Rede observatório. Recursos Humanos em Saúde

Estação de Trabalho OBSERVATÓRIO HISTÓRIA E SAÚDE

Entrevistas

ANTONIO CARLILE HOLANDA LAVOR

Entrevistado: Antonio Carlile Holanda Lavor 

Entrevistadores: Carlos Henrique Paiva e Fernando Pires-Alves.

Local: Fiocruz – Fortaleza.

Data: 11 de setembro de 2018.

Duração da entrevista: 2 horas e 59 minutos.

 

CP: Hoje é dia 11 de setembro de 2018, nós estamos aqui com muita alegria nas instalações da Fundação Oswaldo Cruz em Fortaleza, na verdade nem em Fortaleza, em Euzébio, no Ceará. Quem fala é o Carlos Henrique Paiva, ao meu lado o Fernando Pires Alves, e a gente vai entrevistar o Professor Antônio Carlile Holanda Lavor, no âmbito das atividades do projeto História da Atenção Primária em Saúde no Brasil de modalidade de atenção à saúde e à política prioritária.

            FA: Dr. Carlile, para a gente aquecer os nossos motores, fala um pouquinho da sua origem familiar, da sua região de origem, como é que era a vida por exemplo em Jucás na década de 1950, qual é sua origem como, sertanejo, se eu posso dizer isso.

            AL: Meu pai e minha mãe eram primos, nasceram na área rural de Iguatu e ficaram órfãos muito cedo, foram criados por um tio que morava em Jucás, um farmacêutico, que o pai dele já tinha sido farmacêutico em Iguatu e ele mais dois irmãos eram farmacêuticos, ele em Jucás, um outro em Iguatu, o outro em Orós, três cidades vizinhas. Naquela época o farmacêutico era o médico da região, do município. E meu pai herdou então do tio que o criou a farmácia e o trabalho, fazia desde parto, extrair dente, uma costura que precisasse fazer, pequenos curativos, então era, digamos, o médico da região. E eu então cresci já dentro desse ambiente da saúde, da saúde fora, não era a saúde na área acadêmica, a saúde na área da profissão em que um ia aprendendo com o pai, que já aprendeu com o avô, que já foi o bisavô, que era padre, que começou. E era uma cidade muito pequena, na margem do Rio Jaguaribe, o rio maior do Ceará, passava em Jucás, maior rio seco do mundo se diz, porque na época da chuva ele corre, as vezes em grandes cheias, e passou três meses a chuva não tem mais água. Em sertão, em sertão, em pleno sertão.

            CP: Não é um rio permanente então?

            AL: No Ceará não existe um rio permanente. Todos os rios correm na época da chuva. Esse rio tem seiscentos quilômetros, mas passou a chuva, dois, três meses depois, ele não corre mais água nenhuma. Ficam os poços que se acumularam durante... nas áreas mais profundas, se acumulam e ficam ali em pequenas lagoas.

            FA: Jucás já era sede de município?

            AL: Era sede de município. O município todo tinha 20.000 habitantes e na sede tinham 3.000 habitantes;

            FA: De que região do Ceará?

            AL: Centro Sul do Estado. A cidade maior mais próxima é Iguatu. É a sede da região. E mais ao sul você tinha lá Crato, Juazeiro, e pra cá Fortaleza.

            FA: Orós tem um açude grande né?

            AL: Orós tem açude nesse Rio Jaguaribe, ele, abaixo já de Jucás.

            FA: E a economia da região?

            AL: Era Algodão. O que eles plantavam, que apuravam dinheiro, pra comprar roupa, era algodão, pra comprar o remédio.

            FA: Isso nas pequenas propriedades e médias?

            AL: Pequenas propriedades ou médias. Lá não tinha... A grande propriedade tinha 1.000 hectares, era uma grande propriedade. E era plantação de algodão. E região muito pobre, o algodão tinha época que tinha uma boa produção, tinha época que tinha uma pequena produção, todo mundo dependia daquilo, e plantavam milho e feijão pra subsistência, milho, feijão, abóbora, e o algodão era o que eles plantavam pra vender. Isso era o que dava...

            FA: E a sua experiência de menino assim com os episódios da seca, imagino que tenham sido bastante intensas né?

            AL: É. Uma coisa que eu nunca esqueci foi em 1951, a seca, foram anos seguidos de seca, mas 1951 foi o primeiro. Eu tinha onze anos já, aí vi, meu pai assumiu a prefeitura, foi prefeito nesse período. E às cinco horas da manhã chegavam as pessoas com fome lá em casa, meu pai era o prefeito, chegavam lá em casa. Aí eu via as pessoas cinco horas da manhã comendo rapadura com farinha. Imagina a fome o que é? Cinco horas da manhã você comendo rapadura com farinha. E água. A seca é uma coisa assim, que marca o sertanejo. Hoje já não tem tanto isso né? Mas naquela época a seca significava que você não tinha o que comer. Tinha que ir embora. Muita gente no sertão foi embora, pro Amazonas, no Séc. XIX foi Amazonas, hoje é São Paulo, Brasília, na época da construção de Brasília, muita gente foi pra Brasília, e São Paulo, Rio de Janeiro né? Muitos cearenses foram pro Sudeste.

            FA: E vocês eram quantos irmãos?

            AL: Nós éramos oito, eu era o mais velho, depois vinham cinco mulheres, e no final mais dois homens, e tinha só a escola primária até o quinto ano, eu fiz em Jucás até o quinto ano, aí pra fazer o que se chamava na época curso ginasial, que correspondia hoje do sexto à nona série né? Eu tive que ir pro Crato. Pegar o trem em Iguatu, que era a cidade onde passava o trem e ia pro Crato, fiquei lá no colégio.

            FA: Mas ficou interno?

            AL: Fiquei interno, era a forma de viver.

            FA: De se estudar.

            AL: E nas férias vinha pra Jucás. Fiz o ginasial e mais o primeiro e segundo científico, fiz no Crato, aí no terceiro científico a gente já vinha pra Fortaleza pra se preparar pro vestibular, fazer o vestibular de medicina.

            FA: Essa é a trajetória de uma pessoa de uma classe média, mais...

            AL: Era o farmacêutico da cidade.

            FA: ... abastada, digamos assim, com possibilidades, não era isso?

            AL: Era muito duro, manter um filho estudando fora, num colégio, era muito... dizer que meu pai passou um aperto muito grande, teve que além da farmácia fazer um plantio de banana, com a venda da banana ajudar a pagar o colégio né? Isso era..., mas pouquíssimas pessoas saíam pra estudar. Pra você ter uma ideia, nessa época nasciam em média quinhentas pessoas por ano em Jucás, na minha idade tinham quinhentas pessoas, só onze terminaram o quinto ano primário, e só três foram estudar o curso ginasial, duas foram ser professoras, o chamado curso normal que correspondia ao curso científico, e eu fui pra universidade, o único que fui pra universidade.

            FA: O único dos quinhentos.

            AL: Dos quinhentos.

            FA: Seus irmãos foram pra a universidade também?

            AL: Foram, quase todos, só dois que não foram pra universidade. Depois isso já foi facilitando, para as mulheres isso era mais fácil, porque em Iguatu havia um colégio de freiras, que aí aceitava as mulheres. Homem não, só tinha no Crato. Mas para as mulheres tinha um colégio de freiras em Iguatu que aí tinha o curso ginasial e o curso normal, aí já foi mais fácil, pra elas, e os dois mais novos aí já tinha mais facilidade, já os irmãos foram ajudando, a vida ficou mais fácil.

            FA: E como é que era a Faculdade de Medicina aqui em Fortaleza?

            AL: A Faculdade de Medicina era uma coisa muito importante né? Você conseguir entrar na Faculdade de Medicina. Eu me lembro que fizemos o vestibular e ficamos esperando o resultado, madrugada sai o resultado...

            FA: Isso foi em cinquenta e oito né?

            AL: Cinquenta e oito, exatamente. Cinquenta e nove. Cinquenta e oito eu fiz o terceiro científico, cinquenta e nove que comecei a faculdade. Aí me lembro, madrugada saiu o resultado, aí peguei o trem e fui em casa pra dar a notícia né? Passei no vestibular. Naquela época você ser estudante de medicina estava com a vida resolvida. Vai ser médico, normalmente o médico tinha uma situação boa, de tranquilidade. Não havia essa preocupação como hoje eu vejo o pessoal: “Ai! Como é que eu vou trabalhar? Tenho que juntar dinheiro”. Naquela época ninguém pensava em juntar dinheiro, ter carro, ter apartamento. Dos meus sessenta colegas talvez três tivessem um carrinho, uma coisa assim, ninguém tinha carro.

            CP: Como é que era a vida estudantil naquela época?

            AL: Eu morava na casa de tias. Não tinha como me sustentar em Fortaleza. Aí duas tias me hospedaram em casa e me possibilitaram então fazer a faculdade. E aí quando foi no quarto ano abriu-se possibilidade de bolsa de estudante que quisessem trabalhar na faculdade, havia uma preocupação de formar professores para as áreas básicas, porque naquela época não tinham professores nas áreas básicas, então o Instituto de Medicina Preventiva quando foi criado, primeira coisa foi estimular estudantes pra se dedicar ao que se chamava cadeiras básicas. Microbiologia, parasitologia, fisiologia, anatomia, etc., e eu me candidatei no quarto ano na cadeira de microbiologia, e aí fiquei no quarto, quinto, sexto ano como ajudante na microbiologia, bolsista, que naquela época chamava bolsista, lá no Instituto de Medicina Preventiva.

            FA: E se chamava Faculdade de Medicina...

            AL: Da Universidade Federal do Ceará.

            FA: Da Faculdade Federal do Ceara. Já tinha um Centro de Ciências da Saúde ou ainda não?

            AL: Não. Era medicina... Já havia a Faculdade de Farmácia, que era a mais antiga do Ceará, e a de odontologia, que também são antigas, mas era cada faculdade isolada. O nome universidade significava que juntou faculdades, mas cada faculdade continuava por si.

            FA: Eu tenho uma curiosidade assim, a criação de um Instituto de Medicina Preventiva, porque não é um departamento como acontecia regra geral no Brasil?

            AL: As primeiras coortes, digamos, lá de Framingham dos Estados Unidos, que identificou as causas das doenças das artérias, do coração. Com a morte do Roosevelt, que morreu, era o mais jovem dos três vencedores da guerra, tem Stalin e Churchill, ele era o mais novo e morreu no final da guerra, antes de terminar a guerra. O grande vitorioso morreu de hipertensão, aí os Estados Unidos resolveram estudar a hipertensão, e aí começou a ver a coorte de Framingham, em quarenta e oito né? Então no início, no final da década de cinquenta, já se começou a ver a importância dos estudos de coortes dos estudos chamados de comunidade, o hospital deixou de ser o centro único da pesquisa médica e a comunidade passou a ser um centro importante de pesquisa. Vieram também aqueles estudos que acompanharam os médicos ingleses, que relacionaram o câncer com o fumo, e aí a OPAS começou e a Fundação Kellogg ajudou, a estimular na América Latina os estudos da medicina preventiva, da medicina de comunidade, das... aproximar. Em vez de ser só no hospital o estudo de medicina, que tivesse também nas comunidades. E no Ceará a Universidade na época, não havia nem departamento, ainda eram as cátedras, e o reitor, naquilo que ele queria estimular, criou os chamados institutos, Instituto de Química, Instituto de Física, Instituto de Matemática e também o chamado Instituto de Medicina Preventiva, com o Dr. Joaquim Eduardo de Alencar, que foi realmente o homem que criou o instituto.

            FA: E tinha uma presença assim da OPAS ajudando isso ou foi mais uma iniciativa dele?

            AL: Ele estimulou, estimulou e de algum modo...

            FA: Uma certa cultura, digamos assim.

            AL: Foi acima de tudo um estímulo, um ou outro curso, um ou outro ajuda né?    Mas foi acima de tudo um estímulo pra nova filosofia médica.

            FA: O Dr. Alencar chegou a fazer formação nos Estados Unidos, não?

            AL: Não. Ele formou-se basicamente com o Dr. Samuel Pessoa. Depois visitou a China, visitou a União Soviética, logo que o Mao Tse Tung venceu a revolução na China aí foi um grande interesse dele conseguir acabar com a esquistossomose, acabar com as verminoses, leishmaniose, que era a grande preocupação dele, aqueles grandes mutirões, o povo pegando caramujo, acabando com os caramujos, a mobilização popular pra tratar as doenças. Isso estimulou muito.

            CP: De que ano é o instituto? Quando ele começa?

            AL: Cinquenta e nove?

            CP: Bem no início, quer dizer, no primeiro ano do seu ingresso da Faculdade de Medicina né?

            AL: Isso. Exatamente. Foi o começo, até se estruturar, em sessenta, sessenta e um, sessenta e dois é que começaram as primeiras bolsas. E o instituto o que que era? Era um centro de saúde pra que o aluno tivesse aprendizado não só no hospital, mas no centro de saúde. Então eu participei do primeiro cadastro das famílias, cada estudante cadastrava vinte famílias.

            FA: Isso na periferia de Fortaleza?

            AL: Em volta da Faculdade de Medicina.

            FA: Então nem periferia assim.

            AL: É... era um bairro pobre né? Não era favela, mas era um bairro pobre, população pobre e o Centro de Saúde do Instituto de Medicina Preventiva, que era o IMEP, ia atender aquela população em volta da Faculdade de Medicina.

            FA: Uma espécie de Centro de Saúde Escola.

            LA: Isso, exatamente. Essa era a ideia do Instituto de Medicina Preventiva, era levar o aluno pra ver a população, acompanhar aquela população, sem esperar que ele adoecesse pra ver no hospital. No hospital geralmente eram aqueles casos escolhidos, esquistossomose, aquela barriga d’água, casos selecionados pelos professores. E no Centro de Saúde não, você vê a doença do dia a dia, das pessoas. E o contato, aí eu visitei vinte famílias e cadastrei vinte famílias, cada estudante tinha que cadastrar vinte famílias, visitar a família, ver como é que estava.

            FA: O Sr. Acha assim que esse foi um momento vocacional seu?

            AL: Não o cadastro em si, mas o Dr. Alencar, ele trazia conferencistas sempre, o Samuel Pessoa era uma das pessoas que vieram. Ele fez um curso de medicina preventiva, pra quem quisesse.

            CP: O Samuel Pessoa?

            AL: Não, o Alencar. Ele fez um curso. E aí ele trazia conferencistas, o Samuel Pessoa, o Frederico Simões Barbosa, nomes importantes da saúde pública brasileira que ele trazia pra falar das suas experiências. E isso então pra mim foi uma coisa importante, falar de medicina preventiva, porque o hospital era só hospital pra tratar doente, diagnóstico e tratamento, então era uma visão nova. E outra coisa importante é que em sessenta e três houve um grande movimento para a reforma do currículo, que também foi estimulado com essa nova descoberta da medicina, a reforma dos cursos médicos, que o Alencar liderou, e eu representei os estudantes de medicina nessa reforma do ensino, era a congregação dos catedráticos e tinha uma representação dos estudantes e eu fui o representante na discussão de todo o ano de sessenta e três pra reforma do curso, em que a medicina preventiva entrou do primeiro ano até o sexto, isso foi uma sequência de disciplinas que levasse o estudante a conhecer um pouco da saúde pública, da...

            FA: Deixa em me encontrar um pouco aqui, que eu tô curioso. É possível fazer um perfil assim político-ideológico do Alencar, com essa coisa assim de ir à China, dessa aproximação assim com a... Essa sensibilidade social? Que personagem era esse?

            AL: No Brasil, muitos sanitaristas eram homens de esquerda. Porque via as causas das doenças. Não era só tratar. Já se sabia no mundo que havia essa coisa de prevenção de doença, de controle de doenças, você já tinha a Suécia com todo aquele estudo de redução da mortalidade infantil, e os países socialistas que chegavam com toda uma redução de mortalidade infantil e de controle de doenças mesmo. E ele fez essas visitas, e por isso então foi considerado com o golpe de sessenta e quatro, ele foi considerado que devia ser um dos chefes do partido comunista, porque tinha visitado a Rússia e a China, só podia ser o chefe do partido, e não tinha maior participação de partidos não, nunca nem se candidatou a nada. Tinham outros professores lá da faculdade que se candidataram, eram comunistas, candidatos a deputado, a vereador. Ele não, ele nunca se candidatou. Era um homem de ciências realmente, mas um homem de esquerda né? Era socialista, naquela época se falava, o mundo socialista estava crescendo, se desenvolvendo, mas eu ainda me lembro dele numa das viagens que ele foi pros Estados Unidos, ele dizia: “Olha! Hoje você tem o mundo socialista e o mundo capitalista, e eles estão vendo quem é que consegue fazer melhor. Não é um, não é outro não. Os dois estão disputando. Quem vai conseguir ter o melhor desenvolvimento humano”. No fim a gente viu que o muro caiu e...

            FA: Ninguém conseguiu muita coisa.

            CP: Eu ia fazer uma pergunta assim...

            AL: Mas acima de tudo era um cientista, dedicado à saúde pública, era realmente um homem dedicado à saúde pública. Tinha lá o laboratório particular, que dava realmente um meio de vida dele né? Mas acima de tudo o que ele gostava mesmo era da saúde pública, da Faculdade de Medicina, do ensino.

            FA: E no ambiente da escola? Porque a gente tá no começo dos anos sessenta, tem a reforma de base, João Goulart, né?

            AL: Isso. Essa reforma do ensino médico vem em sessenta e três, em plena reforma universitária, foi quando as cátedras foram transformadas em departamentos, aí se criaram os departamentos, e nessa reforma foi que houve uma reforma universitária importante. Eu participei ativamente, eu era vice-presidente do diretório e representante junto à pasta do ensino, e foi realmente aquela mobilização de...

            CP: Mas aí o Sr. Já estava assim...

            AL: No quinto ano de medicina, eu já estava no quinto ano de medicina.

            CP: Já estava assim caminhando pro final.

            AL: Uma coisa importante, o diretório era gente já, como diz, mais adiantada, não era estudante de primeiro ano, segundo ano, estava no diretório. Não. Era gente com um nível de conhecimento maior...

            CP: Eu tô pensando assim, no final dos anos cinquenta o Sr. Ingressa na Faculdade de Medicina, eu me pergunto sobre o que um jovem imaginava, o que que era pratica da medicina. Tinha uma ideia de uma profissão liberal, de você ter um consultório ou alguma coisa do gênero? Seja como for, o senhor ingressa numa faculdade que tá com uma experiência institucional inovadora, ainda que se instituindo gradualmente, mas o senhor vive essa experiência nos primeiros anos da sua formação profissional. É possível o senhor detalhar e eu estou me referindo especificamente ao instituto, é claro. Como é que foi sua formação nesses primeiros? Como é que aquela experiência preliminar eventualmente formatou a sua perspectiva sobre o que era medicina? O que era saúde pública? Quais são os temas mais recorrentes? O que o senhor leu, por exemplo? Que livros circulavam? Quais foram as ideias mais conformadoras, digamos assim, do jovem  Carlile?

            AL: Primeiro minha ideia de medicina não era essa de consultório, minha ideia de medicina que eu tinha era a do meu pai, que era um farmacêutico, que era que resolvia os partos, os problemas de saúde que apareciam na cidade, no município todo. Madrugada chegava lá a mulher, faz dois dias que tá sofrendo e o menino não nasce, aí pegava o cavalo, ia lá... pra mim medicina era isso, tá certo? Então eu não representava o que era a medicina tradicional, eu vinha lá do sertão, uma outra coisa, eu era um filho, digamos, de um médico, mas não era médico, era um homem lá, farmacêutico que atendia as pessoas.

            CP: Nesse ponto o Sr. já era diferente dos seus colegas?

            AL: Sim, sim, claro. Mas não era só eu, era alguns estudantes que vinham do interior do Estado com essa mesma visão de... Eu vinha querendo ser médico, não tinha ideia mesmo dessa medicina que era... Claro que entrei num curso tradicionalíssimo, era anatomia, fisiologia, não sei o que, um curso super tradicional. Poucos professores com visão de saúde pública, raros professores com visão de saúde pública, a maior parte eram médicos de consultório mesmo, tinham seus consultórios e iam lá dar uma aula na faculdade, pouquíssimos eram dedicados, tinham interesse...

            FA: Mas com a presença do Dr. Alencar e com o Instituto de Medicina Preventiva ali.

            AL: E na área de microbiologia, que foi a que eu escolhi pra ser bolsista, peguei também um professor muito dedicado às sociais, esse era comunista mesmo, foi candidato à deputado.

            FA: Como era o nome dele?

            AL: Raimundo Vieira Cunha. Ele era o professor de microbiologia e imunologia, então eu fui bolsista dele, e com ele eu aprendi muita coisa, do que é socialismo, isso eu aprendi, conversava com ele, discutia, e entrei na política estudantil, fui vice-presidente do diretório, porque via as injustiças, via as coisas que estavam sendo, as coisas que eu via na faculdade estavam muito distantes das coisas que eu via lá na minha cidade, em Jucás. Aquilo que eu estava vendo lá não atendia as minhas necessidades de Jucás né? Eu ainda passei..., mas só terminando o raciocínio. Então eu tive a vantagem de ter, primeiro, vindo de um ambiente diferente, não era um filho de médico de Fortaleza, e aí tinha aquela visão, o pai era médico, consultório, e eu não tinha nada dessa visão, meu pai nem nunca trabalhou em consultório, ele ia à farmácia e atendia um paciente que precisava, ele ia na casa ou o doente vinha lá na farmácia. E tive a sorte de ter o Professor Raimundo Vieira Cunha, que era essa pessoa com quem eu conversava política, e fui vendo muito antes de começar, que era importante mudar as coisas dentro da Faculdade de Medicina, o ensino médico parecia muito ruim, muito distante do que eram as necessidades, e mesmo o ensino, não me parecia que fosse uma coisa boa. Os professores muitos lá nos seus consultórios, iam lá dar aquela aulinha e estava distante do que eu via que era a necessidade lá de Jucás.

            FA: Sua visão de carreira pessoal era o que? Voltar pra Jucás, segundo uma entrevista que você deu.

            AL: Era uma coisa mais natural, que era de onde eu vim. Eu me lembro, desde menino o pessoal dizia: “Ah! Você vai ser médico”. E como eu era estudante, gostava de estudar, todo mundo dizia que eu ia ser médico, era filho de farmacêutico, tinha condições de estudar, e ia ser médico, e eu naturalmente fui ser médico. Mas aí com a entrada na política estudantil, fui vendo isso, e fui começando a ler os problemas sociais, e depois vendo a importância de reformar o ensino médico, participei dessa discussão toda da reforma, li como era o ensino médico no mundo todo, desde nos Estados Unidos, Europa, Rússia, Argentina, como era o ensino médico e a necessidade de se mudar o ensino médico, e a presença do Instituto de Medicina Preventiva, mostrando o que era o novo.

            FA: O Sr. lembra de uma fonte assim que o sr. tenha lido pra isso, pra se informar sobre as tendências da educação médica, você lembra de alguma coisa?

            AL: Lembro. Tinha um livro que era o ensino médico, descrevendo o ensino médico em todos os países do mundo, nos países desenvolvidos no mundo. Isso eu li todos...

            FA: Estava publicado em português, espanhol?

            AL: Em português. Português ou espanhol, não lembro bem, mas era uma dessas duas línguas. E descrevia o ensino médico nos países, e mostrando a diferença em um e outro né?

            FA: O sr. lembra a editora, era coisa da OPAS?

            AL: Não lembro. Mas era um livro importante, mostrando por exemplo, na União Soviética os alunos tinham que passar dois anos estudando materialismo científico, materialismo histórico, fazia parte do ensino lá na União Soviética. Mas os países ocidentais eram muito parecidos, aquela sequência, vinha anatomia, as chamadas cadeiras básicas. Vocês são médicos, algum de vocês?

            FA: Não.

            AL: São o que?

            FA: Historiadores.

           FA: Historiadores. Mas as chamadas, desde o estudo de Flexner (Relatório Flexner) as cadeiras básicas, você tinha que estudar bem fisiologia, química, física, aquilo tudo né? Que o mundo inteiro seguia aquele modelo, a única diferença que me chamava a atenção era na União Soviética que você tinha que estudar o chamado materialismo histórico e era uma coisa importante que tinha que estudar, o médico tinha que estudar aquilo tudo, mas no resto o ensino era muito parecido, do ponto de vista de cadeiras, de disciplinas. Agora, como que isso era ensinado, claro que eu não sabia como era ensinado, o livro descrevia as cadeiras, que eram muito semelhantes, trinta e cinco cadeiras em todos os cursos de medicina, eram assim.

            CP: Dr. Carlile, no final da sua formação como médico a gente teve, a gente registra a realização da Terceira Conferência Nacional de Saúde, hoje uma conferência muito falada, muito famosa, conduzida, entre outras figuras, pelo Mário Magalhães, o Wilson Fadul. Àquela época o sr. acompanhou esse debate, ele ressoou, enfim, na sua formação?

            AL: Não. A formação médica que me chamou atenção pra isso foi o Instituto de Medicina Preventiva, era o curso de medicina preventiva que a gente fez lá, organizado pelo Alencar, e as matérias que um ou outro professor chamava a atenção pra isso. E tivemos professores na reforma do ensino médico, que eu participei ativamente, tivemos professores, mesmo na área clínica, cirúrgica que conheciam o mundo, viviam, sabiam a experiência na Europa como era, e com quem eu discuti muito com eles, aprendi muito com eles como era o ensino médico na Europa, nos Estados Unidos.

            FA: E o seu foco era a Faculdade de Medicina do Ceará?

            AL: Isso.

            FA: Melhorar o ensino pra ter mais capacidade de intervenção na...

            AL: Isso. E melhorar a saúde do Ceará. Minha preocupação era como o Ceará, aquela miséria que eu via lá no meu sertão, que chegava a seca a quantidade de criança que morria era um negócio impressionante, e a fome, a fome era um negócio assim, forte. E aí eu fiz microbiologia, passei um ano no Rio, dentro do que estava previsto, eu passei três anos estudando como auxiliar da microbiologia, aí fui fazer um ano de microbiologia no Rio pra voltar como professor.

            FA: E fez aonde? Na UFRJ?

            AL: No Instituto de Microbiologia lá da UFRJ, que era ainda ali perto da Praia Vermelha. Atrás da reitoria tinha o Instituto de Microbiologia, que hoje se chama Paulo de Góes.

Pausa (28:57) /Retorno (35:12) -6 minutos

            FA: O Sr. estava falando do curso de microbiologia que o Sr. fez no Rio.

            AL: Ah sim, sim. Foi muito bom, era um curso muito bem organizado, era um curso de melhor que havia no Brasil, era um curso organizado. Você tinha, digamos, São Paulo, que lá também eu visitei, mas era tipo um estágio. O Paulo de Góes em um curso organizado, um curso de um ano, de microbiologia, então fui lá fazer esse curso de um ano. Quando eu voltei, aí sessenta e cinco. Eu me formei em sessenta e quatro, o ano do golpe. Em sessenta e cinco eu fui pro Rio, bolsa pela CAPES, e quando voltei em sessenta e seis era aquele tempo fechado, contra-ataque, a ideia era voltar e ser professor da faculdade. “Não, nem tem vaga, e você foi do diretório”.

            CP: Perigoso.

            AL:  Aí um professor da faculdade, do Instituto de Química me chamou e disse: “Ó Carlile! Vamos começar aqui um curso de microbiologia industrial e você pode vir pra cá”. Ainda fiquei um mês lá e disse, não fiz medicina pra isso. Aí fui pra Jucás, fiquei um ano e meio em Jucás. Mas aí eu não tinha me preparado pra Jucás, tinha me preparado pra fazer microbiologia né? Mas ainda fiquei um ano e meio, mas foi bom pra...

            CP: Como clínico?

            AL: Era o médico da cidade. Era o único médico da cidade, mas já com a visão diferente, que eu já via agora a cidade, depois de toda essa vivência universitária, eu já via a situação social, que antes era mais como estudante, era brincar, e isso foi muito importante pra mim, começar a ver de fato o problema social, e aí vi que uma das coisas importantes era que o pessoal aprendesse a ler, que era... Eu lhe falei, dos quinhentos estudantes eu fui o único que fui pra universidade, e só três fizeram o curso ginasial. Então a primeira coisa foi criar um ginásio, um curso ginasial, porque daqueles onze que terminaram comigo só três continuaram e os outros estavam lá sem estudar, então se vocês querem voltar a estudar, vamos estudar, eu agora vou ser o professor de vocês, e aí criamos um curso ginasial, de manhã para as crianças e de noite para as pessoas que tinham feito o curso primário e que nunca mais tinham avançado.

            FA: Isso era um empreendimento da prefeitura ou era um empreendimento particular?

            AL: Uma coisa da comunidade, juntamos dinheiro, cada um ajudava um pouquinho, a prefeitura arranjou... um amigo nos arranjou um prédio, nos cedeu um prédio, era um comunista aqui, engenheiro, professor da Faculdade de Engenharia, mas muito amigo da cidade, muito amigo do meu pai, e nosso amigo, aí nos emprestou o prédio, aí juntamos com mais algumas pessoas da comunidade, cada um pagava um dinheirinho e mantínhamos o curso funcionando.

            FA: Ofertando gratuitamente?

            AL: Gratuitamente. Quem podia pagava um pouquinho, que era um curso que procurava se manter, e naquela época você ter um curso ginasial em Jucás era um sucesso grande.

            FA: Auto-gestão comunitária.

            AL: Isso. Criamos lá a associação pra manter e fizemos funcionar isso. Aí fiquei um ano e meio, foi quando a universidade me chamou. As coisas já foram mais acalmando, aí me chamaram pro Instituto de Medicina Preventiva. Aí fizeram um acerto, eu trabalhava um expediente no Instituto de Medicina Preventiva e outro expediente no hospital de tuberculose.

            CP: Só uma curiosidade. Com a sua ausência desse curso, o curso continuou?

            AL: Lá em Jucás? Sim. Inclusive, uma curiosidade. Eu estava já em Brasília, quando cheguei em Brasília, em sessenta e nove, aí a polícia chegou pra prender um estudante, depois foi Deputado Federal, Aroldo Saboia, e conseguiu sair correndo e fugiu, a polícia não pegou. Aí ele tinha que se esconder, aí eu... você vai lá pra Jucás, você vai ajudar no colégio. Aí foi importante porque ele foi ajudar no colégio. E se escondeu, conseguiu ficar lá uns dois anos ainda, até que o prefeito descobriu que ele era perseguido, aí... ainda bem que ele conseguiu fugir e foi pra França sem ser pegado né? Foi assim uma coisa... Mas um Promotor de Justiça, que depois se tornou meu compadre, ele de fato era o diretor do colégio, porque eu não tinha tempo de ser o diretor, eu ia lá dava aula, ajudava, animava as pessoas, mas eu ensinava ciências, minha mulher ensinava história, chamei minha irmã que estava em Fortaleza pra ensinar matemática, fizemos o curso, mas tinha o Promotor de Justiça, Dr. Napoleão Ximenes, que era o diretor oficial.

            FA: Qual era o nome dele?

            AL: Napoleão Ximenes. Ele era o diretor, e com a minha saída ele continuou sendo o diretor, ainda ficou uns quatro anos como diretor. Aí foi quando o Aroldo Saboia veio pra Jucás se esconder sendo o diretor da escola. Ainda me deu uma contribuição durante dois anos lá.

            FA: Essa sua permanência na Faculdade de Medicina, ela não durou muito, porque o sr. foi pra Brasília rápido né?

            AL: Foi, fiquei dois anos só na faculdade. Porque eram as condições, não mudava muita coisa né? Eu fazia a microbiologia do Hospital Escola, pelo Instituo de Medicina Preventiva, o instituto montou um laboratório pra atender ao hospital, e eu fazia a microbiologia dos doentes do hospital. Era um trabalho realmente... conversava com os estudantes, levava os estudantes pro laboratório, mas era um trabalho em que a gente não aprendia muita coisa, e aquilo que eu sentia necessidade em Jucás, eu não conseguia aprender, quer dizer, eu via em Jucás toda a debilidade do meu curso, o curso não preparava o indivíduo pra ser médico lá em Jucás, nem eu tinha me preparado na especialização pra ir pra Jucás, então eu não tinha nenhum preparo pra ficar em Jucás. E nesses dois anos que eu fiquei em Fortaleza, na faculdade, eu me mantinha, realmente, fazia a microbiologia, mas via que não tinha muito... não contribuía muito, certo? Embora a gente começasse a juntar alguns professores, pensar em fazer alguma coisa de mudança, mas aí num congresso que eu fui à Belo Horizonte, um congresso inclusive de tuberculose, fui conhecer Brasília, e casualmente eu encontrei um professor, que era até um dos que tinha me estimulado pra imunologia, naquele tempo microbiologia e imunologia eram juntos, ele tinha chegado dos Estados Unidos, cirurgião todo animado pra fazer transplante de rim, mas também tinha tentado no Ceará, não tinha conseguido nada. Aí casualmente eu encontrei com ele em Brasília.

            FA: Quem era ele?

            AL: Antero Coelho Neto. Aí eu conheci a Faculdade de Medicina daqui de Brasília, aí eu achei uma coisa espetacular... A Faculdade de Medicina lá, Sobradinho, oitenta médicos em tempo integral, dedicação exclusiva, pra cuidar de uma população de 25.000 habitantes. Poxa! Isso é tudo que eu sonhei, né? Aí fui, fui pra lá e fiquei dez anos.

            FA: O sr. foi exatamente pra lá em que ano?

AL: Primeiro de março de 1969.      
FA: Sessenta e nove. Quem estava dirigindo lá? Era o Ferreira?

            AL: Lobo. Luís Carlos Lobo. E o [Agnelo] Collet dirigia o hospital.

            FA: E o José Roberto Ferreira ainda estava lá na diretoria?

            AL: Não, estava no México nessa época.

            FA: Já tinha ido pro México?

            AL: Estava o pai dele, que fazia parte da tuberculose. Dr. Ferreira. Como é que chamava ele? Dr. ... o pai do Zé Roberto. Zé Roberto tinha sido vice-reitor, né? Mas estava lá na OPAS ou estava lá na Universidade do México, naquela universidade nova que eles criaram, né?

            FA: Já tinha tido aqueles episódios da invasão, aquela coisa toda?

            AL: Já tinha. Aquilo foi em 1968. Eu cheguei em 1969, já estava a ressaca daquilo.

            FA: Aquele troço todo.

            AL: Isso.

            FA: E quem estava dirigindo lá em Planaltina?

            AL: Não. Planaltina... Eu passei cinco anos dentro de Sobradinho.

            FA: Esquece Planaltina. Quem estava dirigindo em Sobradinho?

            AL: O Hospital de Sobradinho era dirigido pelo Collet, que era um clínico lá do Rio, que veio do Rio. Chegou a conhecer o Collet? De nome assim pelo menos?

            FA: Claro, conheço de nome.

            AL: Morreu de um acidente.

            FA: Morreu de um acidente, atropelado.

            AL: Isso. Collet dirigia o hospital e o Lobo dirigia a faculdade. O Antero era um dos professores, esse que eu falei que fazia o transplante, estava lá em Brasília e tinha o pessoal de mais alta qualidade. O Antônio Márcio Lisboa, pediatra, que veio lá do Hospital dos Servidores do Rio montou um super ensino de pediatria. Era um ensino da melhor qualidade. Se você imaginar, nós cuidávamos da população de uma cidade de 25.000 habitantes.

            FA: E isso tinha encaixe com aquela ideia de medicina integral? Medicina comunitária?

            AL: Isso, isso. O que havia de novo estava ali. Então o aluno, ele fazia dois anos e meio no curso básico, no minhocão, na UNB ali, depois ia pra Sobradinho, e lá não tinha mais negócio de disciplina. Você chegava, vai cuidar de criança, depois, vai cuidar de adulto, mas sem essa história de disciplina.

            FA: Até o ensino básico já era encaixado por sistema né?

            AL: Era, era, sistema. Eles faziam um ano e meio na biologia, depois três anos básicos. Um ano e meio na biologia, depois um ano e meio nos sistemas.

            FA: Aí o sr. ficou encantado com isso né?

            AL: Ah sim. E aí assumi a primeira disciplina do curso médico, quando eles saíam da biologia...

            CP: Mecanismos de Agressão e Defesa.

            AL: Isso.

            CP: Era um nome curioso né?

            AL: Era. Estudava as causas da doença.

            FA: E a reação fisiológica.

            AL: Como é que você se defendia né? E eu dirigi as disciplinas durante muitos anos.

            FA: Quanto tempo o sr. ficou em Brasília?

            AL: Dez anos. Eu devo ter dirigido essa disciplina uns cinco, seis anos.

            FA: Sempre lá em Sobradinho?

            AL: Essa disciplina era na medicina na UNB. Eu dirigia o laboratório do hospital de Sobradinho, o laboratório de microbiologia, eu dirigi, mas dava essa disciplina, a disciplina não era o ano inteiro, eram dez semanas em que o aluno ficava integralmente nessa disciplina, o dia inteiro.

            FA: E aí vocês se viam como fazendo o que? Medicina comunitária? Era essa a ideia?

            CP: Isso era anunciado dessa forma? Um projeto de medicina comunitária?

            AL: Não. Era medicina. Era formar o médico generalista, o médico integral que soubesse medicina. Não aquela medicina lá do hospital especializada, mas o médico capaz de atender a medicina do povo, tá certo? Porque você não selecionava os doentes. Tradicionalmente os hospitais escola selecionam os doentes que eles querem internar, então... professor do coração, então eu quero aqueles casos mais graves de coração, os casos que nunca aparecem. Ah! Apareceu um caso lá que aparece uma vez por ano... Ah! Eu quero esse doente, é importante pra ensinar. Lá em Sobradinho não, ninguém escolhia os doentes, era toda a população que tinha direito ao hospital. E tinha toda assistência gratuita, tudo pago, era o hospital da Fundação Hospitalar, Secretaria de Saúde, entregue à universidade, a universidade é que mantinha completamente o hospital. E nós professores é que éramos os médicos. Hoje não, hoje você tem a EBSERH que contrata o médico pra atender doente, o professor só vai dar aula. Lá não, nós é que dávamos o plantão, tudo era a gente, nós éramos médicos de hospital, e quase 100% das pessoas que morriam no hospital iam pra estudo na necropsia, pra ver, pô, porque nós não acertamos  esse, morreu, porque é que morreu, então a gente aprendia mesmo medicina. E eu como dirigia essa disciplina que era dos mecanismos de agressão e defesa, tinha que me dedicar a estudar as causas, e aí pude me dedicar a estudar mesmo. Quais eram as causas das doenças, porque as pessoas morriam, e principalmente a criança, que foi a minha maior preocupação, porque morria tanta criança.

            FA: E na organização do cuidado, na mobilização da comunidade, a figura de um agente de saúde já estava presente? Como é que era esse desenho da presença da escola no território?

            AL: Aí tem outra coisa fundamental, que aí foi a minha mulher, que é assistente social, que é quem sabe chegar na comunidade. Eu era médico de laboratório, chegava, via, pedia exame, ver micróbio, que doença é, que micróbio é, que tratamento faz. A minha mulher era assistente social, que já fui eu que, quando comecei a namorar com ela, ela queria fazer arquitetura, mas não tinha no Ceará, tinha que ir pra Recife e ir pra Recife eu ia perder a namorada. E na época era um curso muito bom aqui do serviço social, era um curso do ponto de vista político que eu achava mais desenvolvido, o pessoal aqui tinha uma posição mais coerente, conhecia mesmo o que eram os problemas sociais. Vai fazer serviço social, que vai ser importante pra um médico, juntar médico e serviço social vai dar uma boa mistura de trabalho, e ela foi fazer serviço social, e...

            FA: Em Brasília?

            AL: Quando eu fui ser microbiologista ela foi ser assistente social do hospital, o hospital não tinha assistente social. E isso então facilitou a nossa ida, porque precisavam de um microbiologista e precisavam de uma assistente social no hospital. Pronto, chegou o casal que atende. E ela já tinha uma experiência muito grande de comunidade, como estudante, desde o primeiro ano teve a sorte de ser muito bem acompanhada, e desde o primeiro ano que ela  fazia, acompanhava o trabalho na comunidade, como é que organiza, numa pequena comunidadezinha aqui de Fortaleza, como aquela pequena comunidade ali de cinquenta famílias melhorava de vida, estudando com eles, vendo como é que era. Depois de Jucás, ainda quando eu fui pra Jucás ela ainda era estudante, mas conseguimos que ela viesse uma vez por mês pra faculdade pra fazer as provas, as colegas escreviam no caderno todas as aulas, ela estudava e vinha no fim do mês fazer as provas. E conseguimos, isso foi uma licença especial que a faculdade deu, porque confiaram na gente né? E ela teve uma experiência já de Jucás, e aí depois trabalhou um ano com medicina preventiva, já como assistente social, e aí quando fomos pra Brasília, aí foi o grande aprendizado pra ela também, porque ela aprendeu a fazer o trabalho de comunidade. Sobradinho por exemplo tinha uma rede de esgoto em toda cidade, aí só 10% das famílias tinham ligado o esgoto, porque era caro pra ligar o esgoto. E ela em três meses conseguiu convencer todo mundo a ligar o esgoto. Primeiro conseguiu que a CAESB dispensasse a taxa de ligação do esgoto.

            FA: CAESB é a companhia de águas do Distrito Federal?

            AL: É. Isso. Então em vez de ser cobrada taxa de ligação, vai cobrar depois a mensalidade do esgoto. E convenceu o povo a ligar. Então ela aprendeu a trabalhar de fato com a comunidade. Como é que chega às famílias, como é que se associa as famílias, como é que mobiliza...

            FA: Mas e o cuidado em saúde, a equipe do hospital, como é que ela estava desenhada pra dar conta do território?

            AL: O hospital trabalhava dentro do hospital.

            FA: Tinha postos de saúde?

            AL: Tinha um posto de saúde na área rural, em que os professores e alunos iam pra atender lá na área rural, um posto na área rural. E tinha uma coisa chamada “visitadoras”, visitadoras do SESP antigo né? Visitadores ingleses né? Que iam acompanhar tuberculosos, hansenianos, era a experiência que tinha fora do hospital.

            FA: Estava orientada por doença, em regra geral?

            AL: Era, essas visitadoras acompanhavam principalmente essas doenças crônicas, esse era o foco principal das visitadoras. Era tuberculose, tinha que passar um ano em tratamento. Hansenianos que era anos de tratamento, tinha que acompanhar aquilo bem.

            CP: Eram enfermeiras né?

            AL: Eram enfermeiras, eram auxiliares, eram visitadoras, o nome era esse, contratadas como visitadoras. Tinha um bom curso de auxiliar de enfermagem, técnicos de enfermagem.

            FA: Mas não era povo da comunidade não né?

            AL: Não, eram técnicas do hospital, chamadas visitadoras sanitárias, que o SESP usou muito isso também. Mas a parte nossa, tinha essa extensão na área rural, mas o atendimento forte era dentro do hospital, só que atendia o povo mesmo que vinha pro hospital, desde a emergência até a vacina, tudo, então, você não precisava, digamos, ir pra rua, o povo é que vinha. Agora, o serviço social não, esse é que ia pra rua, esse foi que mobilizou a população pra ligar o esgoto, mobilizou a população pra fazer o mutirão do lixo, limpar a cidade, acabar com o lixo da cidade.

            FA: Agora, isso estava ligado ao curso de serviço social da UNB?

            AL: Não, não, não. Era a Fundação de Serviço Social. Tinha uma boa Secretaria de Serviço Social em Brasília. Igual tinha uma boa Secretaria de Saúde. O governo militar valorizou sempre muito o Distrito Federal, que era o centro. Então era um bom governo do Distrito Federal, tinha bastante dinheiro. E tinha ainda a herança do Juscelino, quer dizer, os serviços eram muito bons, as escolas sempre de alta qualidade. Meus meninos estudaram sempre lá em escola pública, era de alta qualidade o ensino em Brasília. E a saúde também era a melhor do Brasil. O hospital distrital, os hospitais regionais, eram os melhores do Brasil. A melhor saúde pública do Brasil era lá em Brasília, e o serviço social também era muito bom.

            FA: A melhor saúde comunitária também era lá.

            CP: A experiência em Sobradinho, conceitualmente, ela contemplava essa mobilização comunitária, isso era dela ou essa mobilização comunitária se passou por fora, por meio do serviço social?

            AL: Do serviço social. O que se fazia era um bom atendimento, isso se fazia, e a preocupação com o estudo. Então morria uma pessoa, era feita a autópsia e se estudava as causas, então, fatores sociais que levaram o indivíduo a adoecer, isso se estudava, mas não no sentido da mobilização porque não havia professores, ninguém sabia fazer mobilização, todo mundo era médico. Um era bom microbiologista, bom clínico, ninguém sabia fazer mobilização, aí o serviço social que sabia fazer isso né? E aí eu passei cinco anos em Sobradinho, aí que resolvemos com a chegada do Frederico [Simões Barbosa], que ele sabia do meu interesse, que eu que discutia esses problemas no mecanismo de agressão e defesa. Teve uma epidemia, por exemplo, de meningite, em setenta e dois, setenta e três, setenta e quatro, e eu que identifiquei, meningite meningocócica, eu era microbiologista e eu que dei o diagnóstico, quem melhor dava diagnóstico era eu, então as doenças iam pra eu examinar, os doentes não, o liquor, ensinei o pessoal a botar liquor...

            FA: O foco era Sobradinho?

            AL: O laboratório.

            FA: Mas eu digo assim, o desenho da epidemia.

            AL: Não, a epidemia... Isso foi um estudo que eu fiz nas áreas mais pobres, lá a área mais pobre se chamava... Qual era o nome? Depois de Taguatinga tinha uma grande favela, não lembro o nome. Ceilândia. Então eu identifiquei que Ceilândia era o grande foco da epidemia. Claro que havia o filho de um colega nosso da medicina que adoeceu de meningite, mas era um caso, enquanto que a massa vinha de Ceilândia, e um pouco mais... Brasília era muito bom pra você estudar a área social porque cada cidade tinha um nível né? Ceilândia era pior, porque era a mais nova favela, favela, mas cada um tinha o seu lote, porque era favela arrumada, então a gente tinha que saber o nível social de cada... então foi fácil verificar a comparação entre a meningite meningocócica e as condições sociais, isso eu apresentei.

            FA: O senhor publicou isso?

            AL: Não, só apresentamos em seminários. E aí o Frederico chegou e fomos então organizar o serviço em Planaltina, que aí tinha as condições pra gente desenvolver um trabalho de comunidade mesmo. Aí é que nasceu a saúde comunitária. Foi aí em Planaltina. Em Sobradinho nós aprendemos, mas a aplicação foi em Planaltina.

            FA: Aí já estamos em que ano?

            AL: Setenta e quatro. Sessenta e nove a setenta e três eu fiquei em Sobradinho, aprendendo medicina, aprendendo as doenças, aprendendo as causas das doenças, a patologia. Em setenta e quatro não, aí foi já foi a aplicação mesmo em Planaltina.

            FA: Era um desenho de um sistema de saúde, pode se dizer. Qual era a inspiração assim, teórica, o sr. lembra assim...

            AL: O Frederico que chegou com a ideia. O Frederico tinha sido da Organização Mundial de Saúde. Já era aposentado de Pernambuco, da Fiocruz de Pernambuco, o cara já tinha o conhecimento do mundo. Tinha essa ideia, que a gente chamou na época, de auxiliar de saúde, o que depois se chamou de agente de saúde, lá nós chamamos de auxiliar de saúde. E ele tinha a experiência da esquistossomose, a experiência da importância da educação comunitária, e Planaltina tinha condições... duas coisas muito importantes em Planaltina, primeiro era um centro de saúde muito bom, dirigido por um sanitarista, era um centro de saúde que ia se transformando num hospital, mas era basicamente um centro de saúde, com uma boa relação com a comunidade. Dr. Átila Carvalho. Foi da fundação de Brasília, era um indivíduo que conhecia bem, goiano, Planaltina era uma cidade, antes da fundação de Brasília já era uma cidade, havia já a cidade de Planaltina, cidadezinha pequenininha claro que ampliou. O Átila então dirigia o centro de saúde já com essa visão de comunidade. E a Míriam, que era a minha mulher, que tinha aprendido serviço social muito bem, era a diretora do Centro de Desenvolvimento Social de Planaltina. O Serviço Social de Planaltina era desenvolvido por ela. E o Átila dirigia o Centro de Saúde.

            FA: Todos ligados à Fundação do Serviço Social do Distrito Federal?

            AL: Ela era do Serviço social e ele da Secretaria de Saúde.

FA: Ligados à Fundação?

AL: Fundação Hospitalar do Distrito Federal que se chamava. E nós chegamos só nós, já tinha a estrutura arrumada. Tinha a saúde e tinha o serviço social. Só chegamos o Frederico e eu e estava com tudo pronto pra a gente fazer o trabalho. E o Frederick chegou então com essa ideia dos auxiliares de saúde. E aí discutimos, um ano inteiro discutindo como ia ser esse negócio de auxiliar de saúde. E aí o serviço social já entrou mesmo pra valer, como é que ia ser o auxiliar de saúde, como formava esse auxiliar de saúde, como é que forma o indivíduo pra chegar na casa, como é que você forma mesmo um auxiliar de saúde. Isso foi essencial, nós não sabíamos nada disso. Sabia que era importante, importante que vacine, que a mãe venha pra vacinar, que venha pra fazer pré-natal, que faça puericultura, que venha todo mês pra examinar a criança, como é que tá, pesar, vacinar. Mas como fazer isso nós não sabíamos, aí o serviço social que sabia fazer isso bem. Já estudando Paulo Freire, Laura Oliveira Lima, dinâmica de grupo. Elas eram doutoras nisso, eram oito assistentes sociais que dirigiam isso e fizeram a preparação do auxiliar de saúde que chegou.

FA: Isso a partir de setenta e quatro?

AL: Setenta e quatro, começamos em setenta e quatro. E os agentes de saúde foram selecionados em setenta e seis, foram formados, e trabalharam em setenta e sete, setenta e oito. O Paranaguá fez a dissertação de mestrado dele analisando esse trabalho, dos auxiliares de saúde, essa experiência dos auxiliares de saúde. Paranaguá começou como um interno, com um estudante, do sexto ano, aí fez residência, depois o mestrado. Esses cinco anos que a gente passou lá em Planaltina foram o tempo que ele fez o mestrado, a residência e o internato.

FA: E qual o contato que vocês tinham com outras experiências parecidas que pudessem estar em andamento? Por exemplo, Montes Claros já estava em andamento?

AL: Tinha notícia. Já n final né? Aí tivemos notícia de Londrina, tivemos notícia de Paulínia, lá do Arouca. O Frederico conheceu o Guilherme, era amigo do Guilherme.

FA: Isso em Ribeirão Preto?

AL: Não, o Guilherme é...

FA: Em Campinas.

AL: Não. Campinas era o Arouca. Paulínia. E o Guilherme era na USP, era o Centro de Saúde do Butantã. Ele dirigia a Medicina Preventiva, Guilherme Rodrigues da Silva, que era o homem... E uma coisa importante em São Paulo que foi o curso experimental em medicina. Ouviram falar?

FA: Ouvi sim. Foi pela Secretaria do Estado, não?

AL: Não. A USP. A USP com o Guilherme. O Guilherme propôs um curso novo de medicina, aí com toda aquela transição lá... “Não! então você faça a experiência”. Só foi uma turma, aí a base era o Butantã, como era Sobradinho, como era o Instituto de Medicina Preventiva. A ideia era que tivesse um centro de saúde em que o aluno pudesse ver, trabalhar com centro de saúde, trabalharia também no hospital, o Hospital das Clínicas, claro que era o Hospital das Clínicas, e todo o curso básico tinha que ter, mas ele tinha uma participação importante no Butantã, no Centro de Saúde do Butantã. Mas aí durou pouco o curso, só foi uma experiência porque USP é USP né?

FA: Muito experimental né?

AL: Tinha que ser a tradição mesmo, tinha que aprender a clínica, o Hospital das Clínicas, era a gastrenterologia, era biópsia, era não sei o que mais né?

FA: E a estudantada?

AL: Só um instante. Agora uma coisa importante também que... isso já foi... a gente começou o trabalho e à medida que o trabalho foi se desenvolvendo a gente começou a contatar outras instituições, essas notícias que a gente ia tendo, também foi aqui essas experiências foram amadurecendo, então... o que que eu ia falar? Ah sim! Uma experiência muito importante foi do Secretário de Saúde de São Paulo, Walter Leser,  não sei se vocês ouviram falar, então alguns estudantes de Brasília saíram pra trabalhar com o Walter Leser. O curso de especialização em saúde pública era de um ano, ele fez em metade de um ano porque ele queria todo o centro de saúde ser dirigido por um sanitarista, aí atraiu gente muita, e como em Brasília a gente estimulava muito isso, vários estudantes de Brasília que terminaram o curso foram ser médicos lá de saúde pública lá do Walter Leser. Isso foi uma grande experiência realmente, importante.

CP: Como é que vocês olhavam para as experiências da Fundação SESP?

AL: Eu vim conhecer quando cheguei aqui, foi que eu fui ter... Não, tinha lá na experiência de Planaltina, uma pessoa que fazia a nossa parte administrativa, era um dos homens do SESP, ele fazia a parte contábil do projeto, era uma pessoa importante do SESP que o Frederico conseguiu que ele fosse fazer a nossa parte administrativa, era o que eu ouvia falar de SESP. Agora, aqui no Ceará que eu fui conhecer então o SESP. Aí eu fui ver as unidades do SESP, essa ideia de visitadora.

CP: Quando o sr. fala no Ceará, é quando o Sr. volta pra Secretaria Estadual de Saúde? Em setenta e oito né?

AL: Isso, isso. Setembro de setenta e oito.

FA: Deixa eu fazer uma pergunta tradicional. Nessa época aí...

AL: O ritmo que a gente tá caminhando, tá indo bem assim?

FA: Tá ótimo, ótimo, ótimo. Tá bom pro Sr.?

AL: Tô falando demais? Quer respostas menores?

FA: Não, não. Pelo contrário, tá excelente. Esse final dos anos setenta, tem aquelas experiências das Semanas de Medicina Comunitária, que sobretudo, a organização estudantil ia produzindo essas... O sr. dá alguma importância a isso como mecanismo de integração das experiências?

AL: Não porque o nosso era o ano inteiro, não tinha esse negócio de semana, o ano inteiro a gente ia fazendo isso, não tinha negócio de semana, porque a gente já levava os estudantes pra verem isso lá na prática. Nos últimos anos em que eu já estava em Planaltina eu levava os estudantes lá do Mecanismo de Agressão e Defesa, já no segundo ano, levava eles nas casas pra ver, fazer entrevistas.

FA: Mas essas semanas reuniam estudantes do Brasil inteiro, eles se juntavam pra trocar experiências. Você não tem memória disso? Tem memória não. Não participou. Tá bom. Carlos.

CP: Fala um pouquinho da sua volta pra cá pro Ceará. O Sr. vai assumir a coordenação regional de Iguatu, não é isso?

AL: Não era coordenação, eu fui ser sanitarista, que o Estado fez um concurso pra colocar um sanitarista em cada região do Estado. Tinha umas treze regiões no Estado. E tinha uma vaga pra cada região do Estado, e eu me candidatei pra minha região lá. Iguatu era a sede da região. Me candidatei que eu estava em Brasília me preparando pra sair pro Doutorado, estava estudando inglês, aquele negócio todo, formulário pra bolsa lá, pra fazer Lausanne (Suíça), John Hopkins ou em Harvard. Foi na época que a universidade estava estimulando as pessoas a fazerem doutorado, que nós chegamos em Brasília, quase ninguém tinha doutorado, era gente que pegava... não era fácil levar uma pessoa pra Brasília. Era o currículo, o cara é interessado, é bom, gosta, sabe medicina e quer participar desse projeto, então ia. Um ou outro tinha curso doutorado. Mas aí chegou uma época que a universidade... a carreira né? A carreira de professor você tem que fazer pós-graduação, pra seguir a carreira. Aí eu estava me preparando pra ir pro doutorado, fazer saúde pública. Eu já tinha me afastado da microbiologia, quando eu fui pra planaltina ainda fazia um pouco da microbiologia, mas já fui essencialmente pra saúde pública mesmo. Aí eu ia fazer o doutorado em saúde pública. Mas aí apareceu esse concurso aqui de saúde pública, de sanitarista. Aí eu disse: “Poxa! É a melhor coisa que eu já pensei”. Vou ser sanitarista do Ceará. Minha ideia era voltar pra terra. Quando eu fui pra Brasília, fui pensando em passar um tempo lá, aprender e voltar. Quando eu vi então o concurso. “Poxa! A melhor coisa que eu já pensei na vida foi essa”. Vou ser sanitarista, que era uma coisa que eu aprendi a fazer, sou, hoje sei fazer saúde pública, e vou pra minha terra. Agora a Miriam era assistente social e tinha uma vaga pra assistente social no Estado todo, no concurso. De sanitarista também. Era dividido entre médicos, enfermeiros, dentistas, eram trinta vagas, trinta e duas vagas, uma pra cada região do Estado, que podia ser qualquer profissão, e um grupo de vagas pra seis médicos, seis enfermeiros, três farmacêuticos, era uma carreira nova de sanitarista. E a Miriam passou pra assistente social, pra vaga de assistente social, só que tinha que ser em Fortaleza, mas aí eu passei pra Iguatu e consegui que ela fosse pra Iguatu. Fortaleza já tinha um monte de assistente social e Iguatu não tinha nenhuma, aí consegui que ela fosse pra lá. Aí lá realmente foi uma coisa muito importante.

CP: Essa época vocês já estavam casados?

AL: Já, já fomos pra Brasília casados. Já fomos pra Jucás, logo depois que cheguei do Rio já casamos e fomos pra Jucás.

CP: Mas o Sr. estava comentando que foi nesse retorno que o sr. conheceu a experiência do SESP né? Fala um pouquinho.

AL: Ah sim. Foi aqui no Ceará. Primeiro eu sabia muito de saúde pública, realmente eu fui muito bem no concurso, tinha uma experiência no Ceará que pouca gente tinha, quase ninguém tinha essa experiência que eu tinha, viver essa coisa de saúde comunitária, no Ceará não existia isso. Então eu cheguei muito bem formado, muito bem preparado pra aquilo que eu ia fazer. E com tempo, com dedicação pra estudar. No Ceará ninguém se dedicava à saúde pública. E tive tempo então de conhecer as coisas, de conhecer o Ceará. Na região de Iguatu eu cuidava de quatorze municípios, e um dos municípios tinha a Fundação SESP, e aí foi quando eu conheci mais a Fundação SESP. E também conheci a Fundação SESP aqui no Estado. Era uma coisa importante, como eu queria conhecer a saúde pública, queria conhecer tudo de saúde pública que houvesse no Estado, e o SESP era uma coisa que existia no Estado.

CP: Fala pra gente assim, em termos práticos, o que significava cuidar de quatorze municípios naquela época em termos de atividades?

FA: O que que era a rede de saúde no Brasil? Se se pode se chamar assim?

AL: Tinha alguns centros de saúde, tá certo? Dos quatorze municípios Iguatu era a sede, que era um bom centro de saúde, com médicos, dentistas, que iam poucas horas, mas davam assistência. Tratavam os hansenianos, tratavam os tuberculosos, tinha vacina e tinha alguma atividade médica clínica, tinha uma enfermeira. A região toda devia ter uns três enfermeiros, dos quatorze municípios. E os outros municípios alguns tinham centro de saúde, que o médico ia lá uma hora por dia, atendia o doente e algum tuberculoso que tratava, ou vacina, era muito pouco que fazia em saúde pública. Aí tinha as campanhas de vacina, época de campanha de vacina, vacinava o povo. Sarampo em grande quantidade, paralisia infantil.

FA: E a rede hospitalar, como é que era?

AL: Iguatu tinha dois hospitais que atendiam pelo INAMPS. E além de Iguatu tinham mais três cidades que também atendiam pelo INAMPS, então dos quatorze municípios, quatro tinham hospitais que atendiam pelo INAMPS. E nas outras cidades algumas atendiam pelo Funrural, não sei se vocês já ouviram falar. Era a população mais pobre que pra não ficar sem nada o governo dava um dinheirinho ali, pouco.

FA: Mas eram atendidos em prédios próprios, em instalações próprias?

AL: Filantrópicas. Essencialmente filantrópicas. Todas filantrópicas. Iguatu tinha os dois hospitais maiores que atendiam pelo INAMPS e também o Funrural, e nas outras cidades tinham mais pequenos hospitais, também tinham três que atendiam pelo INAMPS e tinham mais umas três ou quatro que atendiam pelo Funrural, coisas muito simples.

FA: Mas com internação?

AL: Com internação. Pra você ter uma ideia, três enfermeiras só, pros quatorze municípios. E médicos, dessas quatorze cidades, uma, duas... oito tinham médicos morando na cidade, seis não tinham médico. O médico ia lá uma vez por semana. Agora o que era esse trabalho? Chamava Delegacia Regional de Saúde. O trabalho era muito pouco. Era isso de vacina que algumas cidades tinham. Iguatu tinha um centro de saúde, era a coisa mais importante. Era um centro de saúde que tinha dois dentistas, devia ter uns dois médicos que atendiam num consultório comum, como se fosse um centro de saúde comum. O dentista ia lá, atendia as pessoas, o médico atendia as pessoas, e tinha esses atendimentos aos tuberculosos e hansenianos, esse era um programa já antigo que havia no centro de saúde. E a vacina, certo? E eu cheguei, como é a saúde pública? Quem é que tem que fazer isso? Então a primeira coisa que eu fiz foi conhecer todo mundo. Conhecia todos os médicos, todos os hospitais, o que se fazia, conhecia todos os prefeitos. O que que se podia fazer? Tudo que eu imaginava que seria saúde pública, tinha que implantar tudo. Primeiro :os atestados de óbito. Morria, de que que esse povo tá morrendo? Precisamos ter atestado de óbito, ou a declaração de óbito. Começando. Setenta e oito, tinha havido a Alma-Ata. O PPREPS acho que veio em setenta e nove, oitenta.

CP: Sete meia. PPREPS? Setenta e seis.

AL: Pode ter sido as ideias, mas que foi assim o lançamento, maior, que o Carlyle [Guerra de Macedo] teve um prestígio maior acho que foi em oitenta e nove, não sei.

CP: Aí a renovação do PPREPS. Já estava mais consagrado.

FA: É preciso ver quando ele chega ao Ceará.

AL: A notícia como é que chega né? Aquele manual dele grande. Então das coisas que a gente começou a fazer. Primeiro era ter os óbitos. Do que é que esse povo tá morrendo? É importante. Digamos que 5%, 10% dos óbitos eram conhecidos, tinham a declaração de óbito. O resto ninguém sabia do que o pessoal estava morrendo, que idade estava morrendo. Esse era um dos trabalhos importantes que a gente começou a fazer. O outro era implantar as unidades de vacinação, que toda cidade tivesse seu posto de vacinação. BCG, era pouco. Só em Iguatu que tinha BCG. Aplicar BCG, era difícil aplicar BCG. Só em Iguatu. Das quatorze cidades Iguatu aplicava BCG. Então, que cada cidade tivesse a vacinação completa. O cuidado com a geladeira, a chamada rede de frio, o termômetro na geladeira, quer dizer, a rede de distribuição da vacina. Pra que de fato as quatorze cidades tivessem vacinas, permanentemente, o ano inteiro, não só em negócio de campanha, e que tivesse todas as vacinas. Pólio era fácil de vacinar, todo mundo tinha, mas aplicar, formar vacinadoras pra que todos os municípios tenham vacinadoras. E aí começamos... A odontologia, começar a funcionar, ter um sistema de manutenção dos consultórios odontológicos. Você devia ter quatro ou cinco dentistas nos quatorze municípios, mas o consultório quebrava, pronto, ficava aí, então tinha que ter alguém que... começar a ter uma rede de funcionamento, de manutenção dos consultórios odontológicos.  Era uma coisa importante. Medicamentos, mesmo medicamentos pouco que tivesses, que chegassem nos quatorze municípios.

CP: Essas preocupações eram compartilhadas com outras regiões ou era uma...

AL: Iguatu tinha duas regiões melhores, por exemplo, Fortaleza que era uma região. Sobral, depois de Fortaleza a mais organizada era Sobral e tinha algumas outras que ia caindo o nível até chegar nas outras que não tinha quase nada. Iguatu pelo menos tinha um bom Centro de Saúde. Já era uma coisa importante, ter um bom Centro de Saúde. Mas...

FA: A tarefa era estruturar o serviço de saúde?

AL: O serviço de saúde. E os hospitais, ligar os hospitais com a saúde pública, porque lá quando eu vivia em Brasília o hospital fazia parte da saúde pública, o hospital era junto, não tinha separação entre hospital e saúde pública. O hospital, a vacina, tudo era junto, a necropsia, tudo era... a chamada Unidade Integrada de saúde de Sobradinho. Porque tinha tudo. Eu não via como separar, hospital é uma coisa e saúde pública era outra.

CP: Então o Sr. está dizendo que havia uma discussão sobre o que poderíamos chama rede?

AL: Ninguém falava nessa palavra. Havia o Funrural e o INAMPS e o Centro de Saúde do Estado, e o Posto do INAMPS, pra ser atendido também tinha o posto de ambulatório do INAMPS, isso em Iguatu. Em Iguatu tinha o posto do INAMPS e tinha os dois hospitais, e tinha mais o Centro de Saúde do Estado. Rara a cidade completa que tinha essas coisas.

FA: E em setenta e oito o INAMPS estava atendendo só segurado ou já estava atendendo...

AL: Era só segurado. Não, tinha o Funrural. O PAM atendia o segurado e os dois hospitais atendiam o segurado, que era bem pago, os médicos que eram credenciados pra atender, ganhavam bem. E tinha a clínica de raio x e de laboratório que também ganhava bem, então o INAMPS estava bem. Aí o Funrural era a sobra que tinha.

CP: Nessa época em termos formais qual era o papel da delegacia?

AL: Isso que eu estava começando a falar.

CP: Então o que o senhor está descrevendo é tanto o prático quanto o papel formal?

AL: O papel formal era cuidar da saúde pública. Era uma coisa meio sem saber muita clareza o que era. O Ministério da Saúde, que de fato quem tinha o direito era o INAMPS. O tratamento do doente era o INAMPS. O que era o Ministério da Saúde? Era tratar da tuberculose, hanseníase, a campanha de vacina. Que mais? Atestado de óbito, nascidos, laboratório pra epidemias que aparecessem, onde tinha laboratório.

CP: E o Sr. comentou uma coisa muito importante que era tentar conjugar a saúde pública ao hospital.

AL: Que era tudo junto. No hospital era um médico só, a cidade só tinha um médico, ele era o médico do centro de saúde e era o médico do hospital.

CP: E como é que esse problema foi enfrentado?

AL: Aí eu comecei a discutir, conversar com eles. E aí começamos a... o Estado começou a fazer concursos também pra enfermeiro, então começou a ter médico e enfermeiro, em toda cidade passou a ter pelo menos um médico e enfermeiro. Isso foi já depois que a gente chegou lá. O Brasil foi mudando e o Ceará também foi mudando.

FA: O Ceará que foi mudando ou foi Iguatu que foi mudando?

AL: Junto com o Brasil também. Claro que lá foi mais rápido, mas houve essa... ter médico e enfermeiros nas cidades, foi um avanço importante. Houve concurso pra médico e enfermeiro e praticamente toda cidade passou a ter um médico e um enfermeiro. Isso já foi um avanço importante, então chegava na cidade você tinha que conversar, saber quem que tomava conta da vacina, então você tinha o enfermeiro que cuidava da vacina, e tem o médico no Centro de Saúde, mesmo que fosse uma hora por dia, duas, mas pelo menos tinha um médico. E aí a gente começou a discutir... primeiro visitar, o pessoal saber que existia um sanitarista na região, que eu visitei todas as cidades, todos os Centros de Saúde. Quem é que tá lá? Médico, dentista, é funcionário do Estado, vai lá uma hora, tá no hospital, que ele era médico do Centro de Saúde e do hospital. Ou ele tá no centro de saúde ou no hospital, contando que atendesse o cliente. E o que era o hospital, então você vê, grandes quantidades, o sarampo enchia os hospitais, sarampo era um negócio impressionante,

FA: Quando tinha um surto era...

AL: Quando tinha um surto enchia os hospitais, era aquela meninada morrendo de pneumonia com sarampo em quantidade, e coqueluche, difteria, essas coisas todas que... não se vacinava né? Então uma coisa importante foi formar os vacinadores, formar as unidades de vacina formar a rede de frios, ter a vacina com boa qualidade, ter a geladeira com temperatura bem regulada. Então essa rede de vacinação foi uma coisa importante, a gente começar a ter isso. Começar a ter dados de nascimento e óbito, saber de que o pessoal morria. E seria a saúde pública tradicional, mas pelo menos que essa existisse, porque nem essa existia

FA: Há uma menção de uma certa Super 8 que você faz. Você tem essa Super 8?

AL: Tenho, mas não tá mais funcionando. Ah! O Filme? Não. Isso foi um congresso de saúde pública lá em São Paulo na época do Leser. São Paulo era quem tinha mais sanitaristas, então organizou um congresso de saúde pública, aí eu fui um dia lá e levamos um filme mostrando o trabalho em Jucás.

FA: Isso em setenta e oito é?

AL: Não, em setenta e oito eu cheguei no Ceará. A secretaria me obrigou a ficar um ano em Fortaleza, porque achava que eu podia fazer trabalho político no interior, aí segurou a gente um ano em Fortaleza.

FA: Botou sob vigilância.

AL: Foi bom porque aí eu conheci bem a Secretaria de Saúde, conheci os hospitais todos, fiz um curso de saúde pública, que eu nunca tinha feito um curso de saúde pública, aprendi saúde pública na prática, mas curso de saúde pública eu nunca tinha feito. Aqueles cursos lá da ENSP junto com as universidades, curso de seis meses que a ENSP fez com as universidades do Brasil todo, aí eu fiz aquele curso.

FA: A essa altura Alma-Ata tinha uma importância pra você?

AL: A Alma-Ata foi muito importante.

CP: À primeira hora? Já naquele contexto?

AL: Na hora que saiu Alma-Ata eu já sabia aquilo, já estava por dentro de saúde pública, já lia a OMS permanentemente, já lia tudo, na universidade, eu era professor, eu acompanhava muito a OMS, e isso foi uma coisa importante pra mim, que no Brasil o pessoal valoriza pouco. Eu comparava muitos países, quais são os países que estavam na frente, em mortalidade infantil, que sempre foi uma coisa que me impressionou muito. Há países que estão na frente e outros que estão atrás, porque esses países estão na frente, porque a Suécia e a Escandinávia estavam muito na frente dos outros, então eu estudava, era possível reduzir a mortalidade infantil. Eu sempre estudei muito a comparação.

FA: Quando ocorreu Alma-Ata você já estava no Ceará ou ainda estava...

AL: Já estava. Em setenta e oito, eu cheguei no Ceará em setenta e oito, mas logo que cheguei eu tomei conhecimento, foi uma coisa que...

CP: O Sr. chega em setembro né?

AL: Setembro de setenta e oito.

CP: Alma-Ata estava acontecendo.

AL: Logo que eu cheguei aqui teve já, foi a notícia da Alma-Ata, que eu acompanhava o que estava acontecendo, e aí fortalecia.

FA: E o Brasil não foi, o que o Sr. achou na época?

AL: O Brasil não dava muita... Teve só o Carlyle que levantava a bandeira. E São Paulo. São Paulo era o grupo de sanitaristas importante, era São Paulo. E Brasília com o Carlyle, que foi uma pessoa importante na OPAS em Brasília.

FA: Então a conferência, o seu resultado, a sua declaração, esses documentos chegavam e mobiliava...

AL: Claro, a Organização Mundial de Saúde estava dizendo isso, que era o que eu fazia lá em Planaltina. Isso aqui é verdade pro mundo todo. Você começava a ter documentos oficiais.

FA: E você mobilizava isso na discussão política, no debate interno?

AL: Claro, exatamente. Mas o mais importante foi formar esse pensamento na região de Iguatu. Conseguir que os médicos, os enfermeiros, os dentistas, começassem a pensar num sistema se saúde, então isso foi uma coisa importante, juntar as pessoas, conversar. Eu ia visitar cada um, no seu consultório, no seu hospital, e aí eles começavam a ver, poxa, existe isso, existe saúde pública, existe um sanitarista, quer dizer, isso existe mesmo. Essa preocupação em montar um posto de vacina, ninguém conhecia isso. Então começar a ter uma consciência de saúde pública. E os prefeitos todos, mobilizei, fui visitar cada prefeito também. Eu ia às igrejas, pra ter o atestado de óbito, como é que esse pessoal morre, alguém anota, como é que esse pessoal morreu, de que morreu. Você tinha que ter no hospital, muitos morriam no hospital, como é que morreu, o médico dá uma declaração de óbito, você começar a ter uma conversa de saúde pública.

CP: À essa época o senhor tinha alguma militância política partidária?

AL: Não, de jeito nenhum. Eu tive militância política na universidade, como estudante, no diretório, depois nunca mais. Aí depois fui prefeito lá em Jucás, já muito depois. O único médico que morava, eu trabalhava em Iguatu, mas morava em Jucás.

FA: Você vai ser Secretário de Estado né?

AL: Vou. Na eleição do Tasso... O Ceará teve uma administração horrível né? Era um dos piores Estados em termos de saúde pública quando a gente chegou aqui. E foi durante vários anos foi muito ruim a administração da saúde.

FA: Quem mandava no Estado? Vamos dar nomes aos bois.

AL: Eram os Coronéis, três Coronéis aqui que mandavam. Da Arena.

FA: Pode dar os nomes?

AL: Claro. Muito conhecidos. Coronel Virgílio Távora. Coronel Cesar Cals, esses dois já morreram, e Coronel Adauto Bezerra que já tá com noventa anos.

FA: Adauto Bezerra. Cesar?

AL: Cesar Cals foi Ministro da Energia, Virgílio Távora, foi Ministro da Aviação. Virgílio foi uma pessoa importante, era chamado de Bossa Nova da UDN, foi o governador que fez concurso pra ter médicos e enfermeiros nas cidades todas. Mas o primeiro governo dele foi muito bom, aí depois ficou no segundo governo aí já foi clientelismo tomando conta. E a ARENA, veio o governo ARENA. Ele inclusive teve pra ser cassado em sessenta e quatro, mas tinha o tio Juarez Távora, que era um homem importante e segurou. Quando Castelo Branco era o Presidente, foi inaugurada aqui a energia que vinha de Paulo Afonso e ele fez questão de fazer uma homenagem ao João Goulart. Era um homem importante né? Mas depois, aí se adaptou na Arena né?

CP: Como se diz entrou no esquema.

AL: Era o padrão mesmo da política dos militares.

FA: E como é que essa política recebeu esse movimento inovador lá em Iguatu?

AL: Porque eu não tinha nenhum envolvimento político partidário. Trabalhava bem com todos os prefeitos, e aí tinha prestígio na secretaria, porque eu era a região que alguma coisa estava sendo feita. Eu era o único médico em tempo integral dedicado exclusivamente à saúde pública, e nenhum mais dentro da Secretaria de Saúde. Todo mundo ia lá trabalhar um pouquinho, mas médico completamente dedicado à saúde pública era só eu.

FA: Mas aí vem Tasso e...

AL: Sim, na eleição de oitenta e seis né?

FA: Primeira eleição é de oitenta e dois, depois da ditadura militar primeira eleição estadual é de oitenta e dois.

AL: A ditadura foi até oitenta e quatro.

FA: Sim, mas em oitenta e dois já tem eleição pra governo estadual.

AL: Tem, sim, mas aqui eu não passei nada porque já sabia aqui que era a ARENA que ia ganhar. De cento e oitenta municípios só tinha cinco do MDB. Eu fui fundador do MDB na minha cidade Jucás, mas antes de ir pra Brasília, depois vi que não tinha como enfrentar. Os três Coronéis cada um era dono da Arena 1, Arena 2, Arena 3, e os três que ganhavam tudo né?

FA: E se pegavam na eleição né?

AL: Era. Entre os três mesmos ficava tudo entre eles. Somava os votos da ARENA toda e pronto né?

Pausa (1:32:40)/Retorno (1:53:45)- 21 min

CP: Dr. Carlile, vamos retomar, falar um pouquinho do seu trabalho à frente da Secretaria de Saúde de Jucás.

AL: Não, de Jucás eu nunca fui Secretário, fui Prefeito.

CP: Iguatu.

AL: Fui Secretário de Saúde de Iguatu. Porque Iguatu era a sede da regional. Meu trabalho como sanitarista era em quatorze municípios, mas a sede era em Iguatu.

CP: Então, como é que foi assumir essa secretaria, em que condições?

AL: Só voltando um pouquinho. Em oitenta e seis foi a eleição já pós Tancredo Neves, e aí apareceu então o Tasso como uma candidatura nova, essa era uma coisa nova mesmo, você tinha a ARENA de um lado, era PDS, não sei que nome dava, mas era quem representava a continuidade, os coronéis e surgiu então o Tasso como PMDB, mas como uma coisa com possibilidade de vitória. Embora ninguém conhecesse ele, as pesquisas era um dois por cento pra começar, mas a gente via que tinha uma chance de ganhar a eleição porque era um indivíduo novo, um industrial, tinha trabalhado naquela coisa das diretas, foi presidente do Centro Industrial do Ceará, tinha noção de que era um indivíduo com um novo pensamento, e aí eu me engajei nisso pra valer, na campanha. Não só eu, como um grupo grande de pessoas que pensavam no novo, porque já tinha havido o Tancredo Neves, já tinha havido a nova república, e já tinha havido a oitava conferência de saúde, então já se respirava uma coisa nova, se queria uma coisa nova, e embora eu não tivesse nenhuma ligação partidária, nada, quer dizer, eu tinha sido o MDB antigo, era filiado ainda mas sem nenhuma participação mais... mas aí na hora que o Tasso resolveu se candidatar, aí o governador, o Gonzaga Mota, que tinha sido eleito pelos coronéis, adotou o Tasso como seu candidato, aí fez algumas mudanças na Secretaria de Saúde do Estado, e me chamou então pra se diretor do Departamento de Ações Básicas, isso em junho de oitenta e seis, e aí já dentro dessa nova linha, já fui indicado pra ele pelos profissionais de saúde, que a gente havia se reunido aqui em oitenta e cinco, logo que o Tancredo ganhou a eleição no Congresso, nós resolvemos nos juntar, “Ó! Ganhamos a eleição, mas aí o que que a gente vai fazer com essa eleição, com essa redemocratização que a gente conquistou, o que a gente vai fazer?” E aí começamos então a organizar um Congresso Cearense de Saúde, não era ainda a Conferência Nacional, foi em oitenta e seis, mas em oitenta e cinco nós já reunimos aqui, iniciativa nossa, juntamos o Conselho de Medicina, associações médicas...

FA: Não era parte da pré-conferência não?

AL: Ninguém falava em conferência, era iniciativa nossa do Ceará, olha, a gente precisa de um projeto de saúde para o Ceará. Eu já estava aqui desde setenta e oito, então vamos pensar um projeto de saúde, já tinha toda minha experiência lá em Iguatu, já era reconhecido como uma experiência importante lá de saúde pública, e aí conseguimos congregar todos os profissionais de saúde, associações, médicos, enfermeiras, assistentes sociais, dentistas, farmacêuticos, juntamos todos os profissionais de saúde e mais algumas associações religiosas que tinham algum trabalho de saúde, e esses profissionais foram ao governador indicar meu nome pra que assumisse esse departamento lá da Secretaria de Saúde do Estado, na hora que o governador resolveu se lançar, lançar o Tasso como candidato de oposição aos coronéis, aí eu vim pra cá, entrei na campanha já do Tasso, quer dizer, trabalhando na secretaria mas de noite, nos fins de semana já em campanha.

FA: Redigindo o plano de governo suponho.

AL: Trabalhando o que seria uma proposta de governo, como esses profissionais todos que se juntaram. Então foi formado grupos de trabalhos em diversas áreas, então a saúde tinha um grupo de trabalho em que eu era parte desse grupo de trabalho, trabalhando pra eleição, mas trabalhando também pra um projeto de governo. Isso a partir de junho. A eleição em outubro, ganhou a eleição, aí o Tasso chamou algumas pessoas pra trabalharem os projetos de governo, chamou quatro pessoas pra trabalharem o projeto de saúde, em cada área ele chamou quatro pessoas pra trabalhar o projeto, eu fui um dos quatro que foi chamado, e aí trabalhamos intensamente o projeto de governo, de modo que quando assumimos em vinte e cinco de março, já estava tudo bem arrumado, que uma das ideias era... aí já tinha havido oitenta e seis, a conferência nacional, então vamos fazer o sistema único de saúde no Ceará. Havia aqui a Secretaria de Saúde e havia a Fundação de Saúde. A Fundação de Saúde do Estado cuidava dos hospitais e a Secretaria cuidava dos Centros de Saúde, o dinheiro estava na Fundação. Então eu já fui ao mesmo tempo o Secretário e Presidente da Fundação de Saúde. E quando foi... e com o Hésio [Cordeiro], eu assumi também a Superintendência do INAMPS, então eu era Superintendente do INAMPS, Secretário de Saúde e Presidente da Fundação de Saúde do Estado. Já fizemos o SUS aqui, de fato, como o de São Paulo também foi assim.

FA: Pois no Rio não foi assim não.

AL: No Rio, eu sei que o Rio...

FA: O Rio era uma briga com o Superintendente...

AL: O Arouca assumiu a Secretário de Saúde, eu era o Secretário aqui e o Arouca no Rio, mas no Rio a coisa não caminhou, tanto que ele preferiu ficar foi na Fundação mesmo.

FA: Ele foi Superintendente do INAMPS quando o Hesio caiu, [José] Noronha e o Secretário, enfim, não se entendia mesmo. Também tinha o governo Brizola que não era fechado com o Sarney, que não dava conexão né? Quando o Moreira Franco, em oitenta e seis foi o Moreira Franco, aí teve um momento de maior aproximação, mas isso se desfez muito rapidamente.

AL: Em oitenta e sete quem foi que ganhou? Que o Arouca foi o Secretário?

CP: Moreira Franco.

AL: Foi governador do Rio em oitenta e sete?

FA: É. Durante um período sim, durante um período sim, depois foi substituído pelo Noronha, mas a relação com o INAMPS nunca foi uma relação amigável depois que o Hésio saiu não.

AL: Em São Paulo foi tranquilo, Paraná foi tranquilo, no Rio Grande do Sul foi parecido também, foi tranquilo. Nós entramos em setembro, setembro de oitenta e sete, foi o SUDS no Ceará. Eu já dirigia a Secretaria, a FUSEC, a Fundação, e assumi também a Superintendência, ai pronto, o SUS no Ceará.

FA: E o que era ações básicas de saúde aí, o conceito desse negócio era o que? A essa altura, qual era a agenda?

AL: Tinha o Departamento de Ações Básicas de Saúde, que era a saúde pública, era cuidar das vacinas, da tuberculose, das mordidas de cobra, que não era hospital, que era centro de saúde, do ponto de vista técnico, que havia a parte de planejamento, de administração, finanças, mas o corpo técnico era esse departamento de ações básicas, era a saúde pública.

FA: Mas aí estava municipalizando o INAMPS não estava?

AL: Passou pro Estado. Eu assumi, mas não juntamos ainda. Eu ficava de manhã na secretaria e de tarde ia pro INAMPS, que não queria juntar porque eram duas coisas muito deferentes né? Uma coisa era o INAMPS com toda estrutura, prédios super bonitos, outra coisa era a secretaria, então com é que juntava essas coisas? Aí contratamos a FANDAP, que era uma estrutura de São Paulo pra planejar como a gente ia juntar essas três coisas, aí o... que depois foi lá pro Sírio Libanês, que foi a pessoa que nos ajudou com a FUNDAP como fazer o SUS, juntar essas três instituições.

FA: Imagino a complicação, porque eram carreiras completamente diferentes.

FA: Isso. A primeira coisa que eu fiz quando peguei o dinheiro do SUDS foi equiparar a Secretaria de Saúde com a FUSEC que a FUSEC ganhava bem, o médico da FUSEC ganhava bem, o enfermeiro. A Secretaria era ¼ do preço, aí eu equiparei, foi o maior sucesso, ganhar igual da Fundação, lá do Centro de saúde, agora sou enfermeiro igual da Fundação, ganho igual.

CP: Quais foram os maiores desafios assim? Do ponto de vista de resistência institucional, o que que...

AL: Não foi resistência, era construir uma coisa, ninguém pensava em saúde pública, era um grupo pequeno que pensava em saúde pública, então era fazer a saúde pública, quer dizer, havia aquelas coisas antigas, tradicionais, alguém que cuidava da hanseníase, tinha lá o Centro de Saúde que era hanseníase, tinha o pessoal da tuberculose, o pessoal da vacina, mas eu não tinha assim, geralmente eram os enfermeiros que faziam, tinha um médico que cuidava, mas quem cuidava da secretaria eram os enfermeiros basicamente. E você tinha que construir uma coisa nova. Hospital agora era saúde pública.

CP: Essa é que é a questão.

AL: Os grandes hospitais, era Secretaria de saúde, era Saúde Pública, então isso era uma mentalidade nova. Eu não ia mexer nos hospitais, funcionavam bem, que ótimo, que funcionem bem, não vamos misturar, mexer, mas a outra coisa tinha que ser o mesmo padrão.

CP: Qual o lugar da atenção primária nesse momento aí?

AL: Isso. Então havia os Centros de Saúde, tradicionais, muito ruins. Havia os PAMs do INAMPS, que eram bons, uma estrutura boa, os PAMs do INAMPS, então, por exemplo, eu tinha um PAM vizinho a um Centro de Saúde, então coloquei um chefe só pros dois, vizinhos um ao outro, então derrubou o muro, primeiro derrubou um muro, tinha um muro que separava o Centro de Saúde do INAMPS, passou a ter o mesmo padrão, funcionário ganhando... não ganhava igual o INAMPS mas ganhava bem, passou igual a Fundação. Então fazer os Centros de Saúde funcionarem bem, ter médico, ter enfermeiro o dia todo, ter remédio, e o que foi de novo foi o Agente de Saúde, esse é que foi o novo, esse não tinha nada, tinha umas experiências precárias lá na região, mas aí eu propus ter seis mil Agentes de Saúde lá no Ceará, que iria custar... naquele tempo a inflação era alta demais, todo mês 30% de inflação, chegou a ter 70% de inflação no mês. Aí eu fiz o cálculo em dólar. Cheguei pro Governador, pro Tasso e disse: “Olha! Nós vamos fazer um programa com seis mil agentes de saúde que vai custar um dólar por cada Cearense por ano”. Tinha seis milhões de cearenses na época, o programa vai custar seis milhões por ano no Ceará. “Mas é isso mesmo?” Eu disse: “É!”. Não era uma coisa comum pro pessoal de saúde chegar e falar de dinheiro, quanto custa cada coisa, o que vai fazer cada coisa, aí já foi um impacto importante isso aí, você saber quanto é que vai custar um programa, e que resultado vai dar. E aí foi uma coisa importante contratar essas seis mil mulheres pra serem Agentes de Saúde, mulheres pobres.

FA: E isso não tinha experiência comparável no Brasil?

AL: Não, tinha essa experiência em Planaltina, tinha a nossa experiência de adaptação lá na região...

CP: Mas não em larga escala.

FA: Nessa escala não?

AL: Mínima a escala. Mas a nossa experiência era muito sólida, porque tinha sido cinco anos lá em Planaltina, mais os seis anos de Jucás, então era muito sólida minha experiência, e eu sabia como os médicos viam, como os enfermeiros viam, era uma coisa muito... era fácil de fazer.

FA: Então a inspiração pra essa iniciativa inaugural no Ceará é a experiência própria sua e de Miriam, mais do que qualquer referência teórica?

AL: É, agora o que foi importante é que nessa discussão de junho até março, de preparação do plano de governo, consegui que um grupo de técnicos, médicos, que assumiram com a gente a Secretaria de Saúde, entendessem isso bem e concordassem. Porque um era pediatra, o outro era clínico e o outro era de radioisótopos, quatro médicos, cada um numa coisa, eram quatro casais, sete médicos e a assistente social, mas isso discutido com muita paciência, explicar pro pediatra, explicar pro clínico o que é o agente de saúde, o que ele é capaz de fazer, aí eu convencia eles, e quando a gente assumiu a secretaria...

CP: Já tinha o apoio deles?

AL: Total. Então eu só fiquei um ano como secretário, mas a equipe durou vinte anos fazendo a mesma coisa. A equipe foi formada muito bem. Só fiquei um ano e voltei pra Jucás, aí quando fui ser Secretário de Saúde de Iguatu em oitenta e nove. Fiquei de março de oitenta e sete a abril de oitenta e oito, como secretário, aí voltei pra Jucás e em oitenta e nove assumi a Secretaria de Saúde de Iguatu. Mas essa formação da equipe durante esses meses de trabalho, com paciência, discutindo cada coisa o que era, vendo com eles também a pediatra, foi importante, porque a pediatra foi a primeira que foi conquistada, cuidar da criança, e os outros eram clínicos mas não sabiam de nada disso mas foram vendo que era importante ter um sistema único de saúde, as ideias do SUS, ganhamos eles todos em começar a fazer as coisas, e fazer bem feito, os hospitais serem bem feitos, a clínica ser bem feita, que o médico trabalhasse.

FA: Teve uma coisa de contratar mulheres né?

AL: As agentes de saúde foram seis mil mulheres.

FA: Isso foi uma decisão pensada.

AL: Minha. Porque eu queria achar as grávidas todas, foi o primeiro trabalho do agente de saúde, encontrem todas as grávidas e tragam pro pré-natal, que era a ideia de reduzir a mortalidade infantil, cuidar da criança, e pra começar a pessoa que mais a gente vai ganhar, e mais fácil da gente convencer é a grávida, que toda grávida que cuidar muito do filho né? Então se a gente ganha a grávida, vamos ganhar a família, então, primeiro trabalho, achar todas as grávidas, e achar um enfermeiro ou médico que cuide delas no pré-natal.

FA: E isso foi feito também num contexto de seca, você mobilizou...

AL: Foi. O recurso que a gente usou foi o da seca, pagar um salário mínimo pra cada mulher.

FA: Em vez da tradicional frente de trabalho...

AL: Isso, que era um negócio horrível. Era só dar um dinheirinho pra ele sobreviver, que geralmente o atravessador ficava com uma parte do dinheiro que custava a pagar, mas agora, era um salário mínimo, que recebe todo final mês, mas pra trabalhar.

FA: E tem função né?

AL: Aí quando chegou o programa o Tasso: “Olha! Cada secretaria, vamos ver quantos empregos querem ter, mas que trabalhem”. Eu digo, eu quero seis mil mulheres, quero emprego pras mulheres, que essas mulheres na seca, que tem muita mulher aqui que não tem marido e precisa sobrevier. Aí foi, ganhei de imediato.

CP: O Sr. já está dando uma série de elementos para a gente produzir uma reflexão. Eu queria fazer uma pergunta para a gente tentar já elaborar uma síntese, mas assim, para o historiador, como a gente é, a gente fica muito intrigado, por exemplo, o que faz com que umas ideias ou políticas prosperem em algum lugar e não em outro?  Quais são os elementos de ordem institucional? Quais são os elementos de ordem política? A qualidade dos atores? Como é que o Sr. conseguiria explicar o fato de, se a gente olhar para a história da atenção primária brasileira, sem dúvida, a experiência do Ceará é um dos nascedouros, digamos assim, pois entendemos que a APS não tem uma só fonte, mas aqui é uma fonte reconhecida na literatura pelo êxito, pela capacidade que o Ceará teve de trazer uma contribuição para essa área. O que explica esse êxito? Qual é a combinação de fatores e elementos que a gente poderia equacionar pra diferenciar o Ceará de outros lugares? O que se teve aqui que não foi possível reunir em outro lugar?

AL: Primeira coisa é a experiência nossa, Brasília, foi pré-escola. Claro que medicina preventiva foi importante, aprender que existe medicina preventiva, existem países que estão na frente, outros não estão, mais atrás, mas a prática foi Brasília, em Brasília que eu aprendi o que é medicina, o que é causa de doenças, o que é possível fazer. Sobradinho e depois Planaltina. Em Planaltina nós conseguimos reduzir a mortalidade infantil lá, como reduzimos no Ceará de cem pra quarenta, por mil. Então por isso que eu propus pro Tasso. Qual é o plano de governo? O plano de governo é reduzir a mortalidade infantil. E isso é um plano de governo? É. Porque geralmente plano de governo é fazer tantos hospitais, fazer tantos centros de saúde, eu digo, não, eu quero reduzir a mortalidade infantil. E ele topou de cara né? Um administrador. Em vez de saber quantos centros de saúde é, eu quero reduzir a mortalidade infantil em quarenta por cento. Como? O que eu fiz em Brasília eu quero fazer aqui. Então a experiência acumulada é essencial pra você ter coragem de propor. Como é que você vai propor uma coisa dessas se você não tiver uma experiência? Você chegar pra um clínico ou pro outro, eu vou reduzir a mortalidade infantil em 40%. Você tem que ter base pra convencer as pessoas e convencer o governador e convencer a equipe, e mobilizar. Quem é contra reduzir a mortalidade infantil? Ninguém é contra. Alguém vai se contra reduzir a mortalidade infantil, vacinar os meninos, fazer um pré-natal bem feito, ter um parto bem feito ou acompanhar a puericultura? Todo menino ser acompanhado, pesado todo mês e acompanhado e tratado? Barato isso. Uma das coisas que a gente escolheu porque era possível fazer no Ceará em pouco tempo e pra dar resultado, e medido, que é uma coisa importante. A gente queria uma coisa que a gente pudesse medir, então as avaliações foram essenciais.

CP: Pra dar força política ao projeto ...

AL: Isso Não sei se vocês já viram as avaliações? Uma foi da Cecília Minayo comparando os municípios com agente de saúde e sem agente de saúde. Depois a avaliação lá do pessoal de Pelotas. Então ela avaliou a saúde da criança no Ceará em oitenta e sete e em noventa, aí mostrou a redução. Numa avaliação externa, todas as duas foram externas, avaliação só serve se for de fora, pra chegar e avaliar. E a outra coisa foi o próprio Ministério da Saúde. Dizia: “Tá acabando as poliomielites no Ceará, sarampo, tá conseguindo vacinar os meninos?” Isso foi... três avaliações importantes, e depois aplicar isso pro Nordeste todo, tivemos a sorte de ter um pediatra e Ministro da Saúde, foi o Paranaense né? O homem das bicicletas. Alcenir, que adotou o programa pelo Nordeste todo. Foi um programa do Ceará adotado pelo Nordeste todo, e a equipe nossa do Ceará que foi treinar cada Estado do Nordeste. A equipe de coordenação do Agente de Saúde foi uma pra cada Estado pra treinar, todo o pessoal de cada Estado veio aqui, depois foi uma pra cada Estado pra treinar. Então a ideia da equipe, isso foi central né?

FA: Quem liderou esse processo de formação?

AL: Nós éramos juntos, durante a campanha nós éramos juntos. Eu fui chamado pra ser secretário na véspera. O Tasso: “Amanhã venha de paletó que eu vou anunciar o Secretário de Saúde”. Como nós éramos uma equipe muito unida, todo muito bateu palma, tudo bem, é você, mas ninguém sabia quem ia ser secretário, a gente discutiu, mas sem preocupação em saber quem ia ser secretário, a gente queria um projeto.

FA: Esse projeto de formação, de trazer as pessoas dos outros Estados?

AL: Sim, isso já foi com o Alcenir, quando o Alcenir que tocou isso. Primeiro foi a Paraíba que se animou pra vir aqui olhar, que é a menina que hoje é candidata a governadora de Brasília, como é, a... fez um livro sobre projeto de saúde, enfermeira, trabalhou muito com os agentes de saúde do ministério muito tempo? Fátima. Fátima Souza. Ela é da Paraíba. Foi a primeira que chamou pra ir na Paraíba explicar o que era esse negócio, e aí o Alcenir, “Então vamos fazer com o nordeste todo”. Isso então foi muito importante, aí como a equipe, como eu falei, são vinte anos da equipe dentro da Secretaria de Saúde, vinte anos, claro que mudava muita gente, mas o espírito da equipe durou vinte anos, da Secretaria de Saúde do Estado.

CP: Em termos doutrinários, vocês se reconheciam como... “sim, estamos implantando o serviço de atenção primária em saúde?” Isso estava razoavelmente claro ou não era uma...

AL: Eu não me preocupava muito com o nome não. A ideia é o SUS, tinha que implantar o SUS e começar pelo que era mais fácil de fazer, e que tinha dinheiro pra fazer. Não adiantava eu pensar, “Ah! Vamos fazer transplante pra todo mundo”. Mas não deixar os meninos morrer o dinheiro dá. Vacinar, fazer, pré-natal, fazer parto, cuidar do menino para que ele seja bem acompanhado durante os primeiros anos de vida. Na primeira campanha de pólio que teve, em abril, eu imprimi um milhão de cartões de vacina. O pessoal fazia as gotinhas na campanha, mas ninguém anotava nada. Como você vai fazer vacina sem anotar nada? “Não, mas como é que vai dar tempo de escrever no cartão na hora da campanha?”. Um milhão de cartões, todo mundo só vacina com cartão. Aí todo mundo passou a ter um cartão de vacina. Então são coisas muito baratas, mas que dava pra fazer, o Ceará tinha dinheiro... muito pobre, mas tinha dinheiro pra fazer isso.

FA: Pois é! A literatura da saúde internacional, como discute lá a Alma-Ata, ela assinala que logo depois aquele grande projeto, de uma atenção primária abrangente que seja integral, etc, é substituída por uma ideia de atenção primária seletiva e que tem exatamente esses componentes, me parece, que vocês mobilizaram aqui no Ceará, acompanhar o crescimento das crianças, imunizar, cuidar do aleitamento materno...

AL: O aleitamento também foi muito importante.

FA: Então assim, aparentemente o Ceará adota uma ideia de atenção primária seletiva talvez em cima desses elementos que você já indicou, capacidade de resposta, capacidade de realizar e de acompanhar e de avaliar e de dar resposta social.

AL: E que o dinheiro desse.

FA: Que o dinheiro dá. Quer dizer, agora, vocês experimentavam esse debate, as pessoas debatiam nesses termos essas coisas ou não era a questão?

AL: Não. Todo mundo sabia que o que dava pra fazer era aquilo. Agora, não é de ficar só naquilo, mas pra começar era aquilo.

FA: Mas mesmo assim, dentro dos profissionais de saúde tinha gente que criticava, muito pouco?

AL: Só teve uma ou outra enfermeira que dizia: “Ai! O agente de saúde tá fazendo papel de enfermeiro, vai substituir enfermeiro”. Besteira. Eram os próprios enfermeiros que estavam supervalorizados, que a gente só implantava o programa se o município contratasse o enfermeiro, então nunca o enfermeiro foi tão valorizado. Então, o sindicato dos enfermeiros dizia isso, mas chegava os enfermeiros tudo “Ó! Nós queremos o agente de saúde”.

FA: Agora! De novo. Nessa discussão da saúde internacional e da atenção primária à saúde...

AL: Nessa discussão teórica, eu nunca entrei nisso.

FA: Mas tem uma coisa... Deixa eu insistir nisso. Porque uma das instituições que comprou a ideia da atenção primária seletiva foi exatamente a UNICEF, e eu lendo a sua entrevista assim, salta um pouco aos olhos que se houve conexão internacional com a iniciativa de vocês, foi com a UNICEF.

AL: A UNICEF instalou um escritório aqui.

FA: Eu queria que você contasse um pouco dessa... explorasse também a importância de James Grant. Me fala um pouco dessa coisa, e da ausência da OMS também que eu... Fala um pouco sobre isso por favor.

AL: Foi importantíssimo. Na hora que se começou a falar nisso, vamos reduzir a mortalidade infantil, o Tasso: “Vamos acabar com a miséria”. Era um indivíduo rico, mas achava que pra que os negócios deles darem resultado o povo tinha que poder comprar uma coca cola, poder comprar no supermercado, no shopping, era um grupo de industriais que pensavam o desenvolvimento do Estado. Não adiantava só ele ser rico e quem ia comprar as coisas que eles fabricavam, que eram industriais, não eram mais os coronéis, de agricultura, que era vender algodão, era gente já pensando que tinha que ter gente pra poder comprar as coisas e pra comprar tinha que ter renda, tinha que ter mercado. Então essa coisa de reduzir a miséria era muito forte no discurso isso. E em relação à saúde da criança isso também era muito forte, a gente colocou isso, o objetivo da saúde era esse, era... Então a UNICEF se instalou e o governo se interessou. “Poxa! A UNICEF”. Arranjou sala lá no próprio palácio, na Secretaria de Planejamento, a UNICEF ficou lá instalada lá.

FA: Mas o Sr. sabe porque ela veio pra cá e não pra Recife por exemplo?

AL: Porque aqui foi onde mais se discutiu, se levantou, já no projeto de governo, essa ideia da atenção à criança. Eu via que a criança era sempre a que sofria mais, na seca, em todo lugar quem morre primeiro é a criança. O adulto dá um jeito de escapar, vai pra São Paulo. O menino morre.

FA: Mas você não tinha conexões pessoais com a UNICEF?

AL: Não. Mas aí o governo teve e trouxe a UNICEF pra cá. E foi importante porque vieram duas pessoas importantíssimas. Uma de Santa Catarina, que era um educador, dedicado à educação, foi o maior Secretário de Educação que o Ceará já teve.

FA: Quem era?

AL: Era Antenor Naspolini.

CP: Já ouvi falar.

AL: Foi o homem que fez o FUNDEF. Ele era lá de Santa Catarina onde o Governo do Estado já tinha feito um trabalho importante com a criança, aquele careca, sem cabelo.

FA: O Esperidião Amim.

AL: Esperidião Amin. Ele tinha trabalhado com o Esperidião Amin, que tinha feito um grande trabalho em relação à criança, e ele veio pra cá pra dirigir a UNICEF. E veio também um epidemiologista italiano, Ênio, que fez um trabalho de avaliação junto com a Cecília Minayo. Enio Cufino. Esse cara deu uma contribuição muito grande pra gente. Ele é quem ensinou o pessoal da coordenação dos agentes de saúde a usar o computador pra somar todos os meninos que nasciam e todos os meninos que morriam. Então ele é que... Porque cada enfermeiro mandava, somava no município e o município mandava pra Secretaria, mas cento e oitenta municípios pra somar no papel era... então ele levou o computador portátil dele e ensinou as duas enfermeiras a usar o computador e somar. Então todo mês a gente levava pro governador e mostrava como é que estava a mortalidade infantil, em cada município, então tem o município que não melhorou nada, a Secretaria vai lá pra ajudar aquele município que tá muito ruim. Os outros estão indo bem. E a média do Estado como é que tá. E o governador sempre falando em mortalidade infantil, que começou a reduzir então passou a ser um ponto importante dos comícios, dos palanques. A mortalidade infantil passou a ser um tema político. Quem ia falar em mortalidade infantil? Nem médico falava, nem enfermeiro falava, mas aí passou a ser um tema. O Prefeito: “Ah” Minha cidade melhorou a mortalidade infantil”. E o governador, o Tasso, depois o Ciro e o Tasso de novo, então mortalidade infantil passou e ainda hoje é um tema importante aqui nos comícios. E os municípios então assumiram isso. “Poxa! Reduzi a mortalidade infantil no meu município”. Era uma coisa importante. E a UNICEF... Então como esse nosso trabalho ia dando muito resultado, o UNICEF valorizou muito isso, e essas avaliações, tanto da Cecília Minayo, como o do gaúcho, foram patrocinados pela UNICEF. Eu pedia, eu quero uma avaliação externa, eu não quero eu avaliar. Aí então eles que escolheram os avaliadores. Então o Gaúcho visitou oito mil famílias no Ceará, sorteou oito mil famílias no Ceará e estudou como é que estava a saúde materno infantil, em oitenta e sete, depois em noventa. Depois esse estudo se repetiu até agora em dois mil e dezoito. É o estudo que a gente mais acompanhou, então é uma coisa importante isso. Então pro UNICEF, o UNICEF achou isso importante e passou a publicar, mostrar pro mundo: Ó! O Ceará tá com resultado importante”. E inclusive deu um prêmio ao Ceará, em noventa e três foi lá nas Nações Unidas, o presidente da UNICEF, que você falou o nome, James, foi lá premiar o Ceará. Primeira vez que um Estado da América era premiado em relação à mortalidade infantil, que sempre trabalhava com a África e aí me chamavam pros encontros, aí fui lá pro encontro internacional no México, Encontro dos Prefeitos Amigos da Criança, nessa época eu era prefeito.

FA: Isso foi em que ano?

AL: Noventa e quatro. O Encontro dos Prefeitos Amigos da Criança. Oitenta prefeitos de cinquenta países. Estava lá a Vice-Prefeita de Paris, a Vice-Prefeita de Pequim, a Vice-Prefeita de Tóquio, a Prefeita de Washington, uma negra, era a Prefeita de Washington. E eu o Prefeito de Jucás no meio. E falei, fui um dos poucos que falou. Então o UNICEF projetou, realmente isso foi realmente importante. E O James andava com um pacote de soro oral no bolso, ele era assim uma figura fantástica. Mudou o UNICEF, que o UNICEF era aquelas coisinhas de uma guerra, não sei o quê. Vamos pensar em reduzir a mortalidade infantil no mundo, aí que reuniu os cento e noventa presidentes no mundo lá em Nova Iorque, colocou como uma das metas do milênio, vamos reduzir a mortalidade infantil. Isso foi papel dele, importante, que o UNICEF era besteira né?

FA: Eles chegaram a apoiar financeiramente?

AL:  Não, tinha esse epidemiologista que era pago pelo UNICEF e ajudou muita gente, ficava lá o dia inteiro lá na secretaria.

FA: Não, tô pensando em ajudar, chegar com...

AL: Não. Não tinha empréstimo internacional, nem Banco Mundial ninguém ajudou, isso era dinheiro do Ceará. Isso foi importante porque ninguém precisava perguntar nada a ninguém, porque todo dinheiro estrangeiro você tem que... depois o governo fez vários empréstimos pra outras coisas, mas eu via quando era pra emprestar era super complicação, tinha que atender todos aqueles requisitos. Foi importante, ter água no Ceará, foi importante os empréstimos externos.

FA: Aí era o Banco Mundial né?

AL: Banco Mundial. Foi importante. Que aí com esse prestígio que o UNICEF deu, o governo passou a ter crédito com o Banco Mundial, e também porque botou as contas em dia, o Tasso no primeiro ano de governo demitiu quarenta mil funcionários. Quem tinha dois empregos ou quem tinha sido contratado sem ser do ponto de vista legal, que na hora de eleição o sujeito nomeava vinte mil pessoas, então quem tinha nomeação ilegal ou tinha dois empregos, ele cortou, porque quando nós assumimos o governo nós estávamos três meses sem receber salário, aí o dinheiro não dava né? Eu mesmo tinha o salário de professor lá em Jucás que foi cortado, o salário menor era cortado. Primeiro dia de governo reuniu os secretários, só nos decretos, um deles foi esse. Tinha pessoas minhas que ficaram brigadas comigo. “Poxa! O Secretário vai deixar me demitir”. O que que a gente vai fazer? Quem tinha sido nomeado ilegalmente foi cortado, aí o governo passou a ter dinheiro e aí passou a poder pedir empréstimo, porque o Ceará não tinha dinheiro pra nada, aí passou a ter crédito junto ao Banco Mundial, o BID, então o Ceará passou a poder tomar dinheiro emprestado.

FA: E a OMS? Por que ela não aparece?

AL: A OMS, o Brasil nunca deu bola pra ela.

FA: Nem a OMS nem a OPAS né?

AL: A OPAS aparece lá uma besteirinha, mas nunca foi importante. E nem os técnicos brasileiros dão valor, porque o Brasil custou a entrar nas estatísticas da OMS. A OMS publica anualmente o boletim estatístico de cada país, O Brasil custou muito a entrar. Mandavam alguns dados de capitais, porque ninguém sabia quem nascia e quem morria no Brasil. Só no ano 2000 que a gente começou a ter um dado melhor, de nascimentos e óbitos. Então... Conhece o boletim anual estatístico da OMS?

FA: Conheço.

AL: O Brasil entrou há pouco tempo. Tinha lá os países da América do Sul toda, eu que estudava muito isso, não tem nada de Brasil. Quando começou a aparecer foram dados das capitais, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Fortaleza, era onde tinha dados, os países Argentina, Uruguai, tudo quanto era nascimento, óbito, mortalidade infantil, a gente não sabia nada. Então os técnicos brasileiros, a ENSP, nunca valorizou isso, a ENSP nunca valorizou indicadores de saúde, nunca. Ainda hoje você não tem dados, não ajuda em nada o Ministério. Quais são os indicadores d saúde do Brasil? Ninguém sabe nada. A ENSP nunca valorizou isso em nada. Eu sempre achei importante, você saber como tá um país comparando com outro país. A Espanha, que há quarenta anos atrás era muito ruim a saúde, hoje é uma das melhores do mundo. Mas você só sabe isso porque tá olhando lá todo ano como foi, então eu vi... Mil novecentos e cinquenta, década de cinquenta, sessenta, a Suécia estava disparada, depois veio os escandinavos todos, o Japão lá atrás, o Japão hoje passou na frente, uma das maiores qualidades de vida é no Japão, a Espanha vem em seguida, a Espanha era muito ruim, mas depois que o Franco morreu, que implantaram o sistema, por isso que eu tô indo lá em Barcelona, é hoje um dos melhores sistemas de saúde do mundo, com pouco dinheiro, gastam ¼ do que ao americanos gastam, metade do que a Inglaterra gasta, e a espécie de vida é muito acima, mas isso ninguém estuda isso, no Brasil ninguém valoriza isso.

CP: Dr. Carlile, deixa eu fazer uma pergunta...

AL: Só um instantinho. “Aumentei tantos leitos. Eu gastei tantos milhões”. Isso aí quer dizer alguma coisa? Cadê o resultado? Isso é que foi diferente no Ceará, foi um dos fatores de resultado aqui, porque a gente passou a ter mensalmente um indicador de saúde em cada município, então...

FA: E a UNICEF não induziu isso? Isso era um movimento próprio...

AL: Não, isso era minha, era eu que estudava isso desde lá de Brasília. Lá em Brasília a minha primeira aula eram sempre os óbitos do ano anterior em Brasília, era a primeira aula pros estudantes do curso de medicina. Tá aqui olha!! Quais são as doenças que estão matando em Brasília? Mortalidade infantil, doença do coração, câncer, isso me parecia sempre uma coisa essencial. Como é que vou fazer uma intervenção se eu não sei a situação e o que que eu quero chegar?

CP: Dr. Carlile, quando a gente se depara com a literatura que...

AL: Que eu vou falando mais e vai esquentando o sangue.

CP: ...com a literatura que se compromete a contar a história da atenção primária brasileira, ela estabelece uma certa linearidade entre o PACS e o Programa de Saúde da Família, como se o...

AL: Um é o primeiro do outro.

CP: Como se fosse o herdeiro direto. Se assim é, fala um pouco como é que vai se dar essa... eu vou usar uma palavra que... evolução... como é que vai se dar a construção do PSF...

AL: é evolução mesmo, porque o agente de saúde, como eu falava, custava um dólar por habitante ano, é porquinho dinheiro, mas já fazia uma grande coisa que era responsabilidade, quer dizer, havia uma responsabilidade sobre aquelas famílias...

CP: O senhor estava falando sobre essa passagem do PACS pro PSF.

AL: Ah, sim! O PACS era uma coisa pra quem tinha pouco dinheiro, mas uma coisa importante que a saúde nunca tinha feito, era a responsabilidade, quer dizer, eu sou responsável por essas famílias, pela saúde dessas famílias, tal como os agentes de saúde eram responsáveis para que as grávidas viesses para o pré-natal, as crianças se vacinassem, acompanhasse aquelas crianças, então ela passou a ter um número de famílias em que ela era responsável, que no sistema passado sempre esperou as pessoas chegarem no centro de saúde ou no hospital, mas a gente assumia uma responsabilidade sobre as famílias? Isso no Brasil não existia, então isso foi a grande mudança, que é atenção primária.

CP: Numa entrevista que o senhor deu à Revista Educação em Trabalho em Saúde, em 2015, o Sr. refere a figura do Eurico Monteiro como um personagem importante nessa passagem.

AL: Isso. Então a gente contaminou um grupo grande de pessoas com essa ideia de atenção, a gente é responsável pela saúde das pessoas, se as pessoas morrerem, nós temos a ver com isso. Se os meninos estão morrendo mais nós temos a ver com isso, e no começo era só o enfermeiro que era obrigado, só implantava se o município contratasse o enfermeiro, que era pra fazer a ligação, que o Estado pagava o agente de saúde, selecionava mas tinha que estar ligado ao município, o município tinha que contratar um enfermeiro, pra fazer a ligação, o município e o Estado e o agente de saúde. E os médicos, à medida que o SUS começou a funcionar, que juntou dinheiro do Ministério da Saúde com o INAMPS, aí começou a ter dinheiro pra a gente contratar, pros municípios contratarem médicos, deixou de ser só aquele pessoal que tinha seguro, carteira de trabalho. Então em oitenta e nove, quando eu assumi a Secretaria de Saúde de Iguatu, aí criamos aqui o COSEMS, aí assumi a presidência do COSEMS, e era Vice Presidente do CONASEMS, e aí começava a discutir, tem que ter dinheiro no município, não pode ter dinheiro só pra grandes cidades, e o INAMPS era nas cidades maiores, e era pela amizade do deputado federal que conseguia o dinheiro, as AIHs credenciava o laboratório, um raio x, um hospital, tem que ser dinheiro para o município, com população. E aqui no Ceará a gente conseguiu que... foi criado o Conselho Municipal de Saúde nesse mesmo período e aí nós conseguimos aprovar no Conselho Municipal de Saúde que havia naquela época, a base do INAMPS era que cada brasileiro tivesse direito a duas consultas médicas por ano, essa era a base de trabalho do INAMPS, o dinheiro do INAMPS dava pra isso. Então vamos conseguir que uma consulta seja uma consulta do generalista e uma consulta seja do especialista. A consulta do generalista podia ser feita em qualquer cidade, então metade do dinheiro tinha que ir pra todas as cidades, qualquer cidade pode então contratar médico, e aí contratou-se médicos para todas as cidades, e toda região poderia contratar o especialista, não precisava vir para Fortaleza. Iguatu poderia contratar os especialistas, Crato, Sobral, então o dinheiro era dividido por município, por população. Deixou de ser aquele negócio do deputado chegar e dizer, meu município, meu hospital, isso foi uma mudança grande.

FA: Isso foi uma mudança de gestão a nível do governo estadual?

AL: Conselho Estadual de Saúde, e eu como representante dos secretários municipais, tinha assento no Conselho Estadual de Saúde que a gente acabou de criar. E aí levei a proposta pro Conselho Estadual de Saúde, que o dinheiro passasse a ser distribuído por população, pelo menos nessa área da consulta médica, claro que  hospital é hospital, não vou desmanchar o hospital, quem tem hospital, fazer hemodiálise, outra sei lá o que, em hospital, mas as consultas médicas de ambulatório não precisam ser feitas em hospital, qualquer município pode ter seu médico e fazer suas consultas, generalistas. Isso então foi uma mudança grande demais. Todos os municípios passaram a contratar médicos, porque tinha o dinheiro que era do INAMPS e agora era da Secretaria de Saúde do Estado. O INAMPS passava pro Estado e o Estado passava pro município, foi a municipalização da saúde, foi em oitenta e nove, que em oitenta e sete foi a estadualização, o INAMPS passou pro Estado e em oitenta e nove que aí nós começamos a municipalização. Em oitenta e nove a gente deve ter municipalizado talvez ¼ dos municípios do Ceará, que também o município tinha que estar organizado, tinha que ter uma secretaria de saúde, poucas cidades tinham secretarias de saúde, tinha que ter uma estrutura de secretaria.

FA: E quanto à rede hospitalar propriamente dita?

AL: Isso foi mais tempo, tinha que ter mais dinheiro pra ter isso, aos poucos é que se foi se estendendo. A primeira coisa foi que não precisava mais ter carteira de trabalho pra entrar no hospital, agora todo mundo tem direito.

FA: E como foi o processo de regionalização pra montar uma rede de...

AL: Naturalmente já havia. Cada região tinha a sua cidade maior que tinha seu hospital credenciado pelo INAMPS, então já havia uma rede, isso foi se aperfeiçoando. No ano de noventa e oito a dois mil e dois foi contratada uma consultoria espanhola pra estudar a regionalização, então eles estudaram as ambulâncias pra onde é que levavam os doentes, pegavam cada hospital, de onde é que vinha esse doente, a ambulância de onde é que vem.

FA: Esse documento existe, esse relatório espanhol?

AL: Existe. Hoje tem de novo uma consultoria espanhola, mas essa foi de noventa e oito a dois mil e dois

FA: A gente pode ter acesso?

AL: Eu acredito que sim.

FA: Não, isso depois o Sr. vê. Eu também fiquei bastante interessado no plano de governo do Tasso Jereissati. O Sr. tem um exemplar?

AL: Vamos tentar achar. No primeiro ano não tem escrito não. A primeira coisa foi isso, reduzir a mortalidade infantil em 40%. Agora no segundo não, já teve foi... Então com essa consultoria espanhola se redividiu as regiões. Nós tínhamos três regiões, hoje são vinte e duas, porque se viu que tinha regiões que tinha duas cidades polo que de acordo com as ambulâncias que iam pra aquele hospital, sinal que aquele hospital era bom, que atendia as pessoas. Então hoje são vinte e duas regiões, foi a partir dessa coisa. Regiões desapareceram, era uma cidade importante que deixou de ser. Senador Pompeu era uma cidade importante na época do trem, que os trens passavam por lá, era uma grande central de trens. Quando acabou a cidade acabou-se, não tinha mais sentido ser uma sede regional, o hospital ficou bem pequenininho, então desapareceu como região. Eu era sede de região, não sou mais, aí foram sendo criadas uma série de outras cidades que foram sendo importantes. Mas esse trabalho veio depois, dois mil, já treze anos depois, porque foram, as coisas foram evoluindo, a primeira coisa, usar um indicador que foi a mortalidade infantil, foi muito importante e durante muito tempo isso valeu, porque quando você tem uma criança sobrevivendo, provavelmente o adulto vai sobreviver mais, porque quem morre primeiro é o menino mesmo, se o menino estiver bem atendido, o adulto tá na frente, nem compara.

CP: Quando a atenção primária se converte em uma política nacional, isso vai se dar, naturalmente, a partir de Brasília, mas como é que vai ser esse processo, digamos assim, de apropriação das experiências regionais? O Sr. estava lá, por exemplo, informando a construção dessa política nacional ou o seu grupo?

AL: Não. Do Ceará pro Nordeste já falei, foi em noventa e um, com o Alcenir. Em noventa e quatro aí já foi pro Brasil todo, aí já entra o Odorico [Monteiro] na história. Então, vocês viram aquela história, Memória da Saúde da Família, do Ministério?

FA: Vi.

AL: Um livrinho preto, assim. Ali tá os documentos primeiros. Então na última semana de dezembro de noventa e três, o Ministro, que era o Itamar, já vinha a experiência do agente de saúde, primeiro do Estado do Ceará, segundo Estado do Nordeste, dando bom resultado, e os municípios já tinham médicos então a gente pode dar um passo adiante. Aí você tinha a experiência do médico cubano lá em Niterói, você tinha a experiência lá de Porto Alegre, do Murialdo, você tinha já algumas experiências, e tinha essa experiência nossa aqui

FA: E do ponto de vista de escala era maior?

AL: Ah sim, nem compara. Mas os agentes de saúde já estavam espalhados no nordeste todo, mas digamos, em termos de equipe, de coordenação, claro que a nossa estava bem na frente, a Secretaria de Estado de Saúde já com todo o gás  como central. Então, secretário e governador, vendo todo mês como está a mortalidade infantil, qual município que tá ruim, melhora, vai lá, e isso foi muito importante você ter esse indicador mensal, pra dizer qual município que não tá bem, que se tá morrendo mais crianças é sinal que o sistema do município não tá bom. Aí é o hospital que não tá bom, ou seja lá o que for que não tá bom.

FA: Mas como é que essa experiência se tornou uma política? Que era aquela pergunta que o Carlos tinha feito.

AL: Sim, então foi o Murialdo, você viu lá na, não sei se na memória fala dessa reunião, acho que não, o Ministro reuniu o Murialdo, aqui a Ana Maria, que era a Secretária de Saúde do Estado, o Odorico que era o Presidente do COSEMS, que tinha a experiência lá começando de saúde da família, e Niterói, que era dos médicos, e aí se discutiu como o programa sair só dos agentes de saúde, do enfermeiro, para um programa que incluísse o médico.

FA: À essa altura você estava onde?

AL: À essa altura eu era o Presidente do COSEMS. Não. Eu era prefeito, era presidente da associação dos municípios do Ceará.

FA: Prefeito de Jucás.

AL: De Jucás. E aí o Ministro era uma pessoa boa, uma pessoa da época do Itamar.

FA: Quem era o Ministro da época?

AL: Não estou lembrado o nome, mas tinha uma pessoa importante, que foi Secretário de Saúde de São José dos Campos, morreu já. Eu era Secretário de Saúde de Iguatu, ele era Secretário de Saúde de São José dos Campos, o do Partido Verde era Secretário de Saúde de São Paulo, da cidade de São Paulo.

FA: O Eduardo?

AL: O Eduardo. O outro que morreu que foi lá de Santos.

FA: Sei. Davizinho.

AL: Davizinho. Então você imagina o que era o CONASEMS. Era nós. O Eduardo, o David [Capistrano], eu, este de São José dos campos que depois foi um dos secretários importantes do Ministério, que participou disso.

FA: Niterói estava? Curitiba?

AL: Não. O presidente era lá do Rio Grande do Sul, era o, não estou lembrado o nome dele, mas era um grupo mesmo forte, o CONASEMS era pra valer. E nós nos dividíamos, cada um de nós cuidava de um tema. E as experiências do Ceará nós levávamos pra eles, aqui, o Ceará tá fazendo desse jeito aqui. “Ah! Então vamos fazer também”. Divisão do dinheiro. “Ah! Mas como é que você consegue dividir o dinheiro pra todo mundo?” Juntava dois dias todos os secretários municipais de saúde, primeiro os critérios estavam estabelecidos, quem quiser ter a consulta do médico generalista tem a metade dos recursos, aí todo mundo é claro que queria, daí era só contar quantos habitantes tinha e pronto, você vai ter tanto em dinheiro. Você vai ter o dinheiro na hora que você contratar o médico. E quem tem o especialista, você tem lá o pediatra, o obstetra, então você tem o dinheiro da consulta especializada. E então em dois dias juntava todos os secretários e eles fizeram a divisão do dinheiro. Aí o pessoal do CONASEMS, “Vem aqui”. No outro ano, como é que fazia isso? Como é que a gente dividia o dinheiro, que o pessoal passava meses no planejamento e não conseguia nada. Em dois dias a gente faz o planejamento. Mas se tiver os critérios bem estabelecidos né?

CP: Bem, a gente está aqui porque a gente está diante de um arquiteto do que a gente está chamando de Atenção Primária, não é verdade?

AL: O pedreiro né?

CP: Na opinião do Sr. quem mais que a gente deveria ouvir? Se imaginar um grupo de pessoas assim imprescindíveis para a gente pensar a Atenção Primária brasileira, com quem mais deveríamos nos sentar?

AL: Só uma coisa que você falou o nome do Odorico e eu falei pouco. O Odorico era Secretário de Saúde da Cidade de Quixadá. Ele era estudante lá em Iguatu. Quando eu era sanitarista de Iguatu e depois prefeito de Jucás, e ele era estudante e aí me acompanhou, a Ivana mulher dele era estudante na Paraíba, e veio, começaram a namorar numa dessas reuniões que a gente fez lá em Iguatu. Aí se tornou muito amigo meu. Era PT e eu era Tasso, PSDB, mas sempre tivemos uma relação mais tranquila possível e republicana. Um dos primeiros municípios que nós levamos o dinheiro da municipalização foi Cacuí que ele era secretário. Hoje eu sou padrinho da menina dele, então é uma amizade muito forte, e era um sujeito muito importante, e animado, leva as coisas adiante, então essa relação PT/PSDB no Ceará sempre foi muito tranquila. Inclusive quando o Tasso foi prefeito pela segunda vez a ideia era que o vice fosse um médico do PT, mas aí o Zé Dirceu foi contra e não caminhou isso, mas a gente sempre caminhava juntos aqui. Então o Odorico foi presidente do CONSEMS, eu era presidente da Associação dos Municípios, fui lá na reunião do CONSEMS pra fazer campanha pra ele, porque achava que ele deveria ser, conhecia mesmo o trabalho dele, então foi uma figura importantíssima pra esse projeto todo.

CP: E mais quem que a gente poderia... que o Sr. acha...

AL: Ah sim. Uma pessoa importante é o atual Secretário Executivo do CONASS, o Jurandir. Jurandir foi um dos primeiros médicos de família do Ceará. Depois foi Secretário de Saúde do Estado, eu que indiquei, conhecia muitas pessoas, então os governadores perguntavam quem é e eu dei palpite. E ele foi Secretário de Saúde do Município, foi um dos primeiros Médicos de Família e foi Secretário de Saúde do Estado, foi Presidente do CONASEMS, do CONASS, ele foi Secretário de Saúde do Estado e foi presidente do CONASS e há uns oito anos já. Oito anos não, onze anos que ele está como Secretário Executivo do CONASS, é um dos caras mais importantes aí do Ceará, do Brasil.

FA: O Sr. tem ido sempre ao Rio na reunião do CD [Conselho Deliberativo da Fiocruz]?

AL: Tenho. Dia 24 tá marcado, dia 24 e 25. Eu vou sempre. Eu dirigi aqui a FIOCRUZ desde o começo. Fiquei dois anos afastado. Primeiro eu estive oito meses na África, em Angola. Quando o atual governador assumiu em janeiro de 2015 me chamou pra ser secretário, dia 29 de dezembro me chamou. Tá bom, eu topo. Mas sem conversar nada, completamente diferente do que foi do Tasso, que a gente passou meses discutindo, e aí eu pensava que ele sabia minhas ideias e aí certamente ele pensou que eu sabia também as dele, só que não casou de jeito nenhum. O negócio dele era emprego, dividiu, cada secretaria era um partido, dentro da própria secretaria de saúde, não pude nomear nem o subsecretário, mas fiquei quatro meses, tentando, mas não...

FA: Nesse atual governo?

AL: Nesse atual governo.

FA: Governo do Estado?

AL: Governo do Estado. Fiquei dois anos então afastado aqui da coordenação, porque um colega assumiu a coordenação. Não dava. “Ah! Tô aqui de volta”. Fiquei fazendo alguns trabalhos, mas sem ser coordenador. Aí em fevereiro do ano passado que eu passei a assumir a coordenação, aí voltei a assumir o CD.

FA: Eu acho que o mais importante da gente voltar a conversar amanhã, talvez é, na medida que a gente for amadurecendo, numa das suas idas ao Rio, o Sr. fazer uma visita pra conversar com a gente uma manhã. É possível?

AL: Claro. É interesse meu que essas coisas sejam entendidas.

FA: Mais algum ponto, Carlos?

CP: Não, eu só posso agradecer ao Sr. por ter nos recebido.

FA: Aprendi à beça.

 

FIM. 

Saúde. Ministério da Saúde | logotipo da Fundação Oswaldo Cruz | logotipo da OPAS

Este sítio foi desenvolvido pela Casa de Oswaldo Cruz | Fiocruz