, ele era uma pessoa que dialogava com todos.

            FA: Nessa altura você estava no MDB já? Ou não?

            AR: Tava no movimento, tava com Roberto Requião fazendo política de bairro.

            FA: E o Lerner tava com quem?

            AR: O Lerner tinha feito a primeira gestão e tinha ido para Berkeley, aí ele estava voltando para se filiar ao MDB, o Nei Braga foi colocado governador, chamou de novo, ele aceitou de novo ser prefeito, mas realmente uma pessoa nomeada diferenciada, que tinha qualidade e fez projetos bem interessantes na cidade, e de vez em quando dava umas escorregadas, trabalhava, mas ele nunca foi orgânico partidariamente, ele queria ser candidato ao governo e a cúpula já PDS, não mais Arena  não deixou, mas eu por exemplo, saí da diretoria dele para ser Diretor de Saúde do Estado do Paraná no governo do Richard que se elegeu em oposição à situação a qual ele era filiado. Eu fui conversar com ele. “Ó! Tô tendo esse convite”. Ele disse: “Vá, vá, faz muito bem de ir”, etc. Que ele se relacionava muito bem com o MDB, com o José Richa. A primeira pessoa que me chamou para falar no Paraná da experiência que a gente fazia em Curitiba foi a base do lá no sudoeste do Paraná, Dr. Walter. Então eu tenho essa vivência interessante, ficar nesse entremeio, entre governos conservadores, mas que reconheciam que eu poderia aportar, talvez falta de outros ou alguma habilidade minha, me permitiu viver essa.

Então eu tive que sair da militância do movimento para aceitar a diretoria de saúde, mas considerando com pessoas com quem a gente militava junto que era, era interessante que eu fizesse isso. E foi muito interessante mesmo, encontrei um grupo de estudantes lá, hoje quase todos são dirigentes ou já foram dirigentes ou são dedicados à saúde pública, tanto em psiquiatria, gineco obstetrícia, em clínica médica, em enfermagem, lembrando da enfermagem a Rosângela Scucato, por exemplo  foi uma, é hoje uma educadora em saúde nessa perspectiva da construção do SUS altamente qualificada, muitos outros que eu não tenho contato amiúde mas sempre tenho alguma notícia, era um grupo de estudantes que a gente pegou a Declaração de Alma Ata que era recém saída em 78, e estudava aquilo de fio a pavio e tentavámos aplicar aquilo no território.

            FA: Essa é uma questão sempre para gente. Qual era o impacto, como é que vocês lidaram com essa coisa do surgimento, não é o surgimento, mas a transformação da atenção primária em saúde como uma agenda global?

            AR: A gente tinha vinculação com o pessoal do partidão, por exemplo, que era o Jadir Coutinho, eu formado e ele estava no quinto ano ou sexto ano. O Jadir foi meu estagiário, e Jadir fez a conexão com o Davi, nós levamos o Davi para lá, mas a gente era engajado desde o diretório, desde lá o segundo ou terceiro ano de medicina, no movimento de saúde comunitária, e ele era um pouco assim meio igrejeiro, meio... Era um movimento talvez mais beneficente, uma mistura de beneficente com um viés político também. E a gente foi muito influenciado pela ideia que começava a acontecer em São Paulo, em Bauru, em Campinas, em Piracicaba, aí nós tínhamos um colega que tinha sido militante da AP, nos tempos mais bicudos, que havia sido processado e tinha sofrido várias dificuldades, se chamava Paulo Gustavo. Paulo Gustavo era de Campinas, irmão do Claudio que foi Ministro da Casa Civil do Fernando Henrique, de índole de militância católica, bastante ortodoxo, a família do Paulo Gustavo e tudo, e o Paulo era do PCdoB e militava na atenção à saúde como médico, formado na Federal do Paraná também e ele fez uma conexão importante para nós, nós o chamamos e  o contratamos como consultor.

            FA: E como é que as tendências da saúde internacional estavam informando essa turma?

            AR: Lalond no Canadá e a Declaração de Alma Ata e daí as coisas começaram a acontecer no Brasil, aconteceram também em Campinas com o Nelsão, Montes Claros, e a gente foi se conectando com a turma, e Londrina o Márcio Almeida, o Nelsão ainda em Londrina. Embora Londrina quisesse ser prescritiva e considerasse que o resto era atrasado. Isso é um escorregada que todo mundo pode ter. O Nelsão me chamava de Príncipe das Araucárias e eu tive que chutar a canela do Nelsão muitas vezes. Hoje ele escreve qualquer coisa e pergunta para mim o que é que eu acho, tem o maior respeito. A última escaramuça nossa foi quando a Regina Célia que é muito reconhecida, uma excelente profissional, professora lá de Londrina, e foi diretora da nossa equipe junto com o Cordonni, diretora de saúde comunitária, a Regina Célia fez o doutorado dela sobre Curitiba. Sobre o que a gente tinha feito em Curitiba, e o Nelsão foi para banca, e daí encontrei o Nelsão depois da banca e o Nelsão estava deslumbrado com o que a gente tinha feito em Curitiba com o que a Regina Célia tinha demonstrado. Aí: “Tá vendo Nelsão, como são os conservadores? Isso é uma evidência de que os conservadores fazem mais bem feitos”. Que tem uma discussão sobre isso, que quando um conservador consegue fazer, ele tem um grau de exigência, ele tem que ter uma correlação, aí às vezes a gente... Não é por desdém, mas eu tenho amigos que se comprometeram com programas muito radicais e altamente promissores, que não conseguiram entregar, e eu entrava mais modestamente, em governo conservador, que era como eu podia entrar, e entreguei mais do que tinha dito, essa coisa de lidar com a dialética.

            CP: Eu queria justamente falar um pouquinho sobre o que você entregou, para a gente poder enxergar esse problema.

            AR: Por exemplo, eu comecei fazendo política de saúde em Curitiba com sete unidades, a última vez, a segunda, na segunda condição, embora por continuidade como secretário, eu deixei Curitiba com noventa e cinco unidades. Outro dia eu estava vendo aqui em Brasília a sistematização de coleta de exames e devolução dos exames necessários nas unidades de saúde, eu fiz isso há vinte e cinco anos num laboratório estatal próprio da prefeitura de Curitiba que colhia exames de madrugada de todas as unidades de saúde, as pessoas não precisavam sofrer essa via sacra que se faz até hoje na grande maioria da rede em todas as regiões do Brasil, que o pobre infeliz tem que ficar acordado para ser atendido e depois que ele atender sai com uma lista de coisas que tem para fazer e tem que sair procurando para fazer. E o retorno do exame era por internet no computador na mesa da secretaria da unidade de saúde, há vinte e cinco anos. Aí eu falei para moça: “Acho que eu posso ajudar você com essa experiência”.

A coisa de não ter a estrutura, porque Curitiba não tinha, permitia que a gente fizesse, com um prefeito moderno, contemporâneo, que não estava preocupado em fazer a rede de saúde, ele estava preocupado em aperfeiçoar o urbanismo que era a paixão dele, e que nos acolhia e dizia: “Pode fazer”. Agora, nunca deu dinheiro muito fácil, a gente tinha que... E a rede, por exemplo, de centros de saúde 24 horas, uma razão porque chama UPA 24 horas, é que eu inventei de juntar, o primeiro programa do Requião, com o Nizan Pereira, aquele colega que eu comecei a frequentar a patologia, criaram uma extensão do horário para melhorar a oportunidade das pessoas serem atendidas das 18 às 21 horas nas dezenas de unidades que eles implementaram, que eu tinha deixado projetado nesse documento que você referiu aí e chegou ao Requião, e pau na máquina, pegou o dinheiro da Caixa Econômica...

            FA: Esse documento é o Modelo de Saúde Regionalizado?

            AR: É. E a minha equipe ficou lá, e eu fui pro Estado, e daí o Nizan chegou próximo do Requião e foi o primeiro secretário de saúde de Curitiba, foi Nizan Pereira Almeida, recomendo, é interessante vocês entrevistarem ele, que o Nizan é muito espontâneo e muito... Pouco paciente como um militar organizadamente, mas o cara tem um tirocínio,  percebeu, foi lá e fez com o apoio de um prefeito que foi atrás de fazer políticas sociais, melhorar o sistema de transportes que o Jaime já tinha deixado bom, o cara aperfeiçoou ainda, então, aí a gente teve a oportunidade de dar essa organizada a partir do esforço que eles já faziam, o Jaime Lerner  elegeu em sucessão ao Roberto Requião, aí o primeiro mandato do Jaime como prefeito eleito, terceiro mandato dele. Aquela campanha dos doze dias e tal, pelo PDT, que ele estava lá trabalhando pro Brizola e veio, e muita coisa que ele desenvolveu lá na assessoria do Brizola, aí ele passou a aplicar em Curitiba e na saúde a gente tinha proposta e ele acolheu muito bem, eu sucedi um colega que eu havia contratado, meu colega de turma, que era um brizolista roxo, que daí participou dessa eleição do Jaime e esse rapaz foi o secretário que o Jaime nomeou e eu fui assessor dele.

            FA: Quem é esse rapaz?

            AR: Mário Gomes de Melo Leitão. Eu o cito também no memorial, você vai encontrar lá. O Mário, o Marinho, me acolheu como assessor dele, eu estava trabalhando em São Paulo, voltei para Curitiba, fiquei como assessor dele e depois ele me nomeou diretor de planejamento da secretaria para ele ser candidato a vereador e eu fui diretor de planejamento, ele foi candidato a vereador e daí eu passei a ser o secretário no último ano, em 94, 92, do último ano, último governo municipal do Jaime Lerner. Daí em 93, 94, com o Rafael Greca, com todo aquele jeito dele, a última vez que ele se elegeu agora, o Rafael é tão espontâneo, que o cara falou: “Dizem que o Sr. é gay”. “E daí? Qual é o problema? Eu não vou governar com a bunda”. Engenheiro né, e um cara inteligentíssimo e que deu a maior força para o projeto que a gente desenvolveu.

Qual foi o projeto? Eu peguei cada oito unidades, que tinha três horas a mais, das seis às vinte e uma, que em Curitiba ninguém pratica, porque só vai se for muito grave, porque de tardezinha em Curitiba é chuva com frio ou frio sem chuva, mas é frio, então, com todo respeito, eu sou a vida inteira servidor público, mas tudo vira estabelecido. Por exemplo, estendeu o horário, mas vacina não abria. Porque o frasco não pode abrir.... Todo horário que eu tentei mexer com horário eu sabia depois, aprendi dessa vez, eu sabia depois que o pessoal não ia mexer com as coisas clássicas para não... Porque esperava depois voltar atrás, quando passasse aquele furor do seu governo, do governo que você estava servindo. Então quando chegava seis horas da tarde, o pessoal puxava a cortina, encostava a porta, ia lá para dentro, ficava conversando, e atendia dois ou três pessoas só. “Pô! Tô gastando tudo isso”. Negar o que eles fizeram com essa índole é ruim. Vamos fazer o seguinte? Três vezes oito, vinte e quatro. A gente transforma a cada oito unidades, uma delas em 24 horas, sem problemas. O Rafael depois veio a ser candidato e a gente fez cinco unidades ao mesmo tempo. Paranaguá foi testemunha, ele foi visitar a obra comigo. Por coincidência, nós tivemos a chance de conseguir o financiamento do ministério pela relação do Jaime com o Alcenir, em que pese a nossa boa relação pessoal, a gente tinha diferença ideológica, partidária já então com o Alcenir, mas um dos meus colaboradores que é o Romeu Bertol, era colega de escola de primário, de secundário em Pato Branco com o Alcenir. Então, sabe? Essas coisas que a relação pessoal ajuda e supera, e que pese o Alcenir sair como saiu do Ministério da Saúde, ele levou a fama, mas ele não era o ladrão. O ladrão era um outro ministro paranaense que tirava caminhões do Ministério da Saúde, o Boris da Silveira, não o Alcenir, mas o Alcenir conservador, agora outro dia se prestou a uma coisa triste, reivindicar que 50% da verba do SUS seja para os planos de saúde, não é feliz. Não precisava. Agente Comunitário de Saúde começou na gestão dele, segundo ele conta, mas o PIS era anterior, então essas coisas assim que é lamentável, mas ele tem uma contribuição importante para aquela gestão do Jaime e para nós fazermos.

            FA: Onde é que você encontrou mais resistência na montagem desse modelo?

            CP: Aliás, a gente pode chamar esse modelo de um esforço para estabelecer um sistema local de saúde, é disso que a gente está falando, né? E aí completando, assim, qual o lugar dos hospitais nessa história aí?

            AR: Nós temos no Paraná e em Curitiba tradição de hospitais beneficentes e privados, e na cultura do Sul há muitos hospitais beneficentes. A grande rede de atenção à saúde no Paraná é feita predominantemente por hospitais beneficentes, pequenos e médios. Quando a coisa toma outras proporções, tem alguns hospitais privados importantes, mas há hospitais do Estado também.

            FA: Esses hospitais beneficentes eles têm que configuração? São organizados por igrejas?

            AR: Mais por religião, por organização religiosa católica, das santas casas, e mais para o oeste a inovação de... Porque o Paraná tem três colonizações, a portuguesa que veio pelo litoral, a tradicional, a do norte, do sudeste, do nordeste e até do norte, que entrou por Jacarezinho, Londrina, Paranavaí, com iniciativas de distribuição e fracionamento da terra, fracionamento da terra e distribuição por iniciativa da capital paulista, e o sudoeste e oeste do Paraná com os colonos do sul, então essa região os hospitais são evangélicos, ou luteranos, mas o evangélico clássico, não essa coisa salvacionista aí. Eu lembro uma vez que uma secretária chegou para mim e disse: “Secretário, a gente pode ter hospital da comunidade, o SUS pode aceitar?” Eu disse, não só pode aceitar como seria bom que todos fossem. Então lá no oeste do Paraná é muito comum, a comunidade sustenta o hospital a sério mesmo, e daí faz a parceria com o SUS e daí deu um, arribou muito. É o sistema local de saúde que a gente desenvolveu mesmo.

            FA: Isso como doutrina mesmo, repetindo a discussão da OPAS...

            AR: Doutrina, com clareza disso, e não entrar na questão dos hospitais porque se a gente entrasse no hospital, um hospital custa muito caro e pode comprometer todo o recurso que você dispõe. O único hospital que eu desejei assumir na atenção primária era o Sanatório Médico Cirúrgico do Portão. Que que era isso?

            FA: Do Portal?

            AR: Do Portão. Portão é o nome de um bairro. Esse hospital, na ocasião que eu descrevi para você, que o Nei Braga era governador de novo e o genro dele era o secretário de saúde, eu pedi esse hospital e o cara negou peremptoriamente, não queria doar pros meninos do Jaime Lerner, os vermelhinhos do Jaime Lerner, mas depois quando eu fui Secretário de Estado, a gente pegou esse hospital e transformamos ele numa unidade que contrata serviços por equipe, quando é serviço médico, que se você puser no quadro o cara não vai fazer se ele for contratado como CNPJ, mantivemos os servidores e processo seletivo para servidores lá mediante remuneração por CLT, com um CNPJ que se criou para esse hospital, e ele é uma parceria da universidade... não, não criamos, criamos CNPJ desse hospital derivado da fundação da universidade, então a gente pegou a fundação da universidade, a Prefeitura de Curitiba, a Secretaria de Estado e a própria universidade que  mantém programa de residência lá e fizemos o Hospital do Trabalhador, transformando esse sanatório, mas desde a hora que eu pedi isso que foi em 80, nós conseguimos fazer isso em 99, vinte anos depois, mas hoje é o maior pronto socorro de Curitiba, e chama Hospital do Trabalhador, que a região sul de Curitiba é a região de maior concentração do operariado que trabalha na cidade industrial de Curitiba. Uma diferença de Curitiba para Porto Alegre por exemplo, em que pese, eu não tenho crítica, eu reconheço a cultura de Porto Alegre, o que foi feito lá e tudo, é que Curitiba se sustenta com a própria arrecadação, ela tem uma arrecadação que é a mais importante arrecadação de ICMS do Estado, as vezes perde para Londrina, as vezes perde para Araucária, que beneficia o Petróleo, e as vezes perde para São José dos Pinhais? Não, nunca, sempre em primeiro lugar Curitiba, depois Londrina em geral, ou Araucária, ou agora São José dos Pinhais que tem no lado, as plantas da indústria automobilística lá.

            FA: Faz parte da Grande Curitiba né?

            AR: É. Agora, em Porto Alegre a arrecadação é feita na Grande Porto Alegre, fora do território de Porto Alegre. A Prefeitura de Curitiba é rica, tem um orçamento importante pro tamanho da cidade, melhor que muitas cidades de outro tamanho. Por que? Porque a produção é lá, numa região que o Jaime abriu como cidade industrial de Curitiba. Quando nós chegamos no terceiro governo dele, isso já estava consolidado, e as pessoas dessa região não tinham maternidade, não tinham pediatria, não tinham nada, daí a gente começou com o posto médico comunitário lá que eu falei e depois fomos orientando nessa perspectiva, mas conseguimos fazer muito pouco da minha primeira gestão lá como diretor, e logo veio o Requião,  daí que eu recomendo o Nizan Pereira Almeida, que deve ter coisas interessantes para dizer como é que eles implementaram o financiamento da construção de um número importante de unidades. Depois quando eu vim de novo em 92, 93, 94, aí nós fizemos financiamento, fizemos muitas unidades, eu fiz em torno, eu acho que somando tudo que a gente fez, eu trabalhei com quarenta, cinquenta unidades transformando, acrescentando odontologia que era separada das outras áreas de atendimento, fizemos coisas bem importantes, e cinco unidades 24 horas que a gente abriu, com a noção de sistema.

E qual foi a consequência imediata? Tivemos que contratar, com os hospitais beneficentes, de outro modo, e isso está no meu memorial também, por exemplo, o Hospital do Cajuru, que era o maior Pronto Socorro, reclamava que ia gente que estava com coisa boba, mas quando a gente tirou as pessoas com sintomas simples e bobos e tal, eles reclamavam que ficavam sem financiamento. Acredita? Aí a gente tinha que fazer outra negociação. E a minha ideia, não se consolidou assim, infelizmente, era que aquelas oito unidades deveriam dispor pessoais tantos quantos, para acomodação do usuário e acomodação do profissional, intercalando ambulatório, atendimento no consultório, na clínica, dentro da unidade básica, com um plantão nesse lugar, porque o plantonista seria conhecedor do demandante, que não conseguimos consolidar isso. Hoje é residente que tá de passagem. Imagina! Nesses lugares é, mal ouvem, mal examinam, receita assintomático, pedem todos os exames que vem na cabeça e manda pro especialista. Lá não é tanto assim, mas também tem isso. E a gente perdeu isso, mas então digo, eu sou culpado dessas UPA 24 horas, que as UPAs 24 horas foi da nossa experiência que se acoplou com a experiência do Rio das UPAs. Não pode esse negócio da pessoa chegar lá e ter que tá morrendo para ser atendida e daí quando é atendida é como é e fica... Como tá acontecendo com as UPAs, é lamentável. Mas não é por iniciativa de quem trabalha lá, embora o comportamento seja criticável, mas é consequência do domínio do mercado sobre essa organização. Então a gente pensava sempre em organizar desse jeito. Esse hospital que eu falei que a gente desejou desde o começo, eu queria fazer um distrito sanitário lá, então no fim é importante falar disso, tirando toda a gangue aí fora, para dizer o seguinte, o que orientava a nossa vontade era de organizar o distrito sanitário, tanto quando eu fui diretor em 92, nós fizemos as cinco unidades e contratamos. Nós tínhamos em torno de dois mil servidores, contratamos cerca de três mil servidores, fizemos as regiões de saúde, que a gente chamava de Distrito Sanitário.

            CP: Fala um pouquinho, conceitualmente, o que vocês entendiam como Distrito Sanitário aquela época.

            AR: É o que se prescreve pela OPAS, o que o livro do Eugênio Vilaça fala de distrito, as discussões com o Gastão, eles iam para lá, o Eugênio foi nosso consultor a meu convite, depois parece até que ele criou Curitiba, pela forma como ele gosta de contar as coisas, mas contribuiu.

            CP: O Eugênio esteve lá quando?

            AR: Nesse período, quando a gente estava fazendo essas mudanças.

            FA: Isso na sua segunda gestão como secretário?

            AR: E o laboratório LAPA. LAPA que chamava? O grupo de Campinas tinha o Edmilson lá, negro, médico sanitarista, parrudo, fortão. Depois ele teve uma doença, nem sei se depois ele foi vítima dessa doença, nunca mais vi ele. E tinha o laboratório, ele também foi colaborar conosco. E tem uma experiência...

            FA: Lembra o nome dele inteiro?

            AR: Não, mas eu vou procurar. Era um homem muito interessante, tem uma contribuição...

            FA: Eu ia te perguntar, assim, de onde vem as resistências assim, quando você bota isso em movimento onde é que estavam as grandes... Os anteparos?

            AR: Olha, eu vou falar da nossa resistência. Uma das vezes que a gente estava projetando o que fazer, esse documento aí, me ocorreu, com a liberdade que o urbanismo me permitiria, de fazer equipes sem médico para atenderem comunidades menores, mas não ali, aqui, acolá, [atender a] todo o território das cidades fazendo as bases da atenção primária e depois vindo acoplar o médico, e que fosse um médico generalista, um médico, como é que se chamava então, um médico generalista. Aquilo que o Guedes dava muita força em São Paulo. Medicina...

            FA: Medicina de Família?

            AR: Chamava medicina de família, né? E saúde comunitária... Não. Isso é um nome que a gente tem agora. Era...

            CP: Medicina integral?

            AR: Médico generalista que a gente falava, né? Lembra desse... É só a gente procurar que a gente acha isso tudo.

            FA: Não era medicina geral e comunitária?

            AR: Isso. Medicina geral e comunitária. Eu tinha esse entusiasmo com isso. Aí meus amigos inclusive de militância, veteranos a min, como Nizan, como Romeu que eu citei. “Porque que pobre não pode ter pediatra? Porque pobre não pode ter gineco obstetra?” Sabe? Então a primeira resistência era nossa, a gente era formado já numa escola flexneriana, já bem consolidada, e achava que tinha que ser assim, e que o posto médico comunitário, que a gente chamou assim, era também numa visão médicocêntrica, embora a gente não fosse hospitalocêntrico, a gente era médicocêntrico.

            FA: Essa era uma questão doutrinária ou era uma questão corporativa mesmo, do ponto de vista assim do mercado de trabalho?

            AR: Eu acho que tem uma mistura aí sabe, porque o médico no Paraná formava, já começava a trabalhar até antes de formar, não necessariamente, oficialmente, mas a gente sabe que os colegas nos últimos anos eram chamados para substituir colegas no interior, trabalhavam, ajudavam, não tinha essa dificuldade, a gente não estava procurando emprego para categoria, e a categoria tem até certo desdém por isso. Depois quando começou a surgir os concursos, grande parte dos colegas que a gente recrutou para trabalhar nessas unidades, chamavam as unidades, para sofrimento nosso, de postinho. “Vai trabalhar no postinho!” E lá no hospitalzinho? O que você está fazendo?” Eu brincava assim. “Ah! O postinho. E no seu hospitalzinho, como é que é?” Bom... Eu creio que essa era uma resistência importante. Não estou dizendo que eu queira substituir médico por enfermeiro. Mas se tivesse tido a coragem, lucidez e clareza, a gente não era burro, mas a gente mediu a correlação que tinha, mas era muito auto crítica, a gente mesmo tinha receio de ofender um princípio de equidade, talvez achando que pediatra todo dia era mais equitativo do que só se fosse um quadro.

            CP: Essa época vocês já tinham notícias sobre a experiência do Ceará com o Agente Comunitário?

            AR: Já, eu acompanhava o PIAS, tinha entusiasmo aí com essa turma, eu frequentava o IPEA, eu fiz curso de gestão no IPEA quando ainda o Eduardo fazia aquele centro de formação que o IPEA não tem mais, a gente era situado, com o radar ligado.

            FA: Isso era uma característica tua ou você acha que o campo tinha essa articulação?

            AR: É interessante, eu encontrei das duas coisas: Tinha colega como eu que gostava e se voltava para literatura. Agora, na minha turma, no ambiente da minha geração eu era o mais ligado nisso. Ligado também nisso foi o Romeu, como eu citei, foi o Nizan ele, era patologista, o Romeu clínico, o Rosinha como pediatra, o Leitão, mas eu acabei deles sendo o que mais permaneceu fazendo, não que eu tenha feito mais, ou melhor, que eles, mas eu segui essa...

            FA: Mas não vamos perder a linha dos anteparos.

            AR: A outra dificuldade era não poder profissionalizar, então as pessoas ficavam, as melhores inclusive, até certa altura, ficavam começando na profissão, família pequena, recém casado ou ainda solteiro e depois as carreiras oferecidas eram menos favoráveis, então isso também ia...

            CP: Tinha alta rotatividade, né?

            AR: Isso também era uma dificuldade. A outra dificuldade era a projeção da especialidade daqueles colegas que eu encontrei lá por sobre o serviço que faziam. Eu tinha um colega pediatra que trabalhava numa unidade das primeiras de Curitiba e que ele fazia o COA, o que era o COA? O Consultório de Orientação Alimentar. Quando eu propus que deixasse de atender só escolar e alguém da sua família a pedido, ele arrumou um argumento que era o seguinte. “Mas como é que eu faço quando começar a vir doentes e misturar com meus pacientezinhos do COA?” Eu falei: “Como você acha que ele vem, de helicóptero, voando, no caminho ele não encontra ninguém com doença nenhuma? No ônibus que ele vem não tem gente com tuberculose?” Então tinha argumentos cínicos, cretinos, desse tipo. Tinha um cirurgião vascular que era uma excelente pessoa, mas ele ia lá e... Sabe? E tinha uma outra coisa que as equipes eram cúmplices, e ainda hoje em muitos lugares as equipes reclamam do comportamento do médico, mas são cúmplices, porque sem o médico dentro não tem pressão no serviço, com o médico dentro, atendendo do jeito que é recomendável, a cada pessoa, e não rechaçando porque é a vigésima primeira consulta, não atendo mais que vinte, só dezesseis novos, quatro retornos e vice versa. Bom! Tudo vira estabelecido, mesmo as pessoas mais comprometidas acabavam fazendo aquela discussão entre consulta, demanda espontânea, aí a gente começou a discutir que essa racionalização não era... É como aplicar protocolo de Manchester entende? Se você é verde, e eu com isso? Se é verde é bom, resolva logo. Então ainda há, aqui em Brasília modificaram um pouco Manchester, por exemplo, mas eu acho que isso não resolve. Aqui o Luís Lobo, ele vai falar hoje de tarde. Vocês vão ficar aqui hoje? Tem que ir embora?

            FA: Vamos, a gente tem uma conversa lá com o pessoal do Paranaguá, mas o que que é?

            AR: O Luís Lobo vai falar entre Flexner e Dowson a meu pedido, do relatório Flexner ao informe Dowson, inaugurando um curso que a gente tá oferecendo de oito sessões e eu convidei ele para falar o primeiro. E o Luís Lobo veio do Rio, com toda história dele...

            FA: Luís Carlos Lobo?

            AR: É. Nossa! E ele tá super animado. É hoje às 14h aqui em cima, no auditório interno. E nós vamos gravar, mas se vocês quiserem participar estão convidados. A modernização do ensino em saúde no Paraná, apesar da tradição ser longa, lá do começo do século XX, a modernização é tardia, é década de 50, e aí todo mundo começou a ir para os Estados Unidos, a fazer o board volta de lá fazendo estatística, mas continua o mesmo jeitão medicocêntrico e isso era uma dificuldade também, mas há... O pessoal da gineco obstetrícia, da pediatria, aderiu muito, eu tive a cooperação de muita gente, mas havia uma certa resistência, eu vou dar um exemplo. A primeira vez que eu fui chamado a falar no hospital da onde eu tinha saído como residente no terceiro ano, pedi demissão no terceiro ano de residência em patologia para ser diretor de Curitiba, aí dois, três meses depois eu fui falar lá o que estava fazendo, e um dos professores era um senhor lá que a gente considerava muito, nefrologista com residência nos Estados Unidos, e ficava fazendo, provocando os residentes dele. Há uma altura ele diz assim, não me destratando na palavra, mas no conteúdo do que falou, sabe? “Como é que esse rapaz sai daqui da patologia vai organizar a saúde e vocês aí na clínica, o que vocês estão fazendo?” Como se organizar aquilo era um apanágio da clínica, que era o médico dele formado, que tinha que cuidar disso. Eu: “Pois é professor! Eu tenho interesse nisso, me dediquei, então...”.

E o professor mais conservador da patologia depois se tornou presidente da UNIMED e eu secretário, e ele me convidou um dia, eu fiz uma palestra na UNIMED, e ele me perguntou: “O que você acha do futuro da UNIMED?” De certo modo querendo comparar com o SUS, com o SUS desqualificando. E eu “Olha! Se continuar do jeito que vocês fazem, vai ser o SUS daqui a dez anos”. Por que? Porque um paradigma que se usa na rede do SUS e na rede da UNIMED é a mesma. Pedir mais exames e mandar para frente. E isso quebra qualquer sistema, é impossível ser compreensível com essa lógica, essa lógica geradora de insuficiências, porque as insuficiências são favoráveis a criar disputa, aí eu digo para eles uma coisa que eu aprendi. “Nós nos especializamos para nos afastar da demanda, não para servir a quem precisa”. Aqui mesmo tá havendo uma reforma que é importante, a gente apoia, eu até gravei aí para campanha eleitoral, favorável ao que tá sendo feito, mas é de índole médicocêntrica, substitui especialistas de outras coisas por especialistas em medicina de família e comunidade, mas é medicocêntrico igual, médico de família chama enfermeira de minha enfermeira, não é assim? Não que isso possa ser generalizado, é no sentido autocrítico mesmo, nós precisamos desmedicalizar a saúde, não jogar os médicos fora, mas tratar vis a vis com todos os profissionais. Por que só a presença do médico faz a saúde funcionar? Não funciona sem médico, não, precisa ter médico, mas não é só a presença do médico que faz a saúde funcionar.

            CP: Como é que vocês vivenciaram esse debate da APS seletiva e APS abrangente nesse contexto dos anos oitenta?

            AR: Olha, eu nunca gostei dessa perspectiva, porque é o seguinte, depois de Alma-Ata nunca outra, nunca mais vamos fazer uma conferência como aquela, todas as outras com o nome de promoção e tudo, em que valha, em que pese a contribuição que deram foram em busca de um desvio daquele comprometimento radical que Alma-Ata propunha. Agora vai ter outra aí ano que vem, ou tá acontecendo.

            CP: Vai ser essa semana agora.

            AR: O nicho econômico que se tornou o consumo de bens e serviço em saúde, e eu também costumo dizer, as pessoas dizem que a saúde vai mal, a saúde vai bem, as pessoas têm mais saúde hoje do que tinham antes, agora, o consumo de bens e serviços tá enguiçado porque com esse tipo de financiamento que estimula criar necessidades sem reparar as já constatadas e consumir, quanto será? Consumir talvez, quem sabe até a metade dos recursos do SUS são para sustentar a intercepção de um modelo flexneriano dentro de um modelo que quer ser universal e compreensivo. Se a gente talvez não tivesse que primeiro pagar os interesses do capital na saúde para depois atender da maneira inovadora que a gente luta por fazer, a gente já teria feito muito mais. Esse negócio dos planos se associarem em torno do Albert Einstein virem aí com a liderança do Claudio, pedir 50%. Uai? Eles sempre esnobaram o Estado, saíram, agora estão precisando de financiamento, querem pegar o financiamento que não é o que a gente precisa e ainda querem levar metade. Ué! O que será que tá acontecendo? É uma tentativa de afrontar e tomar a cidadela.

            FA: Avançar.

            AR: Avançar e quem sabe destruir a cidadela que propaga. Agora, essas reformas são de longo prazo. Para completar a resistência, tem uma resistência da população também. Aqui, por exemplo, que é uma reforma muito tardia, mas ainda bem que tá sendo feita, uma das dificuldades é que a interpretação da sociedade local, da população, é de que ela tá sendo prejudicada pela retirada da pediatra para receitar a puericultura. “Não! Lá não tem pediatra então o outro também não atende”. E essas dificuldades estão impregnadas não só no espírito corporativo dos trabalhadores, mas também na, de todas as categorias, e principalmente a nossa, de médicos, mas também na sociedade. E aqui em Brasília é um exemplo. Eu digo que Brasília é um museu vivo do INAMPS. Você quer saber como é que seria sem o SUS? Projete o que acontece em Brasília para o país inteiro. Quando você vai ao nordeste onde não tinha, como em Curitiba onde não tinha, embora seja no sul e bem financiada, as evidências de que o SUS é uma mudança de qualidade extremamente favorável é insofismável. Muito consistente. Você vê o que o Ceará conseguiu.

            FA: Já aqui.

            AR: Aqui já dizem que tem que voltar ao que foi antes. E o que aconteceu aqui? O que aconteceu aqui, é que o Juscelino, ainda mais sendo médico, ele ofereceu tudo de bom e do melhor para transportar a medicina já flexneriana do Rio para cá. Os símbolos que os médicos gostavam de usar é quando começou a indústria automobilística com o salário de um, dois, três meses, eles compravam um carro.

            FA: Poxa! Mas e a Universidade de Brasília com o Lobo, com o Ferreira? Sobradinho, Planaltina.

            AR: Pois é, mas deu no que deu né? Saiu de Sobradinho, veio para cá, pegou o Hospital Presidente Médici, eu fui diretor desse hospital agora mais recentemente. A força do mercado é impressionante, é cruel. Como diz o Lobo mesmo, muita gente que veio, é que queria ser o que não dava para ser no Rio, o ortopedista da vez, porque o chefão lá do serviço onde ele fez ainda ia viver muito tempo e mandar muito. Não quero falar mal de um ortopedista, tem o Lobo que é uma pessoa maravilhosa, excelente, tudo, mas o próprio Lobo disse que ele veio nesse entusiasmo, eu vou ser o ortopedista em Brasília, e chegou aqui: “Você vai ser médico geral. Você vai ensinar o que for o desafio da vez”. Aí para mudar para cá, eu até escrevi um pouco sobre isso, no memorial eu passo rapidamente. O argumento era ficar mais aqui no centro, mas é tudo por quê? Porque os médicos querem ficar na escola, mais para dizer que é professor da escola do que para permanecer lá. Tem um colega meu que se doutorou no Paraná, que é cirurgião, que é um excelente técnico, foi diretor de uma escola de medicina privada que tem aqui, depois fez concurso e entrou aqui no hospital universitário onde eu fui diretor na gestão retrasada da reitoria com o Zé Geraldo. E aí ele diz um dia assim, com aquele jalecão dele de cirurgião, andando: “Isso aqui é um hospital de ensino ou de serviço?” Eu: “E que tal Dr. Se for as duas coisas?” Quer dizer, nós abrimos a atenção à saúde da população, ainda que como indigente, antes de criar o SUS. Se o SUS fosse criado antes das escolas, era melhor que não tivesse hospitais universitários isolados da rede. Vai ensinar na rede, ué?! Onde as coisas acontecem.

Então eu abri o pronto atendimento aqui desse hospital, fizemos o contrato da Ebserh  e a Ebserh não consegue contratar plantonista em Brasília porque o salário que eles querem, o que eles querem de remuneração, não precisa ter salário, mas aqui é só por salário, tem que ser padronizado pro Brasil inteiro e daí eles saem do consenso e resolvia as coisas que a gente tinha resolvido com pagamento por RPA. Claro que não era uma solução estruturante, pagar profissional que vem lá, comprometer a vida dele, décadas e tal, com RPA, mas nós encontramos trabalhadores no hospital universitário aqui e em vários outros do Brasil, milhares deles, com RPA há dez, vinte anos. Então a escola é um lugar de resistência. Interessante porque ela é de propagação da colonização médica, da indústria e do cientificismo pesquisatório dos nossos colegas. Tem gente que pesquisa umas coisas muito importantes, mas tem um pessoal que tá fazendo só auto reprodução. E nessa perspectiva a gente sempre se decepciona com o engajamento dos hospitais de ensino. Embora eu tenha devolvido a maternidade de Vitor do Amaral, da Secretaria de Saúde para a Universidade administrar lá no Paraná, tinha uma mediação aí que era da Fundação de Desenvolvimento da Cultura e da Ciência que é a FUNPARA, a fundação que auxiliava a universidade na administração, e ela que faz a administração daquele hospital que falei para vocês, que transformou no Hospital do Trabalhador. Então tem a resistência da escola médica, das escolas de saúde. Eu vi programas de residência recém começando, quando eu fui diretor aqui, que o pessoal tirava o residente da prática, o residente dos programas multiprofissionais, para ir assistir aula. Mas será que a aula não devia ser onde ele estava praticando? Não estou condenado esses programas, deles continuarem, eu apoiei, abri também como diretor da Secretaria de Estado aqui, o último cargo que eu exerci eu fui diretor executivo da fundação mantenedora da escola que o Murat implantou, que o Murat Belaciano implantou, o Murat é egresso lá da UERJ. E essa escola foi uma experiência muito interessante, eu trabalhei seis anos lá, cinco no tempo do Murat e agora um ano no primeiro ano desse governo que termina agora, e lá nós implantamos só agora as residências multiprofissionais e tá sendo muito interessante, inclusive eu propus a implantação de um programa de residência em gestão e hoje nós estamos na segunda turma do programa de residência em gestão.

            FA: Eu queria que você avançasse um pouco na sua crítica às décadas seguintes à Alma-Ata a partir da perspectiva da promoção. Você começou a desenvolver essa ideia.

            AR: Eu desenvolvi isso no mestrado, talvez eu possa compartilhar com vocês. É uma dissertação singela, simples, eu fiz tanto o memorial aqui, como a dissertação de mestrado em Bioética aqui na UNB, trabalhando, aí dessa vez eu era secretário de saúde de São José dos Pinhais, tive uma recaída e fui lá para organizar uma escola lá como a escola que eu tinha aprendido aqui durante o período que trabalhei na equipe lá do Murat, dessa chamada fundação, mas como que era a pergunta mesmo?

            FA: A relação entre Alma-Ata e a promoção da saúde, por que a promoção de saúde não dá conta de ser uma herdeira, digamos assim, legítima, digamos, de Alma-Ata.

            AR: É porque ela omitiu, vem se omitindo sucessivamente a se equacionar a sustentabilidade de planejamento estratégico mesmo, de viabilização do recurso indispensável para que a coisa aconteça. E também, acho que quando vai para esse lado, contribui no sentido de avançar na compreensão da determinação e dos determinantes, tem um ganho nisso, mas deixou a equação desenvolvimentista de Mário Magalhães da Silveira, falando para o Brasil, mas para o mundo, mas deixou de lado isso. Lá longe ainda procurava mescla dessas duas coisas, e o Canadá se esforça por isso, mas eles que frequentam lá disse que os médicos canadenses trabalham seis meses no Canadá e seis meses nos Estados Unidos, eles gastam tudo que podem gastar no Canadá aqui, que controla ferreamente os recursos para poder usar melhor, e daí eles começam pôr aquele filme lá do...

            FA: Michael Moore?

            AR: Não, antes do Sicko, aquele dos selvagens, como que é?

            FA: Ah não! Esse não é do Michael Moore não. É outro. Invasões Bárbaras.

            AR: Invasões Bárbaras. Invasões Bárbaras é o retrato disso, vamos operar em Maryland, vamos operar na John Hopkins, não vamos fazer aqui. É interessante, parece que essa condição de ser médico tem um germe que é universal, quer dizer, e diante de uma queixa, como produzir uma sucessão de atos e promover uma plêiade de necessidades discutíveis e uma sucessão de atos e procedimentos remuneráveis. Isso é tão forte que no SUS ainda se paga por procedimento. Então pagar por procedimento é indutor inercial da permanência do dominante, e é tanto assim que na cabeça da população quando você fala em saúde é se teve acesso àquele procedimento ou não. Eu tenho certeza e acho que vocês também, que a saúde do Brasil hoje é melhor do que era há trinta anos atrás, se você comparar esses indicadores todos, e tem coisa que não se tinha consciência e hoje tem, isso faz diferença, mas essa versão catastrófica de que tudo vai se perder, é obvio que é favorável à hegemonização ainda maior do mercado.

            FA: Deixa eu colocar uma questão que eu via assim com um certo, não sei se um certo paradoxo, mas o senhor fez um comentário que existem pessoas que com muita boa vontade, com melhor espírito, propunham proposições muito radicais, mas que acabavam não entregando, e você diz que de certa maneira você trabalhava dentro dos limites do possível e procurando ser efetivo nessas coisas. Você não foi acusado de fazer uma atenção seletiva ao assumir essa posição? Recuperando um pouco esse debate entre seletividade e integralidade.

            AR: Olha! A única acusação que eu ouvi como gestor de saúde, fora os detratores que arrumam qualquer pretexto, nem me interessa ficar arrolando isso, é de que eu tinha fechado a escola de saúde, porque eu tirei a escola de saúde de uma praça, a Ouvidor Pardinho em Curitiba, e botei no prédio da secretaria. Isso foi uma coisa que eu fiz, ontem eu estava comentando isso. Você reparou que quando a gente fundiu tudo e começou o SUDS e depois SUS, o INAMPS entrou nas secretarias e expulsou a vigilância sanitária, escola, a vigilância epidemiológica e foram para os predinhos e às vezes inclusive da própria rede social. Quando eu fui secretário eu trouxe toda a saúde pública de volta para o prédio principal da secretaria. Aí mandou os outros embora? Não, todo mundo tem que se acomodar aqui, a gente tem que ficar todos juntos aqui. Então claro, eu estou contando isso mais como brincadeira, foi o Chico lá de BH que me encontrou um dia. “É! Eu estava lendo um estudo sobre a escola e ele disse que você fechou a escola”. Eu disse, não, não fechei a escola, eu botei a escola...

            FA: Chico

            AR: Não, não o Chico Campos que tá aqui não.

            FA: Chico Gordo?

            AR: Não é o Chico Gordo. Eu não lembro, porque eu gravei e esqueci para fazer a diferença quando a gente quer se reportar aos Chicos de Minas. Não é o Chicão de Patos de Minas, não é Chico Campos. O Chico Campos, aliás, eu li a tese de doutorado dele e ele tem reconhecimento por isso, comparando as unidades de saúde da Fundação SESP com outras unidades, quando eu trabalhei como estagiário lá com o Luciano na FUNDAF. Eu posso ter feito não por escolha seletiva num sentido, eu vou focar aqui, por exemplo, logo que eu entrei na secretaria de saúde como sendo patologista e tendo a experiência que eu tinha a respeito das tentativas de fazer o papanicolau universalizar na cidade de Curitiba, e que não dava para contar com o jeito que a gente propunha, que patologista diz que vai fazer isso, mas tem que ter citotécnico, daí ele faz um curso para citotécnico, começa com dezenas mas termina com meia dúzia, e daí quando termina, aquele formado passa no vestibular, porque é uma pessoa de classe média, e deixa de ser citotécnico, e daí o patologista continua dizendo que não dá para fazer. Agora, no laboratório dele ele faz a pau, se ninguém puder fazer ele faz, e se tiver alguém por perto que queira aprender, ele ensina e faz a triagem e ele se responsabiliza. Então eu fiz uma proposta assim de universalizar o papanicolau no estado do Paraná. Até hoje funciona assim, inclusive com reserva de exame para trabalhadora rural, por reivindicação do movimento de mulheres trabalhadoras rurais, porque a trabalhadora rural quando chega na unidade de saúde convencional, não tem nada para ela, porque ela primeiro tem que tratar dos filhos, do marido, dos animais, fazer tudo que ela tem que fazer para depois ela ir para cidade cuidar do problema dela, ou na vila mais perto, então a gente fez uma empreitada muito grande, e era o nascimento do PAISM, o Programa Assistência Integral à Saúde da Mulher, que eu entendo e defendo conceitualmente sem dúvida nenhuma. Qual é a maior expressão do país? É a mulher ser atendida como sujeito, e não como uma atriz. E a discussão começou de um jeito que eu falei que a gente ia fazer o que dava para fazer, e aí eu fui bastante criticado.

A Ligia Mendonça, a Ligia Cardieri, por exemplo, que é minha conterrânea lá, socióloga, com a militância política forte, tudo, foi secretária municipal mais de uma vez, não na capital, mas na região lá, a Ligia foi uma das pessoas que foi uma contendora forte, e tinha sido minha assessora quando eu era superintendente da saúde na equipe do Cordoni. Mas isso não permaneceu como um não diálogo, então perguntado, recebendo uma comissão de mulheres a respeito, eu disse a correlação que eu tinha era aquela e o que eu podia fazer com aqueles recursos e compreendia que o que elas estavam dizendo e que a gente ia buscar realizar plenamente a proposta. Aqui hoje a gente dá um curso que se chama Equidade e Políticas Públicas para a Saúde no Território, um nome bem grande para descrever o que a gente faz, a gente pega todas essas políticas nacionais, uma aula para cada uma delas, com leitura prévia, então o pessoal lê, chega aqui faz uma prova, a gente convida uma pessoa para discutir, e hoje mais do que nunca  eu valorizo que foi muito importante que essas políticas estão escritas, parece que a gente não vai ter mais protagonismo.

            FA: Dá vontade até de cursar né?

            AR: E agora a gente tá fazendo essa, para suceder essas, a gente tá fazendo essa para discutir, porque a gente fala muito de Flexner, critica muito o modelo e sabe muito pouco da proposta de Dawson, e eu me entusiasmei de fazer isso porque quando você lê Dawson, mesmo na Inglaterra de 1920, onde a mulher paria em casa, a atenção primária para Dawson tem um centro obstétrico no hospital. Por que? Porque pode precisar. E aqui a gente chapou esse discurso, que a APS resolve 80 % dos casos, até o Ricardo Barros, o último ministro nosso aí, paranaense, infelizmente, esses caras pegam esse discurso fácil, mas como é que resolve 80% sem exame, sem retaguarda, sem logística, receitando, sintomático, pedindo uma infinidade de exames de finalidade discutível e mandando pro especialista? Não tem jeito, não é possível. Então eu tenho tranquilidade em relação a isso porque eu não compartilho dessa seletividade, mas ela acontece forçosamente em várias situações. Você tem que cuidar da pessoa, né?

Em Sorocaba, o último lugar que eu fui secretário, fechamos três manicômios lá, deixamos o quarto com data marcada para fechar. Uma pessoa, colega pediatra formada na paulista, muito dedicada, mas com aquele jeito da formação pediatra, eu sou o médico geral das crianças e não abro mão, etc, mas comprometida, séria, determinada, colaborou muito com o tempo que eu fiquei lá. Ela [disse] “Mas o que você veio fazer aqui com essa história toda?” “Ah! Eu vim para tentar valorizar o potencial de Sorocaba, que acho que Sorocaba tem um grande potencial e não corresponde ao que é reconhecido de Sorocaba fora daqui. O que a gente sabe é que tem muito manicômio”. E eu sou de perto ali, nascido ali perto, criado ali perto. Felizmente não fui estudar. E aí ela disse: “Então! O que você tá procurando?” Eu disse para ela: “Eu estou procurando pesso atras”. Caçoando, pediatras, obstetras não, mas pediatras, geriatras, essa coisa do “atra, atra”, desse sufixo atra quer dizer o médico, tanto que em alemão é arzt, o médico é arzt, geriatria para médico, e se você for enfermeiro especializado em idoso é gerontologia, não pode, sabe essas, eu estou procurando pessoa atra, gente que atenda as pessoas.

Então, para mim o paradigma é atender a pessoa, então dessa perspectiva eu não acredito que a gente tenha chance. Eu acredito que essa não é o fundamento, a pedra fundamental, não é o alicerce de uma APS seletiva, eu acho melhor usando em inglês, uma APS comprehensive, nesse sentido, ou que o Gastão chama de clínica ampliada. Acho que o [Emerson] Merhy em que pese as diferenças e o afastamento dele, aborda também numa perspectiva de você assumir a atenção à pessoa na sua inserção no território, nas suas relações sociais, e nos seus eventuais padecimentos. Ainda nós estamos atrás do balcão, generalizando o que acontece no Brasil hoje ainda, apesar de todas as conquistas quando você junta tudo, nós estamos atrás do balcão esperando que a pessoa tenha um sintoma para ser beneficiada pelo SUS. O SUS é muito bom, mas você precisa ficar doente? Agora, SUS strictu sensu é a reorganização do sistema na intenção de consumo de bens e serviços. Expandir o SUS para um conceito que nós estamos abordando aqui agora é uma tarefa para fazer, muito grande e que é muito ameaçada, sempre muito ameaçada.

            CP: Eu queria recuperar um ponto que é o debate sobre distritalização. Como é que ele, quer dizer, menos o debate e mais a iniciativa concreta, como é que o senhor enfrentou essa questão num contexto, enfim, de municipalização, como é que foi possível pensar, mais do que pensar, implantar, uma noção de autoridade sanitária, por exemplo, numa organização inclusive sanitária, que na escala que a gente tem é inédita, do ponto de vista da sua radical descentralização, que tensões você enfrentou lá, como é que essa equação se deu na dinâmica, digamos assim, do pacto federativo em saúde, no Paraná?

            FA: Estou lembrando aqui das experiências das AIS, do SUDS.

            AR: Eu creio que na gestão do José Richard com o Cordoni, a gente fez um trabalho importante de preparação do terreno, as AS foram levadas muito a sério, e a gente discutiu isso lá, lembro que o Hotel Caravelle foi uma reunião histórica, estávamos lá, discutindo se a gente entrava nas AS ou não entrava e lá naquela reunião saiu uma forte indicação de fazer daquele modo, e acho que essa estratégia foi muito feliz. A intermediária das AS para o SUS, o SUDS, costuma ter uma versão mais favorável como de fato foi, até no meu memorial eu também digo, que todo o esforço foi capitalizado pelos conservadores no Paraná e em vários lugares do Brasil, aliás, a gestão do SUS é assim que nem meia listrada, é azul e vermelho, azul e vermelho, azul e vermelho, a gente se intercala. No Paraná a previdência do Estado era dada para o perdedor, que podia ser azul ou vermelho, o medicocêntrico do esquema econômico hegemônico do de saúde ou é o cara com base no movimento social e com interesse de fazer atenção primária inclusiva. O Cordoni era um representante de toda a reflexão que se tinha acumulado sobre como mudar o sistema. Que pese que ele não tinha sido gestor antes, ele tinha sido diretor de saúde de Curitiba ou o Márcio que se elegeu deputado tinha sido secretário municipal de saúde de Londrina, ele foi muito aberto a trazer todas as contribuições e levou muito a sério a proposta das ações integradas, e agente andou pelo Paraná inteiro, e esse trabalho também culminava também numa relação com a sociedade local e regional, que eram os encontros de saúde, e nos encontros de saúde, quando o pessoal percebeu a força do que a gente estava fazendo, quando se fala que na oitava [conferência] veio delegações, uma boa parte daquelas delegações, no nosso caso, foram tiradas por forças da nossa iniciativa, da iniciativa dos tantos encontros que a gente fez lá. Depois veio o .... que era um cara, médico do interior, filiado ao Álvaro Dias do MDB que venceu o Nei Braga e tudo, mas que agora fez, vocês viram o protagonismo dele como candidato ridículo que foi.

Mas então, o Álvaro pegou um médico lá do interior, que era um médico que fazia de tudo e estava muito interessado, e foi superintendente do INAMPS no período que o Cordoni foi secretário, e daí o Scalco sempre esteve dentro do PMDB e depois PSDB. Essa vinculação, discussão com a origem do trabalho que ele fazia como farmacêutico no interior do Paraná e depois veio para a política, o Scalco é farmacêutico né? E ele foi muito importante na nomeação do Cordoni, e daí ele queria continuar com esse espaço junto ao governo que ele apoiou que era a eleição do Álvaro, e aí o Álvaro fez uma coisa que neutralizou, paralisou Scalco, convidou o Scalco para ser secretário, e o Scalco era constituinte então, eleito constituinte, e deu uma grande contribuição na constituinte junto com o Mário Covas e tantos outros, mas como que ele ia ficar lá como secretário de estado? Aí o Álvaro se sentiu livre para nomear o Delcino, uma pessoa com quem a gente se relacionava bem e tudo, mas o Delcino foi super financiado pelo SUDS e fez a campanha dele e veio a ser deputado federal. Como no passado o Oscar Alves também fez a sua campanha e veio a ser deputado federal quando era secretário da saúde lá no estado do Paraná. E é interessante que o Oscar fez também uma modernização, mas uma modernização conservadora, transformou a Fundação Hospitalar, que depois foi Fundação de Saúde que depois eu fui superintendente dela. Estou lembrando disso porque as coisas podem ser para avançar ou para...

            CP: Retroagir.

            AR: As modernizações podem ser “avançadoras” ou retrógradas, até os dicionários de política falam de modernizações retrógradas, e elas são renovadoras nem sempre, o cara moderniza para não fazer o que era importante fazer mesmo e fica aquela.

            FA: Mas exatamente como que essa implementação do SUDS foi no viés conservador, em que termos?

            AR: Do SUDS, né? No sentido de superfinanciar secretários que saíram distribuindo dinheiro para medicina hegemônica, fazendo o que sempre foi feito, como o superintendente do INAMPS fazia, e foi assim durante o período de SUDS no Paraná, alguma coisa foi significativa, eu acho que não foi errado do ponto de vista da tática de converter Sarney a chegar no SUS, mas em geral os ganhos não são tão importantes, no Paraná não foram. Foi uma contenção, e o cara financiou o modelo médico hospitalocêntrico convencional mesmo. Um discurso assim de cosmético, de novidade, nós com muito menos dinheiro fizemos muito mais na gestão do José Richa. Agora, teria outro jeito? Talvez. Mas se a gente institucionalizasse o sistema... Isso é uma coisa que até hoje eu reflito se pode ser feito ou se deveria ter sido feito, que é um sistema federado, obrigando mais o Estado a ser parte.

Por exemplo, o Estado de São Paulo gasta muito em saúde, mas não contribui para construção do SUS. Como dizia o Artur, eu fui secretário em Sorocaba quando o Artur estava em São Bernardo. São Paulo disputa com os municípios em vez de acrescentar com os municípios organizarem os sistemas locais, assentados e sustentáveis. Criam aquelas clínicas cheias de máquinas maravilhosas, dentro de uma sociedade colonizada, com toda essa ideia de consumo de bens e serviços da saúde e muito bem, obrigado. Basta ver o que falava o Alckmin, agora o que queria fazer exame Brasil inteiro. E aliás esse risco existe até no segundo governo Dilma, propostas de mais especialistas, sabe? É uma modernização conservadora que consagra essa ideia flexneriana da divisão da prática em tantas especialidades, e depois o Flexner é tão culpado disso quanto a indústria e a criação de necessidades discutíveis. Mas enfim, a gente transitou desse modo, foi um exemplo de descentralização, mas a coisa mais importante da descentralização que aconteceu foi aquele decreto singelo do Itamar Franco.

            FA: Qual exatamente?

            AR: De agosto de 94 que era o fundo a fundo. Eu falo disso, eu fui naquela ocasião, eu era o presidente do CONASEMS, e eu fui lá negociar nos bastidores com o Dr. Saulo, com a chefia da assessoria dele e tal para a gente chegar no Itamar para ele compreender quanto era importante fazer aquele decreto, e de fato saiu e já era a gestão do Henrique Santillo, o Jamil tinha se afastado e o Santillo tinha assumido. Foi muito importante aquilo. Mas hoje eu creio que para consolidar o sistema...

            FA: Como é que é essa ideia de federação que você estava desenvolvendo aí?

            AR: Não foi feita, que seria você combinar quanto custa a saúde aqui, tanto da forma compreensiva, como da operação do sistema de reparação do que já está acontecendo, ou da evitação como prevenção específica. Quanto custa isso? Tanto. Quanto os municípios podem dar, e quanto que os estados darão? E fazer. Interessante que o decreto do Itamar fez a transferência de um fundo para outro fundo, mas não criou um fundo único da saúde. Interessante isso, né?

Então, hoje eu modifiquei um pouco essa reflexão para dizer o seguinte. Nos lugares onde os sistemas universais funcionam bem como na Inglaterra, apesar da tradição da Inglaterra de Estado único, a solidez, a consistência das regiões de saúde, lá na Inglaterra, é muito grande, a autoridade do cara é inabalável. Para ele cair ele tem que fazer coisa errada à sério. Aqui no Brasil muda como troca roupa de cama. Cada vez que a gente tem alguma dificuldade o cara se estressa e sai da função, e qualquer um pode exercer, então, é aquilo que o Eduardo Jorge falava como candidato a vice da Marina. Eu creio que a gente pode renovar e tendo uma correlação política favorável nacionalmente, reinstalar, revisar toda a organização do SUS do mais remoto para o mais central. Geralmente a gente reforma, por exemplo, agora aqui tá havendo uma reforma do hospital de base. Ela é importante, significativa, mas pegar esse grande desafio de primeira, e lá da onde vem a pessoa para ser atendida, continua a precariedade que manda para o hospital de base, o que não precisaria mandar, isso é um grande desafio, mas nesse sentido o DF está fazendo uma reforma aí na sua atenção primária, mas dentro dessa perspectiva do federativo é que o orçamento da saúde fosse, que a gestão fosse compartilhada tripartitemente pelo menos Estado por Estado, ou o ministro diante de qualquer dificuldade da saúde ele vai dizer que o ministério fez a sua parte, seja quem for o ministro, e acho que a gente quando conquistou o começo do SUS, a gente estava tão enojado do uso do aparelhamento do INAMPS, que esqueceu que aquela autarquia podia ser, não estou dizendo que ela devia continuar como fazia, mas você lembra quando o Hésio Cordeiro foi diretor do INAMPS, quanta coisa boa ele fez lá. Dizer que aquela autarquia poderia ser, poderia ser...

            FA: Um ente estruturante?

            AR: Um ente estruturante.

            FA: De certa autoridade sanitária única, com mais estabilidade burocrática.

            AR: Isso, e que daí fosse compartilhada. As divisões de medicina social do INAMPS eram as regiões de saúde que o Eduardo fala hoje, e nessa localidade, que é maior que o município em geral, raramente é menor que um município, são vários municípios, você colocar ali servidores do estado, do município e da união, e escolher entre eles por critérios de habilitação, quem vai ser o diretor, podendo ser reconduzido ou não, e só afastado daquela função se cometer infrações tais.

            FA: Com mandato?

            AR: Certo? Com mandato. Podendo ou não ser reconduzido.

            FA: Uma espécie de agência.

            AR: Exatamente. E podendo contratar serviços e tendo um orçamento, mas esse orçamento com a convergência dos recursos do Estado. Então, o Estado não entra no SUS, mas não adianta fazer a loucura que faz como São Paulo faz, um sistema super rico e sabe que ele não é absolutamente universal, não é, tá cheio de fila em São Paulo inteiro também. Porque essa coisa da fila não é só porque falha a logística, a administração, é episteme mesmo, é a questão conceitual. Eu não sou responsável por você, se você tem um problema no braço direito e eu entendo de braço esquerdo, mando você para frente, falando assim uma coisa bem caricata. Por que? Porque lá tem um cara que é o suprassumo disso. Por que os ortopedistas se especializam numa articulação só? Porque a desgraça é tamanha, o volume é tão grande, que ele pode fazer o taylorismo da articulação dele, uma atrás da outra, tempos modernos, ele vai consertando. Poxa! A clínica ortopédica não foi criada para isso, ela foi criada para resolver questões de desenvolvimento, por isso que chama ortopedia, consertar as crianças. Hoje você conseguir um atendimento ortopédico clínico é dificílimo, porque consertar a fechadura e dobradiça é muito mais fácil, e dá dinheiro. Talvez eu esteja me escapando um pouco, mas o que eu quero dizer é que lá naquela unidade territorial, abrangente e compartilhada, você pode ter uma ortopedia clínica, você pode ter uma ortopedia que trata do trauma e que resolve lá e não precisa mandar só para o operador de joelho, só para o operador de clavícula.

            CP: Agora o Senhor está fazendo uma avaliação...

            AR: Você né? Eu estou de cabelo branco, mas não sou muito mais velho que você, é gestão que faz isso. Não é Fernando?

            FA: É isso aí.

            CP: Vou chegar lá. Está fazendo uma avaliação em retrospectiva, enfim, e colocando em cheque algumas noções que de alguma maneira se calcificaram na maneira como a agente compreende o sistema de saúde. Eu estou preocupado em capturar também, naquele contexto, e eu estou chamando naquele contexto os anos oitenta e anos noventa, tentar se despir dessa reflexão que é muito importante, mas ela é mais contemporânea, é uma reflexão que está se dando nesse momento. Como esse debate estava colocado àquela época? Aí é um exercício de memória.

            AR: Daí eu acho que é melhor eu pensar o que eu falava como presidente do CONASEMS e depois como presidente do CONASS. Eu participei com o Eduardo Levcovitz e com a Neide Glória, da equipe inicial de redação da NOB 96, que eu tenho uma brincadeira no memorial que nós três fomos professores de química e cálculo estequiométrico no cursinho, eu, o Eduardo e a Neide. Nem sabendo calcular milequivalente como a gente sabia de cabeça, a gente não conseguiu resolver essa questão. Lá a gente formulou e foi muito bom essa chamada que você fez, porque ao mesmo tempo que vocês me pedem a memória, vocês me estimulam e eu trato vocês como meus interlocutores, e eu gosto de provocar isso e externar minhas caraminholas aqui. Aquela ocasião a gente fez, dia desses nós estava conversando sobre isso, uma proposta de plena do básico e plena do sistema. Contribuiu, mas se exauriu rapidamente. E eu fiz parte da crítica que deu condição do Renilson liderar aquela proposta da NOA. A NOA [Norma Operacional de Assistência à Saúde] é uma redução do sistema à distribuição e acesso à bens e serviços, mas ela implementada, se houvesse apoio e financiamento, ajudaria a resolver essa questão que se cronifica da não solução de melhor eficiência, efetividade e eficácia do sistema, porque nós ainda estamos em transição, né? A gente tem um sistema conceitualmente generoso, comprehensive, eu gosto dessa palavra inglesa que diz isso melhor do que compreensivo, mas usando o compreensivo como os ingleses falam, e cujo refil ainda é flexneriano, né?

O refil do SUS foi feito sem uma reciclagem de nada, a não ser por adesão dos novos, que são uma fração, novos que eu digo, profissionais, novos gestores, que não são a maioria. Você pega gestor do SUS hoje, ele pensa que é ser esse negócio mesmo que o Mauro tá fazendo aí, negociar com o Ricardo, com quem quer que seja, para melhorar a condição de sustentação imediata do governo que ele tá servindo. Em que grau eles estão mudando isso? Muito, pouco, não necessariamente está mudando muito. Tanto é assim que dá para o Eugênio Vilaça ficar fazendo laboratório por aí. Porra! Laboratório financiado pelo CONASS Eu seu que não é o Eugênio que vai convencer o CONASS. Mas o CONASS, eu mesmo fui presidente do CONASS, não consegui isso, o CONASS tem que fazer os Estados entrarem na atenção primária mesmo, de fato, não só fazendo ensaio, sabe? Então isso é sintoma. Então nós fizemos essa proposta da NOB 96.

            FA: E ensaio você tá mencionando experiências pilotos...

            AR: É. Essas coisas. Eu vou lá na meio da floresta de problemas e faço uma clareira, na clareira funciona que é uma beleza, eu quero ver funcionar na trivialidade da vida, todo dia, a gente tem que fazer propostas assim, se não fizer propostas assim, eu até alimento o entusiasmo, é bom, mantém os paradigmas, mas inclusive eu artificializo as propostas. Quando você vai entrando nos detalhes das propostas de organizar a atenção primária que o CONASS está publicando insistentemente e dando cursos, é uma idealização de coisas que inclusive retifica, conserta e arruma o hegemônico. Tem especialidade de tudo, tem agenda, administração da clínica, administração disso, administração daquilo, daquilo, daquilo. Será que não é melhor fazer, em vez de fazer uma coisa assim, fazer horizontal e dizer assim: “Seja inteiramente gestor disso aqui”. Entendeu? Chega ao ponto de achar que o modelo Flexner é irrecorrível, que não tem saída. Não é verdade, o Lobo não tem essa expectativa, a fala dele é muito lúcida sobre outra possibilidade. Ele diz que Flexner copiou a Alemanha, o que se fazia de melhor na Alemanha na pesquisa médica, mas isso não serve para organizar a assistência.

Então voltando, por que será que a gente fez aquilo? Bom! Não é mea culpa, porque a correlação de forças não era nada favorável. Tomara a gente conseguir aquilo, para dar alguma condição de plena. Eu concordei com isso. O José Carlos Seixas era o Secretário Executivo, então chamava Secretário Geral, já chamava Secretário Executivo. É uma pessoa com uma abertura, e a gente fez o melhor que a gente imaginou. Mas rapidamente, daí eu como presidente do CONASS percebi isso já como Secretário de Estado, quando o cara era pleno do básico, ele não tinha dinheiro ex-ante só tinha dinheiro no território dele depois, então ele provocava a despesa. O único jeito do município que era o pleno do básico ganhar alguma coisa era se ele gastasse, enquanto que a gestão plena, o jeito dele ter dinheiro era receber ex-ante e poupar. E aí nós promovemos uma crueldade, que é o seguinte, município pobre concorda que você coloque o dinheiro no orçamento dele, mas depois para você usufruir, ele dificultava de todos os jeitos. Eu vi municípios pobres do Paraná reformaram toda a sua rede do seu município com saldo economizado dos recursos que ele recebia por PPI, inclusive, não só por PPI, mas por PPI também. Então tem o mérito dele ter economizado, mas para reforçar o modelo de atenção primária da cidade dele, do prefeito dele, inaugurando para eles, e não para a região. Ele poderia até fazer isso, mas tinha que fazer alguma coisa para região e não fazia.

 E outra coisa, por exemplo, tratar câncer em cidade pobre, que tinha tratamento, o sujeito só entrava com diagnóstico anatômico patológico. Não é uma crueldade fazer isso sendo que você recebeu a PPI para atender? Você entendeu o que nós fizemos? Eu percebi logo isso e comecei a insistir que não dava, tinha que criar regiões mais amplas, daí que veio aquela coisa das regiões, e até hoje eu penso, por que as regiões não progridem? Porque a indução ao consumo de bens e serviços de saúde é feito principalmente pelos laboratórios, mas acima de tudo pelos médicos. E qual é o espaço livre do médico ser médico hoje, ganhar bastante dinheiro sem problema? É na sua especialidade, no seu ambulatório, no seu consultório. Então por que eu vou organizar, fazer as regiões, eu vou ganhar dinheiro da onde? Isso é muito forte. Criamos consórcios no Paraná, o Estado que tem mais consórcios. Quando eu cheguei nos consórcios, eu não estou dizendo que eles roubassem, que eles estivessem privados, mas agiam como se privados fossem. A Vânia, uma liderança, conterrânea nossa, diretora do consórcio de Londrina, fez de tudo que ela foi competente para fazer, para dissuadir a tendência que nós estávamos trabalhando para Assembleia Legislativa aprovar a obrigação do consórcio prestar contas como público. Ela queria que prestasse contas como privado. A vida entregue para fazer políticas de saúde e era diretora do consórcio de Londrina, o maior consórcio do interior do Paraná. Eu lutei bravamente contra isso e não passou. Por que? Como a gente paga por procedimento, o que acontecia com o consórcio? Ele era criado para resolver os problemas acumulados, depois que resolviam os problemas acumulados, sabe o que eles faziam? Começavam a escolher coisas na tabela que dava, que juntava, entendeu? Então, a força indutora do mercado é um negócio tão poderoso, tão forte, daí eu criei a comissão de controle, não chamava controle...

            FA: Isso estava no limite do crime, né?

            AR: É. Beirando ali. Agora, faz de forma a que não se possa caracterizar. Teve um consórcio que eu intervi, até a denúncia era do Rosinha, e o Rosinha talvez pensasse que eu não levasse até as últimas consequências, e levei, processei todo mundo lá. Eu era secretário e o Rosinha era deputado, eu acho que já era deputado federal. É, porque quando eu entrei na secretaria, elegeu-se o Jaime Lerner e ele elegeu-se deputado federal, veio para Brasília, e ele deixou a lei, uma lei bem conduzida, proposta dele, aprovada na assembleia, para instituir o Conselho Estadual de Saúde, porque apesar do símbolo, da importância e da atuação do Requião, o Requião tinha lances assim de centralismo muito grande. O primeiro conselho de saúde do Paraná, do SUS já, foi criado por decreto e não por legislação, com participação, como deve ser as recomendações da constituição dos conselhos. E daí o Rosinha como deputado estadual fez uma proposta, aprovaram no fim da legislatura, mas foi muito importante e eu tive a oportunidade de implantar aquela proposta do conselho da melhor forma, e nesses conselhos a gente repercutia as situações de saúde mesmo, tomava decisões, às vezes o Ministério Público fazia advertências, a gente aceitava as advertências, outras vezes fazia e a gente não aceitava, porque o ministério público não tem o poder de mandar você fazer, ele pode recomendar. Hoje eles mandam em muita coisa por extrapolação, querem mandar mais, mas o Ministério Público tem uma função muito importante do ponto de vista institucional do desenvolvimento dessas relações do setor. Bom! Então naquela época ter feito aquela uma, aquela Norma Operacional 96, 96, aí veio a NOAS, e daí não tinha dinheiro para implementar a NOAS, e nunca se teve recursos bastante para, e depois veio uma coisa que eu acho que foi muito apropriado, que é o Pacto pela Saúde, foi muito, foi a melhor, a última negociação mais adequada que se fez com a índole da criação do SUS como conceitualmente ele foi proposto. E é o protagonismo do Agenor, o protagonismo...

            CP: Só para a gente não avançar demais, a gente está falando aqui da NOB... como é que foi o processo de implantação do PSF no Paraná?

            AR: Eu mal comecei. A primeira experiência que eu tive foi conhecer a experiência de saúde da família de Porto Alegre, do Carlos Grossman, eu tinha um professor que colaborava comigo, que tinha trabalhado com o Carlos Grossman em Porto Alegre, e eu tive uma lição de humildade, de compreensão do que que era fazer atenção primária com o PSF em Porto Alegre, que eu estava lá em Floresta, que é um bairro em Porto Alegre visitando com o Grossman aquela unidade miserável, e eles atendiam muito bem. E eu contei para ele: “Mas Professor, você precisa ver a estrutura que a gente tem em Curitiba, e eu quero é povoar essa estrutura com esse conteúdo que vocês oferecem aqui”. E antes de eu dizer assim como eu estou dizendo para vocês, ele disse para mim: “Pois é! Mas não é a estrutura que define o bom atendimento, o que define o bom atendimento é o conteúdo, é a prática, é a equipe, é as relações intersubjetivas das pessoas”. O Grossman é muito incrível, eu acho que ele é vivo, mas não atua mais, mas ele atuou até mais de oitenta anos. E a gente começou nos bairros mais afastados da cidade, que Curitiba era muito resistente, ainda já como secretário municipal e depois como secretário estadual, as cidades menores eram mais entusiasmadas com fazer isso, e eu não conseguia facilitar para os municípios fazerem o sistema sem servidor público, e como os municípios dependiam da transferência, por isso que eu acho que esse sistema de transferir foi bom como um passo, mas não é suficiente, é que lá para cada município deveria ter um orçamento suficiente  para e estável. Ainda agora, eu estou vendo, conversando aqui em Brasília com orientandos aqui do mestrado que são de origem da Bahia ou mais acima, é que é ainda muito comum contratar profissionais por RPA ou por tempo determinado por dez meses no ano para não ter que pagar todas as obrigações e depois ele volta em março. Então o cara trabalha até novembro e depois volta em fevereiro ou março. Ainda existe isso, quer dizer, como é que se consolida um sistema dessa forma, mas a gente conseguiu, trabalhando com o Tribunal de Contas do Estado, que sendo dependente de transferência de recursos, o município não deveria ser obrigado a criar um plano de cargos e salários e contratar pessoas com o compromisso de perenização daquela relação, uma vez que ele dependia de transferência, e parecer do Ministério Público, do Tribunal de Contas. E um dos últimos atos meus, um deles foi publicar um ou dois volumes de uma revista que depois não se consolidou, uma coisa derradeira, difícil de permanecer, que era a discussão de como fazer PSF desse modo. Qual modo? Estimulando os municípios a contratarem CLT, já que não poderiam colocar no seu quadro permanente e respeitando normais suficientes para não violentar o trabalho para não ser precarizado, mas não estável em termos de uma relação...

            FA: Tá, mas a adoção do PSF, que modificou, digamos assim, o padrão da atenção primária que já vinha sendo praticada em Curitiba?

            AR: Em Curitiba já havia aquela uma com as três especialidades, e aí eu não medi a dimensão em que cresceu em Curitiba, mas o crescimento mais significativo mesmo foi na gestão do Adriano, com a gestão do Fruet na administração retrasada, quando o Fruet foi eleito em parceria com o PT, e o Adriano que era nosso estudante, estagiário, não meu, mas foi estagiário interessado na política e depois fez a pós-graduação em Campinas com o Gastão, foi ser o secretário.

            FA: Isso significava uma expansão de especialidade e de cobertura também?

            AR: De cobertura com PSF a sério, ele fez muita coisa, ele pegou lugares que eram especializados e botou o PSF lá dentro, expandiu muito. Não tenho medida agora do quanto permaneceu. Acho que o Rafael é um cara super, que voltou a ser prefeito, super entusiasmado com a organização da saúde, mas aquele viés do, quando eu fui secretário dele ele queria pagar, com dinheiro da prefeitura, para as mulheres terem parto nas maternidades. Eu disse: “Não. Você não vai pagar, quem paga é o SUS. Nós podemos acrescentar”. Ele resistiu, resistiu, mas nós criamos o Nascer em Curitiba que depois foi batizado de Mãe Curitibana. É um nome que eu não vou deixar de reconhecer, que se oficializou, mas é um nome provinciano. E depois se saiu repetindo isso, Mãe Paulistana, Mãe Pernambucana, Mãe..., mas é só a mulher enquanto ventre. Então o Rafael foi muito... Eu dizia que atender o nascimento da criança, então eu estava falando da criança nascendo, e o secretário que sucedeu esse projeto, foi até recomendado por mim, rebatizou por Mãe Curitibana. Bom! Mas isso é um...

            CP: Como é que você participou do processo de construção da primeira PNAB?

            AR: Primeira PNAB. Qual a data dela?

            CP: Dois mil e seis.

            AR: Aí eu já estava aqui, não participei diretamente. Não. Eu acompanhava, eu trabalhava na pós-graduação da Escola Superior de Ciências da Saúde do DF. Não trabalhei com isso, eu lidava com residência, eu era coordenador dos projetos de residência do DF. Assisti, olhei, observei, acho que foi importante escrever isso. Tem uma década aí de produção das políticas nacionais, né? Agora um desafio que permanece e eu não acho que quem fez a proposta, como fez, devia fazer de outro modo, não tinha condição histórica e científica para tal, é que ainda as nossas políticas, mesmo assumindo PSF, mesmo assumindo atenção primária, são justaposição de programas, eles não se interpenetram. É muito difícil restaurar a atenção horizontal, desmontar esse grande edifício de saberes, dividido em prumadas diferentes e colocar no chão e remontar isso sem perder nada.

            FA: Esse era um princípio estruturante de Alma-Ata, da APS tal como um alerta da APS, tal como se estava pensando antes [FERNANDO - Checar o nome da pessoa em 2:18:00. Essa problemática da gestão integrada, da dissolução desses lugares, digamos assim, cristalizados?

            AR: A gente não tem certeza não é Fernando? Mas eu acho que era o que ele pensava, porque você lembra? O Eduardo Levcovitz tem falado dessa expressão dele que mal se acabou de aprovar a Alma-Ata e os de rapina vieram em cima, que vamos dizer assim, a essência do que ele queria era fazer isso. Simplificando de uma forma assim bem metafórica. Saúde é uma coisa paroquiana também, e no mundo contemporâneo sem fronteiras, bestializar tudo e tornar tudo número e provocar a ilusão das pessoas e que consumir toda essa tecnicalidade sobrenadante aí vai resolver, abandona o reconhecimento de que para cada comunidade tem que ter um cura do espírito e um cura da corporeidade, e tem os fronteiriços aí, e acho que a gente tem chance de retomar e reconstruir as ideias originais de Alma-Ata nessa perspectiva, de não recortar os aglomerados urbanos arbitrariamente, não ficar só valorizando obstáculos físicos, respeitar a pessoalidade.

Outro dia nós recebemos um professor endocrinologista aqui e que gosta muito essa discussão e ele fala que a gente deveria que atuar com cinco P, acho que vocês já viram essa conversa, um professor daqui isso não é autoria dele, mas fala-se no mundo disso, que é: promoção. Ele pega lá Londres e põe algumas coisas junto. Promoção, prevenção, “preditibilidade”, pessoalidade e participação. A melhor abordagem de saúde é por propiciar a possibilidade da relação intersubjetiva ser verdadeiramente eficiente, com corresponsabilidade de governo, sociedade, pessoas que precisam do atendimento, precisam ser acompanhadas, e profissionais.

            FA: Durante muito tempo se acreditou, eu acho que num certo sentido se tem isso como questão, que a formação do médico e a formação do profissional de saúde seria uma fronte de ataque desse tipo de problemática que você tá dizendo. Outros dizem que isso tem limites sérios porque o mercado acaba impondo, digamos assim, estruturas ao processo formativo ou pelo menos ao processo de socialização profissional real. A pergunta que eu faria é a seguinte: Qual é o lugar que você ainda atribui à formação, aos processos de mudança da formação do médico ou do profissional de saúde para, enfim, para levar essa tarefa adiante?

            AR: É muito difícil. A linha de montagem não garante, garante o produto final enquanto forma, mas enquanto funcionamento é muito difícil, porque daí ele é imerso num ambiente que não propicia necessariamente o desempenho das funcionalidades que ele poderia ter. Em países tão injustos como o nosso em que um profissional pode ganhar, dez, vinte, trinta, cem vezes o que o profissional mais humilde ganha dentro da mesma profissão ou no espectro daquele ambiente de trabalho como a saúde, ou na sociedade em geral, é muito difícil, porque os cursos de graduação, especialmente da engenharia, do direito e da saúde, para não falar só da medicina, mas especialmente da medicina, são caminhos de arrive, é o arrive mesmo que as pessoas procuram, e às vezes, aí como uma crônica do que a gente vê, é que os de origem mais humilde parece que tem pavor de recair naquela origem, então eles são mais obstinados, e no entanto eles nunca vão ser capitalistas, porque ser capitalista hoje o capital tem que ser muito grande, ele pode ser empático, e a estratégia é muito forte porque você, por exemplo, sendo imaginologista, você se compromete com cinco milhões ou mais de dívida, mas você paga isso, porque dos coros saem as correias, e daí o cara... Eu tenho um colega de turma que é boliviano, formou-se, hoje é médico em Rio Branco com uma clínica de imagem lá, o que ele posta no whatsapp sobre o momento político eu tenho vergonha de imaginar que aquele rapaz, um quéchua, com uma história tão bonita e que tinha uma preocupação social tão sincera...

            FA: Tá dizendo essas bobagens.

            AR: Dizendo as bobagens, vive ali onde ele ganha dinheiro e usufrui na Bolívia com a família, fala mal do país dele pela perspectiva que tomou e daquilo que tá acontecendo aqui, mas isso é confidências que não precisam constar, mas a gente tem esperança? Eu tenho. Eu quando abri residência em gestão, eu fiz isso com essa intenção e tive que convencer muita gente, e é muito difícil convencer as pessoas de que essa gestão é necessária e isso é o sinal de quanto é pesada a marca do modelo medicocêntrico e ideologicista, é muito pesada. Por que? Porque você chega no território onde o residente vai fazer o programa de gestão, a pessoa diz assim: “Não perca o foco, não perca o foco”. Ora! Não perca o foco como dizer que residência é o padrão ouro de ensino médico? Não é. É o padrão ouro de reproduzir o estabelecido. Seus residentes não criam, eles reproduzem o estabelecido. Claro que tem pessoas inteligentes, criativas, que são razoavelmente desajustadas para pensar diferente e produzir alguma coisa nova, mas o que é dominante? Noventa e nove por cento do que se fala é a bestialização do cara repetindo as coisas.

Uma vez com o nosso amigo aqui secretário de saúde, o Elias Rassi, eu fui lá colaborar com ele um tempo, e até poderíamos trabalhar junto lá mas depois não deu certo. Ele pagava melhor para quem ia dar plantão mais longe, e num centro de atenção ortopédica ele pagava a mesma taxa que os ortopedistas não queriam, eles queriam uma taxa maior. Aí um colega diz assim: “Eu me formei e estudei mais oito anos para ser ortopedista, e eu tenho que ganhar mais do que esse cara que vai lá e fazer essas doenças de todo dia aí e tal, esses negócios, dar remedinho para febre”. Eu fiquei tão indignado que eu falei pro cara: “E você acha que apertar parafuso é mais importante do que receitar antitérmico?” Que é o que os caras fazem, eles vendem peça e apertam parafuso da mesma dobradiça. O cara calou-se, ficou envergonhado eu acho. Esse ainda tinha um pouco de crítica. Porque tem muito isso, muito, muito. Então a residência de gestão para mim eu digo assim, essa residência é para recuperar o generalista que você tem em você. Você quando terminar a residência vai receber um título de especialista, mas o que nós queremos aqui é despecializar você. Você tem que atender pessoas que precisam de apoio, para atender outras pessoas ou pessoas que precisam ser atendidas mesmo, e como tal você tem que ter alta sensibilidade e baixa especificidade. A única especificidade que é importante você ter...

            FA: É a própria sensibilidade.

            AR: É. E questões administrativas para subsidiar decisões de logística. Você não pode ser ignorante em como se compra um serviço, mas você não precisa ser o contador da unidade. Sabe que tá bem interessante! Tanto no sentido de gente que descobre que essa que é a veia que a pessoa quer, como gente que se propõe a ser preceptor e percebe que tá equivocado. Olha o foco, olha o foco! Não é foco. Daí eu uso o exemplo. Um enfermeiro tem que saber pegar uma veia, mas se tiver que fazer flebotomia tem que chamar o médico? Porque ele não aprende também a abrir? Porque até que o doutor chegue, ele abre logo e pega essa veia porque o cara pode morrer no choque. Mas você que é gestor não precisa saber fazer, nem pegar a veia e muito menos flebotomia, mas você precisa saber o que é isso e o que a pessoa que faz isso precisa. Então têm meninos e meninas, mais meninas que fizeram enfermagem, que ficavam naquela coisa que gostaram da clínica, da enfermagem. Eu digo: “Não, nada contra. Se você quer ser enfermeiro, você termina essa residência e vai ser enfermeira clínica, mas o que a gente espera que você seja é gestor”.

E o que é interessante é que o lugar que eles estão indo tá entendendo que o residente de gestão tem o que fazer. E por último eu digo: “Olha! Assim como existem tantas clínicas, gestão é uma clínica. Não diga estou gestor, diga sou!”. Eu disse isso para uma colega médica de família, terminou a reunião, eu fiz a palestra de abertura do curso de atualização, reciclagem, dos caras que aceitaram ser gestores dessas mudanças que o DF estava fazendo quando eu estava nessa instituição do DF. E eu falei isso com muita ênfase, e quando ela saiu, ela era uma médica super dedicada, colega do Faustinho, formaram junto aí em Goiânia, e a Talita disse assim: “É Dr. Mas eu ainda estou gestora, eu ainda não sou. Eu acho que nunca vou ser”. Eu falei: “Não, você não tá entendendo. O que eu quis dizer para você é que você tem que fazer gestão com a mesma afetação, com a mesma paixão, com a mesma responsabilidade que você faz a sua clínica. Quando você perceber que você tá convertendo esse estar gestor em ser gestor, você transformou a gestão em clínica”.

            CP: Armando, eu estou te ouvindo, esse apaixonante depoimento, estou me lembrando aqui dos GERUS, como é que você avalia essa experiência?

            AR: Nós aplicamos os GERUS lá e foi muito interessante. O Paranaguá era um dos criadores e operacionalizadores dele. Eu estava lembrando disso outro dia, o Paranaguá com a sua franqueza assim um dia ele disse “Ah! O pessoal entrou nessa vereda”. Falando dos últimos governos, em que pese o grande apoio em que os governos do PT deram à dinâmica, à questão do orçamento, essas questões estruturantes e tal, ainda não se resolveram mesmo com entusiasmo, vontade. Eu acho que depois que se elegeu o primeiro governo do PT, na união, mudou também o engajamento, a vontade de, o propósito de, mas também fizeram modernizações conservadoras, como o CEO, eu digo que o CEO da odontologia é Flexner cem anos depois, que o dentista quando não tinha CEU ele fazia de tudo, agora ele faz muito pouco porque ele manda pro CEO, aí forma fila e fica esperando, entende? Isso é delicado e tem que colocar com muito cuidado porque acrescentaram-se oportunidades e apoio e recurso, mas com paradigma muito convencional, muito o dominante em vez de construir originalmente. Eu acho que o GERUS teve como os formuladores originais da proposta do SUS a sensibilidade de trabalhar com as pessoas a partir do que elas eram, de como elas...  Sabe! Não tem um curso prêt-à-porter que você coloca o cara lá dentro e ele sai estudado gestor isso ou aquilo, a dialética do processo era muito cultivada, e isso tem muito valor. Eu tenho, por exemplo, em Londrina a experiência com o Nelsão e o Darli, que já faleceu, fazendo lá de habilitação em enfermagem, era muito isso, e não tinha disciplinas, essa ilusão da separatividade. Você pega e dá um monte de disciplinas para as pessoas e a soma disso é a formação deles. No GEROS não tinha essa lógica, ele podia dar um foco às questões de administração de pessoas, recursos humanos, a gente ainda chamava, e outras assim, mas ele tratava com a horizontalidade, com o esforço de se espelhar as coisas como elas estavam acontecendo, que depois a gente sofisticou com a nomenclatura que importou, arco de manguerez metodologia ativa, etc. Eu, lá no Paraná, a gente aplicou isso, em Curitiba, desenvolveu, e o Cordoni era muito entusiasta disso também, apoiava a realização do GEROS pelo Paraná afora.

            CP: Eu me lembro do depoimento, não sei se o Fernando lembra, do Paranaguá sobre o GERUS. Na verdade o Paranaguá, o Vecina Neto e a Ana Maria Malik, se eu não me engano, que estavam por trás, talvez mais algumas outras pessoas, e a proposta original, salvo engano meu, era na verdade de formar gestores para o sistema de saúde, e eles se dão conta que o ambiente hospitalar é, enfim, um ambiente que já tem uma ... seria um ambiente já de uma resistência muito bem estabelecida a uma iniciativa como essa...

            FA: Até o culpado por aqueles cursos da FGV de São Paulo.

            CP: E aí eles vão avançar, vão entender que o terreno, digamos assim, da atenção primária, seria um terreno menos beligerante para se avançar na formação de gestores. É isso mesmo?

            AR: É. Eu concordo. É um PIASS urbano. Lembra do PIASS? Porra! Como é que fizeram aquilo? Com duas, três pessoas lá nos confins do Judas atendendo com condições extremamente... Tem um valor tão grande essa coisa que o Eduardo, engenheiro, somando com o Nelsão, com o Chico, com o Agenor, começaram a mexer com essa coisa. Mas olha! Essas políticas públicas...

            FA: Como é que o PIASS chegava no Paraná, se chegava?

            AR: Não chegou.

            FA: Nunca chegou né?

            AR: Nunca chegou. Mas ele alavancou e se expandiu no sentido do pensamento. “Puxa! É possível fazer isso”. Mas lá não teve PIASS. Aí já chegou como Programa de Agente Comunitário, mas foi o PIASS que... E tem essas contradições. O Alcenir, um conservador, pega o resultado do PIASS criado no ambiente da ditadura apesar de não ser encomenda da ditadura, e depois...

            FA: Era encomenda de quem?

            AR: A encomenda era do movimento de resistência, mais propriamente era o partidão mesmo fazendo o que dava para fazer. Acho que isso é uma inteligência de processo político muito importante, de enfrentar as coisas...

            CP: Talvez tenhamos que reaprender.

            AR: E sabe que eu fiz um depoimento aqui, nós fizemos uma reunião fora da instituição, fora do horário, mas ali no pátio com o Wagner Martins organizando e veio o pessoal que tá aí na resistência, Haddad, Haddad... Eu falei: “Gente! Vocês estão me fazendo lembrar da universidade, e a gente sabia viver com a ditadura, e contornava, tinha assessoria interna de segurança institucional”. Lembra disso? Assessoria especial. A gente tinha que mandar o discurso, nós criamos uma comissão para redigir o discurso a não ter autor, mesmo assim os caras vinham em cima. Elegemos, elegemos com a classe inteira o orador da turma para dar o máximo de proteção que estava ao nosso alcance para ditadura não poder pegar o cara. Que coisa! Pois é! Então temos que recuperar essas habilidades.

            FA: Cacete! Bom! Que mais?

            AR: Eu acho que vocês estão sendo psicanalistas. Sabe por que o psicanalista pode ouvir muita gente? Porque a gente fala muita ganga e aproveita pouca coisa.

            FA: Não. Eu não diria isso não.

            CP: Eu também não.

            AR: Não, eu estou falando pelo menos da... Para focalizar o que vocês querem, a gente arrodeia, né?

            FA: Eu tenho uma pergunta aqui. Você chegou a trabalhar na CSN [Companhia Siderúrgica Nacional], né? Com até uma proposta de atenção integral...

            AR: Trabalhei. Eu fiz um processo lá também.

            FA: Eu peguei assim. Pode-se falar de APS na empresa? Faz sentido isso, faz algum sentido isso?

            AR: Você sabe que a direção da empresa antes dela ser privatizada, tinha quadros, que era como nós tínhamos quadros da saúde, tinha quadros da engenharia que trabalhavam nas empresas públicas e levava a sério. E contrataram uma consultora para qual eu fui indicado com a experiência que eu estava saindo da gestão do Richard, do Cordoni, estava trabalhando como consultor nos primeiros, o primeiro relatório de impacto ambiental de uma hidrelétrica foi feito no Paraná e eu participei, porque coincidiu com o término do governo do José Richa a entrada do Álvaro, e a gente não tinha expectativa e eu menos do que o Cordoni, porque o Cordoni ainda lutou para permanecer, mas eu não tinha mais expectativa para permanecer, como de fato aconteceu, o Álvaro pegou e deu para os azuis. E aí eu fui consultor da Logos. Logos é uma empresa holding que começou com administração de projetos de engenharia e hoje, hoje não, isso já foi há vinte anos ou mais... Trinta anos, de oitenta e oito para cá, trinta anos, eles tem uma chamada Deca Logos, e trabalhando longe, afastados, eles perceberam que precisavam de hospitais, serviços, etc. Então eles criaram a Logos Pró-Saúde. E eu estava trabalhando como consultor, trabalhava numa empreitada, em outra, e tive a oferta de ser empregado deles, regular deles, CLT, tudo. A família mudando para São Paulo e eu trabalhando onde fosse o projeto. Dessa vez era o projeto da CSN que eles tinham contratado para arrumar o problema de saúde lá. Eu falei para eles: “Olha! Fazer um sistema de saúde não deve ser esse clássico, convencional que tá aí, deve ser um sistema com atenção primária, com odontologia”. E eu tinha aprendido muito sobre a organização da odontologia e criação do técnico de higiene dental que hoje é o técnico de saúde bucal. E lá tinha uma escola técnica muito boa.

No fim eles me contrataram e eu fui lá, fui diretor, mas eu não cumpri a expectativa da Logos que era muito... Prometiam demais que iam racionalizar tudo, e muito conservadora. Tinha uma senhora que era diretora técnica da Logos Pró-Saúde, tinha o presidente, a diretora técnica e eu era o consultor, e eu tive conflito de, não pessoal, mas... A gente não tinha muita afinidade, mas tinha diferença no seguinte, ela queria apertar os parafusos e eu queria montar outra máquina. É que essas consultorias geralmente fazem isso, são conservadoras mesmo. Eu fiquei um ano e meio trabalhando lá com eles, e nesse período, para implantar, a empresa aceitava que o consultor fosse nomeado diretor. E nós chegamos a criar o curso de técnico de higiene dental na escola de metalurgia lá da Companhia Siderúrgica Nacional. E isso depois influenciou nas cidades, depois vieram os governos do PDT nas cidades, eles equiparam as coisas que a gente fazia em Volta Redonda. Lá tinha o Eliel, era um colega médico, ele era médico e filiado ao PDT, depois ele foi autoridade lá, o pessoal adotou algumas coisas que a gente começou a fazer lá.

            FA: Você tem notícias da permanência disso depois da privatização?

            AR: Aqui tem um colega, o André Guerreiro, que é psicólogo, e ele pode nos dizer atualmente como está, ele é líder de um grupo aqui que lida com gestão e saúde mental especialmente, e ele é lá, a família é de lá e ele tá sempre atualizado sobre. Eu não acredito que a empresa, se bem que há empresas inteligentes que entendem que a APS é racionalizadora e adequada, mas em geral o pessoal é resistente, se bem que o...

            CP: Mas aí mais uma perspectiva de gestão da clínica né?

            AR: É, e às vezes com mais restrição ao trabalhador do que ganho. Pode ser.

            CP: Eu estou muito... Você tem algum ponto que queira salientar?

            AR: Não, vamos ficar conversando. Eu vou mandar para vocês o memorial que por acaso alguém mandou para mim com título de tese, não é tese, não penso assim, mas tá lá, tese Armando Raggio. Eu tenho agora no computador, eu já passo para vocês.

            CP: Tá bom. O que a gente vai fazer? Esse áudio vai ser transcrito e a nossa ideia é na sequência te encaminhar, para que você, enfim, repare, retire aquilo que você achar que é impróprio.

            AR: Tem coisa que é pela nossa oportunidade de confabular, e outras coisas que se possa tocar para frente.

            CP: Que como esse material vai ficar vai ser público, de acesso público, lá no nosso site da Fiocruz no Rio, aí é importante que passe por esse processo de acerto. No mais agradecer muito esse depoimento. Cansa né?

            AR: Eu gosto. A gente tem que tomar cuidado porque se liga a matraca e ela dispara.

            CP: Mas é isso mesmo. A ideia é essa mesmo.

            AR: Mas é aí que as coisas fluem. Vocês inspiram pelas perguntas, pela pertinência.

 

FIM.

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